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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sexta-feira, 30 de maio de 2014

Desgraça pelada

Este título execrável mas fiel à tradição popular, refere-se a um ser mitológico, de aparência horrenda, não fazendo outro mal senão o choque emocional de vê-lo. A lição pela visão; o aviso sobrenatural da necessidade de se mudar um comportamento ignóbil.

Aparece aos que xingam muito por algo de pouca importância, queixando-se repetitivamente da vida: “isto é uma desgraça!”. É um contraponto aos que positivamente dizem por qualquer coisa: "graças a Deus!". Por isto, as senhoras devotas repreendem quem usa esta expressão maldita. 

A forma de aparição, ainda recordo claramente de tê-la ouvido descrita na adolescência, de minha bisavó materna, Luíza dos Santos: surge com aspecto de uma mulher magérrima, seca mesmo, altíssima, vestida de branco, de faces lanhadas por rugas e marcadas por um olhar sombrio, desprovido de vitalidade (*). Um dos lugares de sua eventual aparição era o pontilhão que ladeava a atual Gruta do Divino em São João del-Rei, na saída da “Linha do Sertão” da estação ferroviária. Lamentavelmente o pontilhão foi demolido, os trilhos retirados. Nos seus lugares construíram-se, respectivamente, a Ponte Padre Tortoriello (fim da Rua Antônio Rocha) e um calçadão (da Avenida Leite de Castro). O assombro sumiu com a modernidade. 

A segunda forma de aparição, anotei-a de um fazendeiro das redondezas do Rio do Peixe, imediações de São Tiago, dizendo tê-la visto na parada do Pessegueiro, na velha estrada de terra, quando esperava o ônibus. De longe tinha aparência normal, conquanto fosse soturna. Parecia uma mulher de verdade. Chegando junto dela, notou que não tinha rosto e na verdade, em seu lugar havia um buraco escuro. Então, desapareceu como fumaça no ar. 

É um mito educativo, que impõe medo para se regular a boa fala, evitando-se os palavrões e xingamentos hereges. 

Entre dois membros de terreiros de matriz religiosa africana, em Santa Cruz de Minas (2001), encontrei sua descrição como de um espírito de característica feminina, maligno, muito atrasado, desprovido de luz e doutrina, habitante dos lugares de imundície, como chiqueiros, valas de esgoto, depósitos de lixo. Diz que nos galinheiros gosta de comer fezes de galinha. Se compraz em fazer o mal, prejudicar pelo prazer de ver a infelicidade alheia. Se torna um encosto, que acompanha o indivíduo com muita obstinação, estragando sua vida. Sua força é infernal. Tem a esperteza de uma raposa, não sendo fácil ver-se livre dela quando escolhe sua vítima. Por vezes se gasta anos para esta obsessora cair numa armadilha que a aprisione ou afaste.

Em atitude de possessão, faz a pessoa assenhoreada rosnar, ranger os dentes, retorcer, descabelar-se. Dá tenebrosas gargalhadas e xinga muito. Seu olhar é medonho como de um cão raivoso. Os guias de luz, em respeito, chamam-lhe “aquela mulher”, evitando dizer seu nome, que como está explícito é tão triste que indica exclusão de qualquer graça de Deus, que é em última análise, a pior desgraça que pode acontecer.

Neste sentido, confluindo na lógica da cultura popular, o adjetivo "pelada" parece apontar simbolicamente para algo que se subentende desregrado, fora do padrão. Em Santa Cruz de Minas ouvia dizer do pinto pelado, uma assombração que surge aos incautos e pecadores, aparição demoníaca em forma de pequeno galináceo depenado (**). Noutro contexto, mas em significado que parece-me estar em paralelo, chamamos "pelada" ao futebol de improviso, partida esportiva na qual vale trocar de time, jogar sem juiz, não importa o tamanho do campo ou da bola, a largura do gol, etc. um futebol "sem regras", despido de regulamentos. 

Por fim é preciso lembrar que o povo, por razões ignotas, talvez pela toxicidade elevada, chama ainda de desgraça pelada (ou dedinho de sapo) a uma espécie de vegetal, que nasce sobre a poeira e lodo acumulado nas lajes das casas e telhados.

Desgraça pelada, planta crassulássea do gênero Kalanchoe,
 flagrada na cobertura de um residência em São João del-Rei.

Notas e Créditos

* Um mito que se equipara em certa medida a esta aparência é o da "Maria Engomada", que, segundo Saul Martins, é uma "aparição frequente no Sul de Minas, de mulher alta e magra, que estica e afina à medida que é reparada, sobretudo por crianças." In: Folclore em Minas Gerais. 2.ed. Belo Horizonte: Imprensa Universitária / UFMG, 1991. 126p. p.29-30. 
** Sobre aparição fantasmagórica em forma de pinto, ver também a estória do Gaspar na postagem lincada a seguir: MAIS UM "CAUSO" DE PESCADOR
*** Texto e fotografia: Ulisses Passarelli 

6 comentários:

  1. olá gostaria de informar que esse texto foi copiado por um canal do youtube ,só estou avisando pra caso tenha sido copiado sem autorização. https://www.youtube.com/watch?v=IeEXiUiTAp4

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    1. na verdade e ao contrario o canal que usou esse texto para criar o video

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  2. Ok, obrigado pela informação. Vou dar uma olhada...
    Volte sempre a visitar este blog.

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  3. Olá Ulisses, antes de tudo parabéns pelo blog! Gostei muito da forma como você escreve, narra, sem exageros, com concisâo e de forma bastante agradável. Vejo aí uma boa veia de escritor.

    Quanto á referida "mulher" da estória acima, acabei parando aqui porque estranhei quando vi no Youtube uma conta com esse nome "maldito" e muito me intrigou, porque até então desde a minha infância eu conhecia essa lenda brasileira e sempre imaginei que esse realmente seria um "nome que não deve ser dito", quanto mais alguém utilizar como pseudônimo!

    Creio ser interessante eu informar que eu conheço uma história diferente, contada por um afrodescendente que trabalhava como caseiro na pequena fazenda de meu pai, e morava ele com sua esposa em uma edícula ao lado das baias de nossos cavalos.

    Com o tempo terminei por fazer uma grande amizade com o casal, apesar de eu ainda ser muito novo (uns treze ou quatorze anos mais ou menos), e nunca me esqueci quando uma vez ele chingou proferindo o tal nome e sua esposa muito lhe repreendeu, apavorada. Ele então, vendo minha estranheza, resolveu me contar a seguinte história que tentarei resumir ao máximo;

    A ENXADA

    Uma família muito pobre passava já a muito tempo por uma grave crise financeira, além de uma verdadeira maré de má sorte. Até mesmo as pessoas próximas percebiam que havia algo estranho naquela casa, pois nada lá dava certo. O homem da casa, apesar de ser um homem honesto e muito honrado, que nem ao menos bebia e era um grande trabalhador, nunca conseguia emprego fixo em nenhum lugar. Mantinha a renda da casa apenas com capinhas esporádicas nos quintais dos vizinhos, por isso era bastante comum encontrá-lo sempre pelas redondezas trabalhando com sua enxada.

    Foi então que o homem resolveu procurar uma parteira benzedeira que lhe disseram que saberia o que fazer, e a levou para sua casa.

    Lá entrando, a mulher se dirigiu á cozinha,e nem bem adentrando o local afastou-se subitamente virando seu rosto, visivelmente perturbada.

    Ela então dirigiu-se ao homem, e lhe disse que a única forma de se livrar de um espírito ruim que lhe estava trazendo desgraças seria mudando-se dessa casa, mas havia um único detalhe: todos os móveis e roupas poderiam ser levados, mas o fogão, sem excessão, deveria ficar na casa.

    O homem quis perguntar á benzedeira do porquê de deixar o fogão, mas ela não quis explicar. Disse que ele não deveria fazer perguntas e apenas fazer isso, com o adendo gravíssimo de que, em hipótese ALGUMA, acontecesse o que acontecer, ele nâo poderia retornar JAMAIS a essa casa, uma vez tendo fechado a porta, e largado o fogão lá dentro.

    Dias depois a família se mudou, fizeram como a benzedeira falou, e largaram o fogão dentro da casa e foram embora. Todo o azar finalmente ficaria pra trás.

    Já estando na estrada, na metade do caminho para sua nova casa, de repente o homem dá um tapa em sua testa e diz que havia esquecido sua enxada da sorte, e que deveria voltar á casa buscá-la de qualquer maneira. Que seus filhos e sua esposa seguissem a viagem, ele voltaria buscar sua ferramenta de trabalho, e voltaria a encontrar com eles em breve.

    Sua esposa, desesperada, lhe pede em prantos para que não volte, visto que a benzedeira havia lhes prevenido de que isso não poderia ser feito, mas o homem, muito teimoso, não se conteve e retornou sozinho á casa.

    Chegando lá, como já era noite e não havia luz no local, o homem teve que acender uma vela para adentrar a casa. Entrou, agarrou sua enxada, mas quando estava por sair pela porta lembrou-se do fogão, e uma irresistível curiosidade o impeliu á cozinha, mesmo lembrando-se de que a benzedeira lhe havia dito para que jamais retornasse.

    Entrou, olhou, e caiu ao chão desfalecido: em cima do fogão, deitada de cócoras e totalmente nua, uma mulher muito velha e enrugada chorava desesperadamente. Era ela a dona do "nome que não pode ser dito".

    O homem enlouqueceu, saiu correndo pela estrada, e sua família nunca mais o viu.
    FIM

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    1. Muito grato pela visita ao blog, pelos elogios e sobretudo por esta valiosa contribuição. A lenda dessa criatura é de fato muito curiosa. Aqui em São João del-Rei muitos ainda tem muito medo e respeito desse nome.
      Volte sempre a visitar esta página eletrônica e acompanhe as postagens. Bem vindo!

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