Bem vindo!

Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




segunda-feira, 27 de julho de 2015

Segundo Encontro de Congados de Tiradentes

No último domingo do corrente, coincidindo com o dia de Santana, aconteceu em Tiradentes o 2º Encontro de Congados, promovido pela guarda "Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia", do Bairro Capote, sob a direção do Capitão Claudinei Matias do Nascimento, que carinhosamente todos chamam de "Prego" ou "Preguinho". O ano passado o 1º Encontro também aconteceu no último domingo de julho. 

Esta guarda nova (surgida em meados de 2012 *) é por assim dizer o resgate da antiga jomba que já existiu a muitos anos naquela cidade. Prego é um exímio artesão e além disto professor de capoeira. Seu trabalho abnegado, de âmbito familiar, se estende à comunidade e com a ajuda de algumas pessoas dedicadas consegue manter sua guarda de congado e envolver muitos jovens aprendizes, deixando a esperança de prosseguimento. Em sua humildade, sem alardes, vai fazendo um excelente trabalho cultural, repetimos, com a ajuda de poucos, diante de dificuldades gigantes. A guarda conserva elementos mistos de congos e moçambiques, e bate, sobretudo, marcha. Ao cantar sua toada lamentosa, parece que transporta nossa imaginação ao fundo de uma senzala ou de um eito de café, onde escravos trabalhavam. O canto ecoa com alma, anuncia o sofrimento, mas também a fé, a esperança e a resistência. No silêncio da Escrava Anastácia, de boca amordaçada, muita coisa é dita! Seu silêncio grita alto... Milagrosa para o povo, não tem sua santidade oficialmente reconhecida, mas é um ícone para a luta do negro. 

Mas a vitória ficou clara ontem. A jovem equipe do Prego, conseguiu arrastar para Tiradentes vários tipos de congados visitantes e alguns grupos de inculturação. Vieram de Dores de Campos, Carandaí, Ouro Branco, Miguel Burnier (Ouro Preto), Congonhas, Senhora de Oliveira, Conceição da Barra de Minas, São João del-Rei, Santa Cruz de Minas, Santana do Jacaré, Raposos e Conselheiro Lafaiete.

Os grupos se reuniram no Parque das Abelhas onde lhes foi ofertado o café da manhã, em espírito de grande cordialidade. Tocaram bastante naquelas imediações e depois seguiram em cortejo rumo ao centro histórico, atraindo bastante a atenção dos turistas, que se encantaram como a colorida movimentação. O ritmo parece que a todos cativava. Na escolas foi servido o almoço, com o sabor do tempero caseiro, que de fato só é possível quando se cozinha com amor. 

Na sequência passaram os grupos pela Igreja de Nossa Senhora do Rosário e em procissão, trouxeram num andor uma imagem da Virgem Padroeira, até a acolhedora Igreja das Mercês, onde os grupos adentraram e participaram da celebração ministrada pelo Reverendo Padre Ademir Longatti, que tão bem recebeu os grupos culturais, que inclusive fizeram os cantos da celebração. 

Finda a missa, aconteceu o tocante rito da coroação da rainha do grupo de Tiradentes, com a participação do sacerdote e logo os capitães presentes foram homenageados. 

Os grupos cantaram seus agradecimentos e despedidas e partiram de volta para suas cidades. O grupo tiradentino permaneceu no adro, onde fez baixar os cinco mastros: Nossa Senhora das Mercês, Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia e Escrava Anastácia. 

A todos os envolvidos no festejo este blog transmite a mais efusiva parabenização. A missão foi cumprida com aprumo, a despeito das dificuldades. Aqueles que não contribuíram ou não acreditaram perderam a chance de participar de um pedaço da história do lugar que vai sendo construída e pelo que se viu, tem futuro e potencial.

Abaixo segue por fim fotografias de alguns congados presentes neste evento, com a identificação da cidade de origem.

Claudinei, capitão e festeiro.
Tiradentes.
Carandaí. 

Conceição da Barra de Minas. 

Congonhas. 

Dores de Campos.

São João del-Rei, Bairro Matosinhos. 

Miguel Burnier (Ouro Preto). 

Ouro Branco. 

Raposos.

Santa Cruz de Minas. 

Senhora de Oliveira.

São João del-Rei, Bairro São Geraldo.

São João del-Rei, Bairro Solar da Serra.
Santana do Jacaré.

Mastros.

Notas e Créditos

* Esta guarda foi fundada inicialmente com o apoio do saudoso Capitão Luís Pereira do Santos, ligado ao povoado da Candonga. Tinha a princípio alguns elementos de influência rítmica de outras modalidades de congado. Logo o grupo ficou totalmente a cargo do Capitão Claudinei e se fixou na forma atual, na cidade de Tiradentes. Para uma visão breve de sua primeira participação em festa pública, ainda com poucos meses de fundação, ver a postagem: Congado de Tiradentes
** Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotos: Iago C.S. Passarelli

Segundo Encontro de Congados de Tiradentes

No último domingo do corrente, coincidindo com o dia de Santana, aconteceu em Tiradentes o 2º Encontro de Congados, promovido pela guarda "Nossa Senhora do Rosário e Escrava Anastácia", do Bairro Capote, sob a direção do Capitão Claudinei Matias do Nascimento, que carinhosamente todos chamam de "Prego" ou "Preguinho". O ano passado o 1º Encontro também aconteceu no último domingo de julho. 

Esta guarda nova (surgida em meados de 2012 *) é por assim dizer o resgate da antiga jomba que já existiu a muitos anos naquela cidade. Prego é um exímio artesão e além disto professor de capoeira. Seu trabalho abnegado, de âmbito familiar, se estende à comunidade e com a ajuda de algumas pessoas dedicadas consegue manter sua guarda de congado e envolver muitos jovens aprendizes, deixando a esperança de prosseguimento. Em sua humildade, sem alardes, vai fazendo um excelente trabalho cultural, repetimos, com a ajuda de poucos, diante de dificuldades gigantes. A guarda conserva elementos mistos de congos e moçambiques, e bate, sobretudo, marcha. Ao cantar sua toada lamentosa, parece que transporta nossa imaginação ao fundo de uma senzala ou de um eito de café, onde escravos trabalhavam. O canto ecoa com alma, anuncia o sofrimento, mas também a fé, a esperança e a resistência. No silêncio da Escrava Anastácia, de boca amordaçada, muita coisa é dita! Seu silêncio grita alto... Milagrosa para o povo, não tem sua santidade oficialmente reconhecida, mas é um ícone para a luta do negro. 

Mas a vitória ficou clara ontem. A jovem equipe do Prego, conseguiu arrastar para Tiradentes vários tipos de congados visitantes e alguns grupos de inculturação. Vieram de Dores de Campos, Carandaí, Ouro Branco, Miguel Burnier (Ouro Preto), Congonhas, Senhora de Oliveira, Conceição da Barra de Minas, São João del-Rei, Santa Cruz de Minas, Santana do Jacaré, Raposos e Conselheiro Lafaiete.

Os grupos se reuniram no Parque das Abelhas onde lhes foi ofertado o café da manhã, em espírito de grande cordialidade. Tocaram bastante naquelas imediações e depois seguiram em cortejo rumo ao centro histórico, atraindo bastante a atenção dos turistas, que se encantaram como a colorida movimentação. O ritmo parece que a todos cativava. Na escolas foi servido o almoço, com o sabor do tempero caseiro, que de fato só é possível quando se cozinha com amor. 

Na sequência passaram os grupos pela Igreja de Nossa Senhora do Rosário e em procissão, trouxeram num andor uma imagem da Virgem Padroeira, até a acolhedora Igreja das Mercês, onde os grupos adentraram e participaram da celebração ministrada pelo Reverendo Padre Ademir Longatti, que tão bem recebeu os grupos culturais, que inclusive fizeram os cantos da celebração. 

Finda a missa, aconteceu o tocante rito da coroação da rainha do grupo de Tiradentes, com a participação do sacerdote e logo os capitães presentes foram homenageados. 

Os grupos cantaram seus agradecimentos e despedidas e partiram de volta para suas cidades. O grupo tiradentino permaneceu no adro, onde fez baixar os cinco mastros: Nossa Senhora das Mercês, Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia e Escrava Anastácia. 

A todos os envolvidos no festejo este blog transmite a mais efusiva parabenização. A missão foi cumprida com aprumo, a despeito das dificuldades. Aqueles que não contribuíram ou não acreditaram perderam a chance de participar de um pedaço da história do lugar que vai sendo construída e pelo que se viu, tem futuro e potencial.

Abaixo segue por fim fotografias de alguns congados presentes neste evento, com a identificação da cidade de origem.

Claudinei, capitão e festeiro.
Tiradentes.
Carandaí. 

Conceição da Barra de Minas. 

Congonhas. 

Dores de Campos.

São João del-Rei, Bairro Matosinhos. 

Miguel Burnier (Ouro Preto). 

Ouro Branco. 

Raposos.

Santa Cruz de Minas. 

Senhora de Oliveira.

São João del-Rei, Bairro São Geraldo.

São João del-Rei, Bairro Solar da Serra.
Santana do Jacaré.

Mastros.

Notas e Créditos

* Esta guarda foi fundada inicialmente com o apoio do saudoso Capitão Luís Pereira do Santos, ligado ao povoado da Candonga. Tinha a princípio alguns elementos de influência rítmica de outras modalidades de congado. Logo o grupo ficou totalmente a cargo do Capitão Claudinei e se fixou na forma atual, na cidade de Tiradentes. Para uma visão breve de sua primeira participação em festa pública, ainda com poucos meses de fundação, ver a postagem: Congado de Tiradentes
** Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotos: Iago C.S. Passarelli

domingo, 19 de julho de 2015

A Festa do Carmo e a alma festiva de São João del-Rei

Aniversário do Blog


Antes do assunto que intitula esta postagem é mister registrar que hoje este blog completa seu terceiro aniversário. Surgido despretensioso, quase como uma experimentação, acabou por criar suas raízes porque o leitor deu o respaldo necessário a essa continuidade e aprimoramento, graças às suas visitas a esta página eletrônica.

Assim, as primeiras postagens eram bem simplificadas mas davam o mesmo recado das que vieram depois. O foco sempre foi valorizar a cultura popular, difundir os valores do folclore no contexto cultural dos Campos das Vertentes, enaltecer os mestres do saber, as festas tradicionais. Em condição paralela veio aqui e ali o tema ecológico, a história, a memória ferroviária e outros assuntos correlatos. 

Em termos de números o TRADIÇÕES POPULARES DAS VERTENTES aproxima-se da cifra de 83.000 visitas e 475 postagens no ar, visitadas por brasileiros e gente de vários países. Manteve-se a isenção político-partidária e nunca houve atividade lucrativa. 

Assim seguirá esta página até a hora que Deus permitir. A diretriz ainda é e será a mesma. A gratidão aos leitores, assíduos ou eventuais é imensa. Sem eles os textos perdem seu sentido de utilidade e o objetivo documental torna-se inócuo. E com confiança nessa continuidade segue mais uma abordagem da queridíssima Festa do Carmo em São João del-Rei, que de maneira fraterna este blog oferta a quem a sugeriu como tema para esta data.


Festa de Nossa Senhora do Carmo

(cordialmente ofereço ao emérito pesquisador, musicista e escritor são-joanense Sr. Francisco José do Santos Braga, com destacada admiração por sua obra)


Ah! Essas cidades históricas... Quantos mistérios insondáveis! Como terá de fato se formado sua alma festiva? A linha mestra o sabemos, mas ela pragmaticamente explica tudo? Sim, somos filhos do Ciclo do Ouro. De sangue emboaba nos formamos. O camponês minhoto ou trás-montano ainda vive em nós. A imensa e extraordinária cultura africana corre em nós como um sangue na veia. A sabedoria ameraba completa nosso espírito. E não bastasse tal bendita mescla, mais tarde, ainda singraram os mares novos migrantes, de Itália, Síria, Líbano... Mais saberes, mais contribuições, mais convívio e intercâmbio. O barroquismo se compôs assim, nas cidades históricas em geral, tramando uma rede de tradições e um jeito de ser que facilmente distingue o mineiro, que de imediato revela-se nas cidades históricas, que agente sabe como é, mas se for explicar engasga... não tem livro que dê conta desse mistério: o DNA mineiro, que em São João del-Rei transborda orgulhosamente, sobeja e se engalana em suas vetustas festividades religiosas. 

De tantas festas, algumas revelam um poder transcendental de fervilhar o devoto, de fazê-lo se expressar tão espontaneamente em sua fé, engrandecendo o patrimônio imaterial da cidade. Tal é a Festa de Nossa Senhora do Carmo em São João del-Rei, sob os auspícios da Venerável Ordem Terceira do Monte Carmelo, que tanto zelo nutre por esta invocação mariana e tudo que lhe diz respeito. 

No magnífico templo setecentista, após concorrida novena, acorrem fiéis de toda parte no dia maior, 16 de julho, desde a aurora, quando, às 5 horas e 30 minutos, a Banda Municipal Santa Cecília tradicionalmente homenageia a Mãe Querida com maestria e disciplina. No ar o cheiro da pólvora rescende, foguetes acordam o povo, sinos relembram que é hora de prece. Festa é gratidão acima de tudo. 

Dia todo, todinho, é ir e vir na Casa de Deus. A igreja carmelita lota. É como se o devoto estivesse em romaria ao Monte Carmelo. Na celebração o sacerdote se supera na mensagem sagrada, que naquele dia parece mais penetrante. Promesseiros, turistas, devotos de toda parte, sussurram ave marias, derriçam contas na reza de um terço, leem orações impressas, ajoelham-se na Capela do Santíssimo. A igreja se ilumina e floresce, em ramalhetes e buquês o altar se colore e perfuma. Gente olha para cima, vê um anjinho entalhado sorrindo para ele; nunca o vira antes, mas estava ali a séculos... Aquele detalhe da talha do altar parece mais bonito nesse dia, quiçá novo... Não! É o mesmo de sempre, apenas que nos outros dias, na correria da vida, o fiel ajoelha na igreja, baixa o olhar e solta seu pranto, entrega sua amargura e põe sua esperança em Deus mas não tem tempo para apreciar. A festa permite a contemplação, o desenvolvimento do sentimento de pertença, a sintonia com a arte. O patrimônio material anda paralelo ao imaterial como os dois trilhos de um trem. Do contrário o primeiro é apenas uma vitrine bela, cara, inacessível. Isto é cultura. 

De fora, abnegados cidadãos se esmeram em confeccionar um tapete de rua. Lá vai um montão de serragem tingida, areia branca, terra preta. Tapeteiros formam um símbolo, um desenho ou mensagem, um brasão ou escudo. A rua mundana é sacralizada. Quem os mandou fazer, quem os pediu, por que o fazem se tão efêmeros? Imenso trabalho acocorado ao sol, sujando as mãos para em segundos ser pisoteado por uma multidão... Mas que higiene mental fazê-lo, que gratificante o resultado! Ah! Essas cidades históricas... 

Só a fé explica tudo, mas nada explica a fé. Quando sai o andor na porta principal,  o povo diante da igreja aplaudi. Ninguém ao microfone sugeriu as palmas, mas batem assim mesmo. É uma convenção coletiva, todos o sabem. No meio da procissão serpenteante, um devoto qualquer, do nada, grita repentino, entoando enfático: "Viva Nossa Senhora do Carmo!" e como um código que todo mundo entende, não há quem não responda viva, "Vi...vaaah!"... É a vida, a vivência. Por que ele gritou ali, naquele momento, nem antes nem depois? Nada diferente, a mesma marcha, mas o povo todo irrompe em resposta. Talvez o "viva" foi após um dobrado da banda ou de uma chuva de pétalas de um sobrado ou de uma descarga de fogos de artifício, que o povo mesmo vai colocando diante de suas casas ao longo do trajeto. Isto é fé. 

Quem foi na festa a dez anos a viu assim. A vinte, também. Se foi esse ano já sabia o que ia ver. Mas foi assim mesmo. Se for ano que vem, verá de novo, igualmente, novas caras, mas a mesma festa. Mas vai. Não deixa de ir, porque no colo de sua mãe viera a quarenta, cinquenta, sessenta anos atrás, e ganhara um saquinho de pipocas, ou talvez um algodão doce, um cartucho de amêndoas, um cata-vento, um pacotinho crocante de beijo quente, ou uma espiga de milho verde cozido. Por isto hoje traz o seu filho, ou neto. Ou terá sido um sineiro no passado? Voltará aquele devoto por saudade dos dobres? O bronze ainda ecoa em seu coração. Talvez não. O motivo talvez fosse por ter sido um dia anjinho de procissão e agora a espiritualidade o convoca de novo à festa. Ou paga uma promessa silenciosa marchando descalço na procissão pelos velhos paralelepípedos? Será para pedir uma nova graça? Por que volta...? Isto é tradição. 

A massa humana transita nas ruas que são memoriais coletivos. O cenário é inclusivo e ao mesmo tempo, exclusivo. Paisagem cultural... De antigos janelões pendem toalhas caprichosas e jarros de flores que os moradores disponibilizam. É a maneira deles enfeitar a passagem. Uns fiéis assistem de um largo. Não seguem, mas automaticamente se persignam ao passar o andor rodeado de lanternas e seus lábios balbuciam algo. Sinos de outras igrejas enchem o ar homenageando o andor que passa. O andor balanceia em ombros, triunfal, mas sem soberba. Todo mundo fotografa, filma. Quer uma lembrança, um registro. 

Na Rua Direita o cortejo toma a reta final. O giro pelo centro histórico está completo. Um belo estandarte abre alas; irmãos de opa de muitos sodalícios trazem varas de prata ou são ceroferários, carregando grossas velas de cera. Crianças olham atentas. Sua cabecinha registra tudo. Os sinos carmelitas badalam de novo. Os andores da Virgem e de São Simão Stock se alinham no Largo do Carmo. Quando o pálio chega o foguetório espouca no ar. Não um foguetório qualquer, mas sim um show pirotécnico ao pé da letra. O povo lota as vias e o céu parece que ganha mais estrelas ou que elas estão mais perto, luminosas, resplandecentes. Alguns fogo sugerem um cataclisma de luzes. Parece que um êxtase coletivo toma conta de tudo. 

A procissão entra; não cabe todo mundo. Os mais impetuosos querem tocar na imagem, esticam os braços, nem que seja a ponta dos dedos, como fizera aquela enferma que tocou a orla do manto do Senhor na multidão. Querem levar uma flor do andor para casa. Fica no oratório porque é benta, dentro do travesseiro para abençoar o sono, no bolso do paletó para guardar o usuário, desidratada na gaveta do escritório para proteger o trabalhador, pétalas de uma rosa do andor numa bacia de água para um banho expurgam todos os males, ou fervida em chá aliviaria enfermidades. 

De fora é burburinho: confraternização, barraca de doces, pastel, víspora, porque festa é isto também. Se assim não fosse não prestava. É um bônus.

Depois de uma festa dessas o devoto crê que muitas almas foram resgatadas do purgatório pela força de Maria. Feliz daquele que usa seu escapulário! Quantos mistérios insondáveis... Ah! Essas cidades históricas... 

"parece que um êxtase coletivo toma conta de tudo" ... 

"talvez fosse por ter sido um dia anjinho de procissão" ... 

"Um belo estandarte abre alas" ...

"O cenário é inclusivo e ao mesmo tempo, exclusivo" ...

"O andor balanceia em ombros, triunfal, mas sem soberba" ...

 "se persignam ao passar o andor rodeado de lanternas" ...

"Só a fé explica tudo, mas nada explica a fé" ... 

"são ceroferários, carregando grossas velas de cera"...

"A festa permite a contemplação" ... 

"Crianças olham atentas. Sua cabecinha registra tudo"... 

"Na Rua Direita o cortejo toma a reta final" ...

"São Simão Stock se alinha no Largo do Carmo"...

"uma chuva de pétalas de um sobrado" ...

"fogos de artifício sugestionam um cataclisma de luzes" ...

"O céu parece que ganha mais estrelas" ...

Notas e Créditos: 

* Texto: Ulisses Passarelli.
** Fotos: Iago C.S. Passarelli, 16/07/2015.
*** Sobre esta comemoração, leia também neste blog: 


segunda-feira, 13 de julho de 2015

Bentinhos & Patuás

... e outros objetos da religiosidade popular

A cultura popular possui meandros profundos na religiosidade. Ela envereda pela espiritualidade, pelo misticismo, pela crendice, pela doutrina. Tudo se conflui no mesmo porto da fé, se irmana de tal modo que não dá para separar os elementos pois de fato se fundem num todo. 

A participação frequente nos ritos e celebrações da Igreja não desestimula o povo de suas práticas culturais religiosas caseiras, ancestrais e hereditárias. Assim não dispensam a reza forte, as simpatias, as promessas, a produção de bentinhos. Bentinho é como popularmente se chama qualquer objeto religioso individual para se trazer junto ao corpo, no geral oculto, preceito que garantiria sua eficácia. Um simples paninho bordado ou estampado um símbolo universal como uma estrela é um bentinho, desde que pendurado ao pescoço ou costurado a uma bandeira de folia ou congado, para irradiar luz, trazer boa sorte, abrir os caminhos afastando todos os malefícios. 

Elementos da natureza tornam-se poderosos recursos contra as forças do mal. Trazer no bolso da calça um dente de alho (do roxo é melhor), uma semente de olho de boi, fava de Santo Inácio, fava de Ogum, tento, conta de lágrima, ou uma concha do mar, ou um cavaco de madeira dura como pau-pereira ou candeia, ou ainda uma lasca de cipó (cruzeiro, milhome, azougue, caboclo, de São João, beira-corgo, escada de macaco) ou um pedaço de raiz de para-tudo ou carapiá, ou ainda, quem sabe, um raminho de arruda atrás da orelha, ou de alecrim de horta na bolsa... a tudo isto e muito mais se atribui um caráter protetivo, um poder sobrenatural. 

Alguns objetos gozam entretanto de um prestígio especial pois neles se deposita maior crença de funcionalidade: escapulários, talismãs, amuletos e patuás. 

Dos mais populares é o escapulário. É formado por dois pequenos pedaços retangulares de pano, sobre os quais estão impressos a imagem de um santo (a) e às vezes escudo do sodalício religioso da qual é patrono. Preso a um duplo cordão ou fita, fica uma parte voltada para frente, sobre o peito e outra para as costas, passando ambos os cordões ou fitas sobre a escápula, donde lhe vem o nome, cada cordão sobre um ombro. 

Em verdade pode-se fazer escapulário de qualquer santo mas de fato o mais conhecido talvez seja o do Carmo. Em l6/07/1251, o santo inglês ermitão, São Simão Stock, voltando à Europa de uma viagem ao Monte Carmelo (no Oriente), “teve uma visão de Nossa Senhora, que rodeada de anjos, lhe entregou o escapulário, como distintivo dos carmelitas, com a promessa de que, quem o usasse e com ele morresse, não cairia no inferno. A Irmandade do Escapulário, por ele fundada, acabou fazendo parte da Ordem do Carmo que, graças àquela promessa mariana e ao privilégio sabatino, se espalhou pelo mundo inteiro”, segundo GAIO SOBRINHO (1997). O privilégio sabatino referido diz que o devoto verdadeiro que usar o escapulário e com ele morrer, será resgatado no purgatório pela Virgem, no primeiro sábado após sua morte, aguardando com grande vantagem o juízo final. 

Outros escapulários que gozam de prestígio são o de Nossa Senhora das Mercês e do Sagrado Coração de Jesus. 

Além dos escapulários, medalhas, terços, rosários, cordões... também muito popular é o amuleto - um objeto místico de extrema força espiritual protetiva a quem o usa. O amuleto resguarda, passivamente, sem emitir força externa que possa atingir outrem. Pode ser um objeto qualquer preparado por alguém hábil no assunto: um medalha de santo pode ser transformada num amuleto, uma cruz de raiz de guiné, uma figa, uma ferradura, um pedra, uma concha do mar, etc. 

O talismã não se confunde com o amuleto, embora em si possa ser praticamente idêntico no aspecto mas não na potência. É um objeto místico feito com qualquer espécie de material, desde que energizado com tal força mágica que seria capaz de agir à distância, buscando meios de alcançar um resultado ativo em prol de quem o usa. O talismã basicamente seria o mesmo amuleto, com a diferença que muito bem aponta CASCUDO (1978) de ter força ativa, como se fosse vivo: ele externa seu poder, irradia sob o comando mental de seu dono. O talismã é portanto mais elaborado que o amuleto. 

O patuá é um objeto místico oculto numa pequenina bolsa de pano ou couro costurado em segredo para que ninguém saiba o conteúdo nem a forma como foi feito. O pano virgem, isto é, nunca usado para nada é o mais indicado. Tecido vermelho garante-lhe maior energia, evidente analogia à cor do sangue, símbolo da vitalidade; pano amarelo atrai dinheiro. O patuá é levado na carteira para trazer fartura, é carregado na algibeira, no alforje do cavaleiro, na bolsa da senhora, pendurado ao pescoço por um cordão, é pendurado na parte de traz de um bandeira de grupo folclórico, nalgum ponto da farda do palhaço da folia de reis. Existem composições infindáveis de conteúdo e fórmula de composição, cujo segredo é sempre a garantia absoluta do sucesso. Se alguém descobre o que tem ou como foi feito torna-se inócuo.

Patuás para fartura contém em geral uma moeda, às vezes aquela que foi ofertada num pires ao presépio; outras vezes aquela que por acaso se achou caída na rua; ainda mais, a da simpatia de Santo Onofre (*), protetor dos cachaceiros e santo invocado contra os vícios do alcoolismo: uma moeda é posta no fundo de um pequeno copo de dose de cachaça e é submersa na mesma. O copo cheio de pinga com a moeda no fundo é posto em frente à imagem deste santo. Quando a aguardente se esvai por completo, a moeda é tirada e com ela é feito o patuá. Outras vezes, quando a imagem é pequenina e metálica, o próprio Santo Onofre é imerso no copo de cachaça. É comum pingar uma gota de parafina derretida em cada lado (na cara e na coroa), vela oferecida às almas, que garante abundância. ou ao referido santo.

Outro patuá para fartura é com três caroços de romã, com a respectiva polpa. É parte de uma simpatia muito difundida: no Dia de Reis (06 de janeiro), são reservados nove caroços de uma romã. Três se come, três joga-se para traz por cima dos ombros, sem ver onde cairão e com três se faz o dito patuá. Os engulidos garantem saúde, paz, proteção; os jogados expurgam os males (desde que respeitado o velho preceito de ser por cima dos ombros e de não olhar para traz, sob pena do mal voltar tal e qual a mulher de Ló no episódio bíblico) e os do patuá deverão ser conservados na bolsa de dinheiro até o outro ano, quando então pode ser descartado por um novo. Um patuá pode conter apenas uma medalhinha de santo costurada num pano, mas assim feita fica longe das vistas curiosas e garante maior eficácia. Poderá também conter um papelzinho dobrado diversas vezes que traz escrita uma oração forte, reza brava, que não se pronuncia à toa a não ser nos momentos extremos e não se ensina a qualquer pessoa. 

E vai por aí afora um sem-número de recursos preventivos que demonstram o quanto o elemento popular se preocupa com a invasão do mal, a sua influência perniciosa. Seja nos objetos em contato corporal, praticamente personalizados como os talismãs, seja em contato com a moradia ou com a benfeitoria, como uma ferradura presa na tábua da porta, um chifre de boi na ponta de uma estaca da horta ou mesmo da caveira de cabeça bovina inteira na entrada de um rancho ou curral, ou até na universal cruz nas portões, os objetos protetivos são altamente significativos no âmbito da cultura popular. 

Uma figa entalhada em madeira.
São João del-Rei/MG.

Notas e Créditos

* Os processos religiosos sincréticos aproximam Santo Onofre ao orixá Ossãe, senhor das folhas medicinais das matas. Neste aspecto é atribuído ao santo grande força nas matas. 
** Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotos: Iago C.S. Passarelli

Referências Bibliográficas

CASCUDO, Luís da Câmara. Meleagro: pesquisas do catimbó e notas da magia branca no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Agir, 1978. 208p. p.81.

GAIO SOBRINHO, Antônio. Santos negros estrangeiros. São João del-Rei: [s.n]. 1997. 153p. p.61.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Erês

Os Guias de Criança

A Bíblia Sagrada nos diz: “Da boca das crianças e dos pequeninos sai um louvor que confunde vossos adversários e que reduz ao silêncio vossos inimigos” (Salmo 8, 3)

Segundo acredita a doutrina da umbanda em geral, “erês” ou “ierês” são espíritos infantis, de crianças desencarnadas, que em vez de se dirigirem para uma nova reencarnação, tornaram-se entidades espirituais (guias), trabalhando nas tendas ou terreiros para a caridade. Agem muito bem no desmanche de feitiços de qualquer espécie. Em essência os erês são referidos como espíritos de elevada pureza, que ao se manifestarem apresentam-se sob forma arquetípica infantil. Daí o médium que lhes serve de aparelho à incorporação comporta-se tal como uma criança, menino ou menina

Tais guias possuem nomes próprios, a maioria no diminutivo. Na umbanda, por exemplo: Ismael, Benjamim, Pedrinho, Luizinho, Joaquinzinho, Joãozinho, Chiquinho, etc. - são os “meninos” - Mariazinha (da Praia, da Cachoeira, do Jardim ...), Terezinha (... de Angola), Izildinha, Iarinha, Odetinha, Estrelinha, Aninha, etc. - as “meninas”.

Trabalham com velas azuis e rosas ou com essas duas cores conjugadas na mesma vela. Eventualmente usam velas de outras cores, como branco, amarelo e verde. 

Seu dia votivo é a quarta-feira, junto com os pretos velhos, a quem atendem como supervisores nos trabalhos, chamando-os sempre de "vovôs".

São espíritos brincalhões, alegres, cheios de molecagens sadias, agindo em seus aparelhos ("cavalos") de forma pueril: brincam no chão com carrinhos e bonecas, chupam bico (chupeta), pedem balas, confeitos e maria-mole. A brincar, desfazem trabalhos de magia negativa, agindo em nome de São Cosme e São Damião. 

As insígnias principais são a chupeta e o estilingue.

Os alimentos preferidos são doces de todo tipo, balas, confeitos, jujubas, pipocas, cocadas, pés-de-moleque, arroz-doce, maria-mole e refrigerantes. Tem predileção por bala de mel e bala de goma com a qual fazem as mais fortes firmezas.

Os trabalhos são entregues em jardins floridos sem espinho ou em campos gramados, sob uma árvore; eventualmente em cachoeiras.

A data da festa própria é 27 de setembro, coincidindo com o dia de São Cosme e São Damião, na maioria dos terreiros de umbanda e 12 de outubro nalguns barracões de candomblé, dia de Nossa Senhora Aparecida e das crianças.

Surgem também nos barracões de candomblé sob a designação coletiva de “erês”, representando espíritos protetores das iaôs (filhas de santo): Sambangola, Pé-de-Pavão, Beké, Estrelinha, Cavunje, Chico-Chico, Deuandá, Bom-Nome, Mbámbi, Dourado, Cardeal, etc., segundo o Dicionário de Câmara Cascudo.

Via de regra, no candomblé se ligam ao orixá Ibeiji e na umbanda geralmente a Oxalá, como uma falange, embora haja um ramo doutrinário que os considerem numa linha própria, comandada por Yori. Alguns erês vibram eventualmente no enfeixamento de energético de outros orixás. Diferenciam-se ainda da visão do espiritismo, que segundo algumas concepções se diz que as crianças ao morrerem reencarnam rapidamente; enquanto o catolicismo popular, que crê se transformarem em anjos, dada a inocência. Está óbvio para a umbanda, que não são todas as crianças falecidas que viram entidades. Em alguns lugares são relacionadas aos santos gêmeos São Crispim e São Crispiniano e ainda à entidade Alabá, irmanada a Doum.

Existem interpretações de alguns terreiros que certos espíritos de crianças e adolescentes trabalham na esquerda, chamados “Exus Mirins”.

Na Linha do Oriente há “Gogique e Gogideque”, moleques da Índia, que trabalham mais no catimbó. (Cascudo, Meleagro, p.88).


Firmeza para erês na Cachoeira do Bom Despacho,
Serra de São José, Santa Cruz de Minas/MG. 

Referências Bibliográficas

Bíblia Sagrada. 6.ed. São Paulo: Ave Maria, 1965. 1602 p. + anexos.

CASCUDO, Luís da Câmara. Meleagro: pesquisa do catimbó e notas da magia branca no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Agir, 1978. 208p.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. 930 p.il.

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Fotografia: Iago C.S. Passarelli, 06/12/2015.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Vilão, um congado de corte

(agradecimentos especiais ao Imperador do Divino José Cláudio Henriques, pelas fotos do grupo de Carmo da Mata gentilmente cedidas para esta postagem)


Sob o nome de vilão é conhecida em Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Santa Catarina uma dança folclórica outrora difundida, com movimentação circular e em filas, acompanhada por viola e eventualmente outros instrumentos. O violeiro comanda a movimentação. Existem algumas variantes coreográficas chamadas vilão de agulha, vilão de mala, vilão de mochila, vilão de bengala, vilão de lenço (ou de fita), vilão de faca, vilão de pau (ou de vara) _ nomes motivados pelos implementos adotados nas coreografias. É de provável origem ibérica, com registros em Portugal desde o século XV, segundo CASCUDO [s.d], que a diz também conhecida na Ilha da Madeira ("bailinho dos vilões"). Seria talvez uma dança rural, dança dos camponeses de uma vila, vilões.

Em Minas Gerais uma das formas de vilão se adaptou ao ciclo festivo do rosário, convertida em folguedo de fundo religioso. É este vilão que é tratado na presente postagem. É um dos tipos básicos do congado em Minas Gerais, que dentre tantas modalidades se destaca pelo seu ritmo acelerado e uma dança agitada, enérgica que em geral usa acessórios tais como manguaras, que são varas longas e enfeitadas de fitas multicores e em alguns grupos imitações de facões feitos em madeira. 

Desta forma, os dançantes, sob o comando do capitão, se dispõe em dupla fila e dançam percutindo as manguaras ("vilão de vara" ou "de pau") e mais raramente os facões ("vilão de faca"), como num simulacro guerreiro. São várias coreografias ensaiadas, que põe à prova a habilidade do "vilãozeiro" (congadeiro dançador de vilão) e a sua resistência física. Alguns grupos apresentam um número à parte, a dança das fitas, trançando ao redor de um pequeno poste de madeira, fitas coloridas em movimentação vivaz e cadenciada. A título de exemplo, o grupo de Carmo da Mata, presente na Festa do Divino de São João del-Rei em 2002 e 2003, despediu-se apresentando o pau de fitas, encimado por um pequeno oratório contendo a imagem de Santa Efigênia, a mesma santa de sua bandeira. 

A formatação das guardas de vilão no geral é a seguinte: duas filas de dançantes, sem instrumentos, só com as varas e facões; instrumentistas, na retaguarda e algumas vezes na dianteira, tocando em geral sanfona, pandeiro e caixa; bandeireiro, adiante de todos como abre-alas; capitão, no comando do grupo em posição relativamente livre. Alguns grupos não tem canto, só toque instrumental; mas outros, são como os demais congados, com canto solista pelo capitão e resposta coral pelos demais dançantes. 

Compete ao vilão fazer a guarda simbólica de todos os outros congados de uma festa, como se fosse um batalhão de infantaria. Por isto, via de regra, na montagem dos cortejos, vem à frente de todos, abrindo caminho com sua percussão cadenciada de varas, cortando os males em cruzamentos das manguaras como se fossem tesouras. Daí os congadeiros dizerem que o vilão é uma "guarda de corte" (pronúncia aberta, "córte"). Outras guardas podem até vir na frente, mas apenas quando não tem nenhum vilão naquela festa.

É muito pitoresco ver a cena do vilão no seu papel protetivo do cortejo. Na dianteira, em marcha, puxando todos os outros congados que não são vilões (marujos, catupés, congos, caboclos, moçambiques...), a um dado sinal do capitão, as duas filas saem por fora do cortejo, uma em cada lateral e correm em sentido contrário, sempre por fora, como se estivessem na contramão, e vão até o último moçambique que fecha o cortejo, cruzam as filas por trás do reinado, mudando cada fila de lado e retornam para a dianteira, ainda correndo por fora, até se recomporem na posição original de abre-alas. 

Por vezes, nesse retorno à frente do cortejo, retiram o chapéu e o equilibram na ponta da vara e a erguem e vem vibrando ou girando em sua corrida, dando um efeito visual único. 

Cumpre notar que esta movimentação curiosa é exclusiva dos vilões, e que não se vê toda hora. A bandeira e os instrumentistas permanecem na dianteira, sem acompanhar os portadores das varas. É nesse movimento coreográfico que acreditam estar o mistério de sua ação protetiva à coletividade das irmandades congadeiras. 

É de se frisar mais uma vez que este movimento e o papel em si é uma prerrogativa do vilão. Se outra guarda o fizer gera um ciclo de demandas na festa, fomentando o desequilíbrio entre os congados, com cantorias de pontos, desafios entre grupos, provocações, por se considerar um abuso.

Há congadeiros que acreditam que o vilão representa os negros que traíam os escravos, delatando esconderijos nos quilombos e os planos de fuga das senzalas. Em alguns grupos os vilãozeiros adaptavam ao chapéu uma espécie de franja na parte da frente, de fitas e penduricalhos, sobre os olhos, tampando-os parcialmente, que nesse contexto mítico seria para disfarçar sua fisionomia de traidor. Mas ao mesmo tempo, tendo sido perdoados foram incorporados na Irmandade do Rosário e sua penitência, digamos assim é guardar os demais dançantes.

MARTINS (1988) afirmou ser o vilão "o caçula, o mais novo dos sete irmãos da alegre família congadeira", dizendo-o em pleno crescimento. 

Na assaz conhecida lenda da aparição de Nossa Senhora do Rosário, da qual existem muitas versões, os brancos ao buscarem a santa com banda de música para levar à igreja ela sempre sumia no dia seguinte reaparecendo no local de origem (uma serra, uma mata, uma cachoeira, uma loca de pedra ou gruta, o mar... conforme a versão). Ela só veio para a igreja e aceitou permanecer quando os negros a buscaram com o congado. Assim mesmo, cada grupo que passava ela manifestava de uma forma, ora balanceando ora sorrindo, mas não saía no andor. Quando o vilão passou ela "aluiu", ou seja, arredou, moveu um pouco, fez sinal de movimentar-se, ensaiou uma saída. Só quando passou o moçambique é que de fato ela acompanhou o cortejo e permaneceu na igreja (*). 

Quanto à distribuição geográfica a principal área de ocorrência em Minas é na zona oeste e centro-oeste, de onde se estende rumo à área limítrofe com o Campo das Vertentes (**). É plausível que migrantes de Minas Gerais tenham introduzido o vilão-congado em Goiás, passando a se incorporar aos festejos que já tinham seus congos e moçambiques. Em Santa Catarina, na cidade de São Francisco do Sul existe também um vilão, formado por jovens que dançam percutindo varas, mas não guardam vínculo com os festejos do Rosário, se apresentando em diversas ocasiões. 

Em outras partes do Brasil o vilão é uma dança propriamente dita e não um folguedo. Como manifestação avulsa, independente do Ciclo do Rosário, acontece por exemplo no contexto dos fandangos caiçaras.

O vilão representa sempre uma nota de grande alegria na Festa do Rosário e na do Divino, com sua música vivaz, seu colorido intenso e a dança agitada e atraente, que felizmente envolve e cativa os jovens. 

Vilão de Lavras/MG, durante a Festa do Rosário na mesma cidade. 26/09/2004. 
Vilão de Carmo da Mata/MG, durante a Festa do Divino em São João del-Rei,
fazendo uma apresentação com as facas de madeira. Foto: José Cláudio Henriques, 19/05/2002. 

Vilão de Carmo da Mata/MG, durante a Festa do Divino em São João del-Rei,
em veneração ao andor do Espírito Santo, no Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos.
 Foto: José Cláudio Henriques, 19/05/2002.  

Vilão de Guarita (Santo Antônio do Amparo/MG),
durante a Festa do Rosário em Ibituruna. 30/06/2013. 
.
Vilão de Bom Sucesso/MG, durante a Festa do Divino em São João del-Rei. 04/06/2006. 

Vilão de Perdões/MG, durante a Festa do Divino em São João del-Rei. 19/05/2013. 

Referências Bibliográficas

AZEVEDO, F. Corrêa de. Fandango do Paraná. Rio de Janeiro: MEC/FUNARTE/INF, 1978. 50p. Cadernos de Folclore, n.23. 

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. 930p.il. Verbete: Vilão. 

GIFFONI, M.A. Corrêa. Danças folclóricas brasileiras: suas aplicações educativas. 2.ed. São Paulo: Melhoramentos,1964. 361p.

MARTINS, Saul. Congado: família de sete irmãos. Belo Horizonte: SESC, 1988. 


Notas e Créditos 

* Ver a este respeito a seguinte postagem neste blog: COMO SURGIU O CONGADO PARA O CONGADEIRO.
** Ao redor de Oliveira e Divinópolis, pelos municípios limítrofes difundiram-se os grupos de vilão. Destaque também para Lavras, Perdões, Santo Antônio do Amparo, Bom Sucesso, Itapecerica, Carmo da Mata, etc. Informações orais ainda não confirmadas dão conta de terem existido grupos em São Tiago, Ibituruna e Passa Tempo, talvez seu limite geográfico. 
*** Texto: Ulisses Passarelli
**** Fotos: Carmo da Mata: José Cláudio Henriques; Guarita e Perdões, Iago C.S. Passarelli; Bom Sucesso e Lavras, Ulisses Passarelli.