Bem vindo!

Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




domingo, 29 de setembro de 2013

Palhaços de Folias de Reis: ambiguidade e enigma - parte 2

As folias de Reis e similares obedecem a uma série de rituais protocolares na chegada a uma casa. A grosso modo e independente do santo estampado na bandeira, no geral, chegam em silêncio junto à porta da casa visitada. A um sinal do mestre, por vezes de seu apito, irrompem os instrumentos e logo entra a cantoria que se chama tradicionalmente de “abrição de porta”, um pedido em versos no qual é solicitada a abertura da casa ao proprietário, pois um santo veio visitar.

O passo seguinte caso o pedido seja atendido é  o de recebimento da bandeira e elogio aos donos da casa. Narra-se então algo sobre o santo festejado e em seu nome se pede uma oferta. A seguir o óbolo é motivo de agradecimento cantado. A bandeira é solicitada também por via cantada, sequenciada por pedidos de proteção ao lar e despedidas.

É isto, em suma. Mas, eventualmente, o ritual ou a sequência de passos, se incrementa ou abrevia, consoante a receptividade. Se a folia tiver um palhaço os procedimentos se complexam.

Isto ocorre porque o palhaço se posta em vanguarda e como intermediário irreverente entre visitados e visitantes, fazendo uma interlocução livre, em verso ou prosa. Se for numa fazenda compete-lhe adiantar-se até a sede enquanto a folia aguarda a resposta de fora. Vai então cuidando de espantar cachorro bravo, levantar vaca deitada no caminho, tirar um galho caído. Deixa o caminho desimpedido à folia.

Folia de Reis de Ibertioga/MG, durante a Festa do Divino em São João del-Rei (Bairro Matosinhos). 
Foto: José Cláudio Henriques, 2002, gentilmente cedida para esta postagem. 

Se for numa casa, logo corre a gritar aos moradores[1]:

“Venha abrir a sua porta
E acender a sua luz,
Quem veio lhe visitar
Os mensageiros de Jesus!” 

A posição do palhaço é de muita liberdade e as concepções sobre seu papel ou a forma de se comportar variam de um grupo para outro. Em certas folias o palhaço fica de fora até o mestre terminar toda a cantoria e só então este pergunta ao dono da casa se deseja ver alguma brincadeira do palhaço e se consente sua presença dentro da casa. Caso afirmativo é que o chama para dentro. Algumas áreas rurais das Vertentes usavam desse sistema. Enquanto esperava não era raro o palhaço correr pela porta dos fundos, entrar na cozinha e roubar coisas de pouco valor, como uma réstia de cebola ou alho, algumas bananas, abóbora ou ovo. Quando chegava sua hora de entrar em cena, mostrava o produto do roubo e com gaiatices ia pedindo ao dono da casa: que seus filhos estão com fome; que tem trinta e sete crianças só com a Catirina [2]; que ela é uma patroa brava, etc. O palhaço é um grande pedinchão.

Numa dessas estripulias, narrou-me um saudoso folião do Elvas[3], que as folias daquela área pararam de empregar o palhaço a muitos anos, porque aconteceu um fato lamentável certa vez. Uma folia visitando uma casa daquelas comunidades em derredor, trouxe consigo um palhaço meio abusado nas brincadeiras. O grupo chegou num sítio no escuro da noite. O dono da casa veio com lamparina à mão abrir a porta enquanto a esposa, com gravidez avançada correu à cozinha para adiantar um cafezinho aos nobres visitantes. O palhaço deu volta pelos fundos e entrou sorrateiro pela porta de trás. A mulher que não o tinha visto ouviu o barulho de seus passos e se virou de repente. Ele deu um grito e pulou na frente dela: “ô... patroooa!!!”. Ela deu um grito de pavor e com a crise de susto entrou em trabalho de parto. Desnecessário descrever a complicação de semelhante circunstância.

Noutros lugares, porém, mormente na cidade, o palhaço é o primeiro a entrar na casa e em alta voz chega pedindo licença e avisando ao mestre: “olha só o que eu encontrei!”, apontando para um quadro de santo na parede e então o mestre é obrigado a cantar um louvor. Se ver um presépio armado tem por obrigação absoluta e inquestionável se ajoelhar perante o mesmo e assim retira respeitosamente a máscara. Se souber versificar, declama a sua loa, que pode ser simples ou longa, mas via de regra deve conter a base da profecia messiânica até a natividade e visita dos magos e pastores. Após isto pode se levantar e vestir a máscara. Então o mestre canta sua embaixada laudatória e durante esta o palhaço não pode fazer interrupções ou gracejos, só dançar de forma comedida e emitir expressões que reforçam o sentido da cantoria, como: “olha que beleza!” ou “que mistério tão profundo!”.

Mas se não sabe este esquema então é obrigado a uma penitência de permanecer de joelho enquanto durar a cantoria para o presépio.

Uma brincadeira de praxe efetivada entre palhaço e anfitrião é o da oferta inusitada e provocativa. O dono da casa presenteia o palhaço com algo inesperado, de pouco valor, como um prego, um biscoito, uma banana, uma xícara... e pede ao palhaço que faça um verso para agradecer, no qual deve conter uma referência explícita àquela oferta.

Compete ao palhaço observar detalhes que poderiam passar despercebidos ao bandeireiro no trato dispensado à bandeira pelo anfitrião. É de costume o homem receber a bandeira com um beijo e passá-la ao ósculo dos filhos e depois a entrega à esposa, que a leva para o quarto do casal. Quando há visibilidade do cômodo o palhaço observa discretamente se vai amarrar algo na bandeira, tal como dinheiro, uma nova flor (natural ou artificial), uma fita de cetim, jogar perfume ou por um ramo de erva aromática (alecrim, manjericão, patchouli, etc.). Então deve ter em mente o aspecto da bandeira, cada flor que já existe para anunciar ao mestre durante o interlúdio que... [4]

“Enfeitou nossa bandeira,
Com uma rosa do jardim,
Santos Reis que abençoe
para sempre, amém sem fim...”

Então o mestre cantará seu agradecimento. Se é um pouco de perfume derramado sobre o pano da bandeira então corre ao mestre dizendo que do céu caiu água de cheiro, e o mestre saberá manifestar seu agradecimento em versos.


Um palhaço com gesto airoso apresenta a bandeira de uma folia de São Sebastião, no distrito de São Sebastião da Vitória, São João del-Rei/MG. Autor da foto e data não identificados. Gentilmente cedida por Roberto Batista Reis. 

Para o folião é vergonhoso sair da casa sem perceber que algo diferente foi posto na bandeira. Indica despreparo e falta de zelo com a guia sagrada.

Sabendo desta tradição tem morador que gosta de testar a esperteza do folião e faz provas silenciosas. Se o folião não passar por elas dá o direito ao dono da casa reter a bandeira por tempo indeterminado, que se diz “prender” a bandeira, e, até o folião responder a contento, não pode ir embora.

Uma das formas mais típicas é por dinheiro na bandeira, prendendo-o por um alfinete. Sobre este ato em especial divergem os foliões sobre o procedimento. Há quem o faça por promessa tendo então o caráter de ex-voto e não deve ser retirado passando a incorporar a bandeira. Neste caso o mestre deve ser avisado[5]. Isto acontece em várias regiões. 


Cédula de R$1,00 afixada permanentemente numa bandeira de folia de Reis, junto com flores, fitas e fotografias 3 x 4 (ex-votos). Ituverava / SP, durante Encontro de Folias em Ribeirão Preto. Foto: Ulisses Passarelli, 2011. 

Alguns mestres consideram que o dinheiro posto na bandeira vira enfeite da mesma e não deve ser retirado, independente de promessa[6]. Já outros consideram uma profunda falta de respeito e que desencadeia um ritual [7]. Neste caso o palhaço observador avisa ao mestre no ato da entrega:

“A bandeira veio de dentro ( ou do quarto)[8]
Com um enfeite diferente;
O dinheiro que está nela
Não pode seguir em frente...”

Ou:

“Santos Reis é milagroso,[9]
Ele anda o mundo inteiro,
Onde é que já se viu
Misturar santo com dinheiro?”

O mestre entra então com uma cantoria vigorosa, quase ofensiva, onde fala sobre o desrespeito com o santo e pede ao dono da casa que se arrependa de seu pecado, se ajoelhe diante da bandeira, desamarre o dinheiro, ponha no embornal (que é o lugar certo). Isto retarda um pouco o ritual e em verdade por vezes o mestre propositalmente alonga a versalhada para aumentar o tempo que o dono da casa deverá permanecer ajoelhado, visando um castigo penitencial ao anfitrião, como vi diversas vezes em São João del-Rei. 

Resta dizer que nos casos de teste ao folião é comum o dinheiro ser posto bem escondido, dobrado por trás de uma fita, por exemplo, ou sob as flores, o que obriga o palhaço ou na sua falta ao bandeireiro, ter um jogo sagaz de visão. Se a bandeira acaso não for presa e o dono liberar sem que os foliões percebam, acreditam que dali para frente a folia desanda: perde afinação, acontecem discussões entre os participantes, folião adoece, palhaço passa mal, arrebenta couro da caixa ou corda do violão. Em suma: acontece um desequilíbrio místico.

Está claro, que no ato de uma visita folieira, quanto mais o dono da casa conhece os rituais de folia, mais complexos eles serão pois as exigências e testes do “patrão” (dono da casa) não ficam sem resposta. Em verdade existem vários outros rituais de folia que oportunamente este blog estará abordando em outras postagens.

* Texto: Ulisses Passarelli



[1] - Folia “Embaixada Santa”, São João del-Rei, Bairro Araçá, 2011.
[2] - Tradicionalmente considerada a “mulher do palhaço”. Na verdade a catirina era um homem travestido de mulher e mascarado como o palhaço, fazendo com ele uma série de brincadeiras a dois, peripécias cômicas e tradicionais nas roças.
[3] - Sr. Aquino Orff, por volta de 2002. Residia no povoado do Elvas, do lado tiradentino.
[4] - Folia do Mestre Luís Santana, São João del-Rei, segundo o mesmo, em 1993.
[5] - Mestre Luís Cândido Gonçalves, povoado do Fé, São João del-Rei, 1993.
[6] - Mestre Luís Santana, São João del-Rei, 1996.
[7] - Mestre Luís Carlos Rosa, folia Embaixada Santa, São João del-Rei, 2010.
[8] - Informado pelo saudoso folieiro “Chico Gago”, morador das Águas Gerais, São João del-Rei, 1998.
[9] - Informado pelo Mestre Jorge Cassiano Borges, de São João del-Rei, morador do Tijuco, em 2009.

sábado, 28 de setembro de 2013

Ex-votos de Matosinhos

Em São João del-Rei é muito antigo e tradicional o costume votivo de ofertar nas igrejas uma memória de graça alcançada. São os ex-votos. 

Um velho texto jornalístico da cidade informou sobre um destes, achado no atual distrito de Emboabas: 

"S.Francisco de Assis do Onça (do correspondente). Continua em construção a matriz deste distrito, tendo sido demolida toda a parte velha. Foi encontrado debaixo do altar-mor curiosíssimo quadro de madeira, pintado a óleo, com os seguintes dizeres: "Milagre que fez S.Francisco de Assis do Onça a D.Delfina Maria de S.José, que estando seu irmão Gabriel Fernandes do Nascimento muito enfermo de huma febre pôdre apegando-se com o dicto Santo de que logo foi alcançando milhoras, até que de todo livre da referida molestia expoz esta memoria na hera de 1823."

Passando por Conceição da Barra de Minas nas primeiras décadas do século XIX, o francês Saint-Hilaire comentou sobre os ex-votos do lugar: 

"Parece que há muita devoção à Virgem da Conceição, pois existe na sua igreja grande número de pequenos quadros, que representam curas operadas milagrosamente por sua intercessão."

No Bairro de Matosinhos, nesta cidade, a "Sala dos Milagres" congrega vários desses ex-votos, dignos de nota, em diversos estilos, alguns do século XVIII e XIX. Outros são dos novecentos e até mais recentes, entre pinturas, desenhos, fotografias, objetos (sobretudo peças de cera). Guardam um grande valor etnográfico e se alinham perfeitamente com outros exemplares ex-votivos dos centros de romaria. São reveladores da ligação entre o homem e o mundo sagrado, testemunhas concretas da fé do povo, provas materiais que buscam atestar as graças alcançadas pela força da fé, fortalecendo o prestígio das invocações aos santos. 

Como exemplo dessas peças veja as fotografias abaixo: 

Transcrição: "Antonio Carlos de Resende sofreu  uma grande Pneumonia, que o Senhor Bom Jesus de Mattosinho 
o salvou por um milagre. No anno de 1896." 

 Ex-voto do século XVIII que mostra um escravo sendo milagrosamente salvo
 de um afogamento por obra do Senhor de Matosinhos. 

Ex-voto de 1887 dedicado a Nossa Senhora da Conceição pela cura de feridas advindas de uma queda, 
sofrida por uma mãe e seu filho. Santuário de Matosinhos. 

Referências Bibliográficas

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às Nascentes do Rio São Francisco e pela Província de Goiás. Rio de Janeiro: Nacional, 1944. 343p. p.128. Coleção Brasiliana, Série 5ª, v.68.  

Referência Hemerográfica

Diário do Comércio, São João del-Rei, n.75, 02/06/1938 (Acervo da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida)
Notas e Créditos

* Texto e pesquisa: Ulisses Passarelli
** Fotos: Iago C.S. Passarelli, 2013.
*** Veja também:

Dois ex-votos centenário da Terra de Nhá-Chica
Ex-votos
Ainda dos ex-votos


sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Cosme e Damião: o verdadeiro Dia das Crianças

Nos meios populares já se sabe: é só entrar setembro e as crianças mudam o comportamento... Ficam cada dia mais agitadas, sapecas e brincalhonas. Isto é creditado a uma influência inevitável, de natureza espiritual, transmitida pelos santos gêmeos, Cosme e Damião. 

As tradições em torno desses santos são muitas e em várias regiões tem vigor, sendo a manifestação mais frequente a distribuição de doces, balas, confeitos e pipocas às crianças no dia desses santos, a 27 de setembro. A criançada acorre em peso às ruas e como que de forma instintiva descobrem as casas onde há distribuição de guloseimas ou vão àquelas onde receberam doçaria em anos anteriores.

A confluência dos guris é enorme e a onda de alegria e agitação entre eles é indescritível. 

São poucas as igrejas dedicadas a estes santos e incomum ver suas imagens em templos católicos. O mais comum é sua veneração doméstica ou nos terreiros de umbanda. 

Distribuir balas nesse dia é uma forma habitual de pagar promessa por graça alcançada por intermédio de São Cosme e São Damião. Em geral se repete por sete anos podendo então se encerrar. Antes não, pois representa ruptura do voto e por conseguinte advém uma fase de azares. No entanto pode prosseguir além do sete anos por tempo indeterminado, se assim for do gosto do devoto, mas sem a obrigação religiosa. 

Em São João del-Rei colhi de uma senhora a cerca de oito anos atrás, uma interessante simpatia dirigida aos santos em questão para alcançar a gravidez. Quando por algum motivo de saúde uma mulher não consegue engravidar, faz uma promessa de oferecer um sapatinho de recém-nascido, desses em tricot, cheio de balas, num jardim para os santos Cosme e Damião. No ato da entrega só oferece um pé do calçado, prometendo entregar o outro sapatinho recheado de guloseimas quando tiver engravidado. Tal simpatia evoca crenças muito antigas na fertilidade tributada aos gêmeos no folclore. 

Uma expressão relacionada aos santos gêmeos são as correntes manuscritas em cédulas monetárias, sempre pedindo fartura e por vezes saúde e proteção. O costume contudo, que observei de forma abundante nos anos 1990,  enfraqueceu visivelmente nos dois decênios seguintes. 

Não notamos relação de São Cosme e Damião com as folias, exceto quando em suas deambulações deparam-se com um agrupamento de crianças e então o mestre por vezes faz um verso de improviso pedido que os dois santos as protejam. 

Nos congados da mesma forma e neste sentido uma quadra repetida por várias guardas de catupé desta região é: 

Lá na Bahia,
tem dois irmãos;
viva São Cosme
e São Damião!

Ou:

Bahia é terra de dois, 
terra de dois irmão,
governador da Bahia
é Cosme e São Damião. 

Na cidade de Resende Costa, em plena Serra das Vertentes, existe em atividade um congado formado por crianças, sob o patronato desses santos gêmeos. É uma guarda de catupé. Com a exposição de sua foto fica registrada a homenagem deste blog às crianças, que são também o futuro das tradições, sendo um fato digno de nota a sua participação em grupos como o aqui retratado, uma oportunidade de aprendizado e socialização. 

Congado de São Cosme e São Damião, de Resende Costa/MG. 
Participação na festa do Divino de São João del-Rei, junho/2011.


Notas e Créditos

* Para saber mais a respeito da devoção a estes santos de setembro clique nestes links:

 COSME E DAMIÃO: OS SANTOS DAS GULOSEIMAS  

SÃO COSME E SÃO DAMIÃO BRINCAM INOCENTES NOS LARGOS, RUAS E BECOS DE SÃO JOÃO DEL-REI

** Texto: Ulisses Passarelli

*** Fotografia: Cida Salles

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Salve o Dia das Mercês!

Hoje, 24 de setembro, festeja-se Maria Santíssima sob a invocação das Mercês: mercê - favor, graça concedida. Nos ensina o professor GAIO SOBRINHO (1996): 

"Em 1218, São Pedro Nolasco, São Raimundo de Penaforte e o rei Jaime I, de Aragão, tiveram de Nossa Senhora uma visão que lhes pedia a criação de uma ordem religiosa, cujo objetivo fosse, principalmente, a redenção dos cativos cristãos das prisões muçulmanas. Fundaram pois uma ordem militar que trazia algo de guerreiro, de celeste e de real. Daí as três palavras latinas que aparecem gravadas nas suas bandeiras e insígnias: Celestis - Regalis - Militaris." (p.66)

Nas Minas Gerais este sodalício dedicou-se à libertação de escravos e foi constituído no passado sobretudo por negros nascidos no Brasil (crioulos, segundo  a terminologia do período escravocrata), ao contrário dos africanos (negros da costa) que reuniram-se principalmente sob a invocação do rosário.  Também agregava os mulatos, que na nomenclatura da época se referia aos filhos e filhas de branco com negra ou vice-versa. 

Com grande popularidade e força difundiu-se a devoção mercedária. Anteriormente a 1750 já estava estabelecida em São João del-Rei uma irmandade sob sua invocação, que goza o título de arquiconfraria. A capela primitiva tinha forma de panteão romano. 

Igreja das Mercês em São João del-Rei.

A Festa das Mercês é uma das mais relevantes da cidade, com animado movimento de barraquinhas e importante estrutura de celebrações, com enorme afluência de fiéis. A grande procissão toma as ruas coloniais calçadas de pedras, na noite primaveril, acompanhada pelas corporações musicais, que nunca deixam de tocar a esplêndida "Marcha das Mercês", composição do ilustre são-joanense Luiz Batista Lopes. 

Foi fundado em São João del-Rei um congado sob a bandeira da Virgem das Mercês, em meados de 2006, no Bairro Alto das Mercês. Os dançantes desse catupé trajavam-se de amarelo-creme no tom da Arquiconfraria das Mercês e inclusive tinham estampado o brasão daquele sodalício. Infelizmente este grupo teve uma vida efêmera.

Além da bela igreja de Nossa Senhora das Mercês no centro histórico temos a Capela das Mercês na Colônia do Giarola, em plena área de colonização italiana, construída com o esforço de migrantes e descendentes. Atualmente em obras, tem agora o adro murado, muito amplo e um grande galpão de festas. É uma área excelente para atividades religiosas, educativas e sócioculturais. 


Capela de Nossa Senhora das Mercês da Colônia do Giarola, São João del-Rei/MG. Agosto/2004.


Em Lagoa Dourada, BUZATTI (1988), referenciando Richard Burton, citou a existência de uma Capela das Mercês, que desde o final do século XIX já não existe. 

Noutras cidades dos Campos das Vertentes a devoção também tem ou teve sua popularidade, a exemplo de Tiradentes, com sua bela igreja própria, com cemitério anexo. Segundo SANTOS FILHO (1996), a irmandade das Mercês tiradentina foi criada em 1754 no contexto da Capela do Rosário e começaram a edificar sua própria igreja a partir de 1770, em obra de longa duração que só terminou no século seguinte. Informou ainda que os festejos:

"se faziam com muita pompa, incluindo danças folclóricas de negros, como os congados" (...) "Na segunda metade do século XIX a Irmandade das Mercês teve grande importância na cidade, chegando a ter grande número de irmãos espalhados por toda a província de Minas Gerais e, hoje, ainda mantém a arquiconfraria e seu cemitério próprio."

Igreja de Nossa Senhora das Mercês, Tiradentes/MG, 26/12/2014.

Prados, tinha uma Irmandade das Mercês, datada de cerca de 1784, há muito extinta. Em 1790, segundo pesquisa de VALE (1985, p.188), há registro de pagamento de 9 oitavas e 14 réis do procurador Joaquim Ferreira da Costa ao pintor Cipriano Ferreira de Carvalho pela pintura de uma caixa de guerra. 

Localizei  no jornal O Resistente uma menção do século XIX a uma Festa do Rosário e das Mercês em Ibertioga, sem qualquer citação a congados.

O grupo moçambique e congada de Piedade do Rio Grande chama-se “Nossa Senhora das Mercês”, santa que vem estampada na bandeira. 

Congadeiro de Piedade do Rio Grande com a bandeira mercedária, durante uma Festa do Rosário 
no Bairro São Dimas, em São João del-Rei, outubro/1996. 

Na vizinha Santana do Garambéu também há um grupo desses, cuja bandeira branca, conforme observação de 1998, traz de um lado a figura da Virgem do Rosário e na outra face a da Senhora das Mercês, pinturas da arte popular.

Nossa Senhora das Mercês estampada na bandeira alva dos moçambiqueiros de Santana do Garambéu, durante uma Festa do Divino, em São João del-Rei, Bairro Matosinhos. A corrente pintada simboliza a libertação dos cativos. Maio, 1998.

Em Conceição da Barra de Minas havia animadas festas em honra à Virgem das Mercês, segundo o jornal O Combate. Sua edição nº206, de 1902, diz que elas elas foram animadas e "sublimes". O festeiro foi o maestro professor Carlos dos Passos, que dirigiu com competência a parte musical. A parte religiosa esteve a cargo do vigário João Trindade. 

É padroeira de Mercês de Água Limpa (ex Capelinha), distrito de São Tiago, onde goza de intensas festividades, que congregam moradores de toda aquela área rural. 

Daí para a Mesorregião do Oeste de Minas, já fora dos Campos das Vertentes, sua popularidade cresce nos meios folclóricos. Em Passa Tempo os congados fincam seu mastro dentre outros na Festa do Rosário, em outubro. Na Microrregião de Oliveira há congados de que é padroeira. A festa congadeira nessa cidade é em setembro, na comemoração das Mercês.

Mastro de Nossa Senhora das Mercês.
Passa Tempo/MG, 18/10/2015.

Referências Bibliográficas

- BUZATTI, Dauro José. Viagem as Minas dos Cataguazes. Contagem: Fund. Mariana Resende Costa, 1988. 123p. 
- GAIO SOBRINHO, Antônio. Sanjoanidades: um passeio histórico e turístico por São João del-Rei. São João del-Rei: A Voz do Lenheiro, 1996. 90p.il. 
- SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues dos. Festa do Bom Jesus da Pobreza e de Nossa Senhora das Mercês. Inconfidências, n.8, setembro/1996, Tiradentes. p.3. 
- VALE, Dario Cardoso. Memória Histórica de Prados. Belo Horizonte: [s.n], 1985. 

Referências Hemerográficas
(jornais publicados em São João del-Rei)

O Resistente, n.248, 15/10/1895
O Combate,  n.159, 19/03/1902; n.206, 12/10/1902

Notas e Créditos

* Texto, pesquisa e fotografias: Ulisses Passarelli.
** Acervo de jornais antigos da Biblioteca Pública Municipal Batista Caetano d'Almeida, São João del-Rei, disponíveis em seu site.  

domingo, 22 de setembro de 2013

Lista de congados desativados em São João del-Rei


Ao longo dos anos de pesquisas das tradições populares regionais, os capitães de congado que entrevistei, deram-me algumas informações orais sobre certos grupos folclóricos são-joanenses que se extinguiram, desaparecendo das festas de reinado. 

Julguei por bem listá-los e acrescentar as poucas informações colhidas, que ficarão como uma memória e outrossim, como reconhecimento aos seus esforços e ensinamentos, que repassados à geração atual, possibilitaram a manutenção da tradição do rosário ativa aqui em São João del-Rei.

Esta listagem foi elaborada a alguns anos com o objetivo de conservar um registro dos grupos de congado que existiram em São João del-Rei, segundo a tradição oral, enumerados a partir de informações prestadas por diversos capitães citados neste post

Como a data abordada retrocede em até uns oitenta anos, poderia ter incluído os grupos dos então distritos, ora já emancipados, Ritápolis, Conceição da Barra de Minas e Nazareno, pois estavam vinculados ao município estudado no espaço temporal abordado. Contudo o critério adotado foi o de restringir as referências ao território atualmente abrangido por São João del-Rei. 

Esta postagem originalmente foi incluída em maio do corrente no blog Matosinhos: história & festas, com o título "Uma contribuição para a história dos congados",donde foi extraída, revista, ampliada e acrescida de novas fotografias.

*  *  *

Zona Urbana

01- Congo - na antiga Rua das Flores (que em 1938 mudou de nome para Rua Maestro Batista Lopes), Bairro Tijuco – Capitão João Lopes (primeira metade do século XX). Consta por via oral que festejava com seu Congo na Igreja do Rosário do centro histórico e que tinha excepcional domínio da tradição congadeira. 

02- Congo - Rua São João, Bairro Tijuco – Capitão José Francisco (primeira metade do século XX). Participava como o anterior, sendo seu coetâneo, com quem disputava a primazia dos festejos, até o começo dos anos 1940. Ajudou a colher donativos para a edificação da primitiva capela de origem à Matriz de São José Operário, no Tijuco, então sob o orago de Nossa Senhora da Conceição.

03- Congo - Águas Férreas, Bairro Tijuco – Capitão Geraldo Elói de Lacerda (primeira metade da década de 1980). Em todos os aspectos gerais seguia aos moldes do centenário congo do distrito de São Gonçalo do Amarante, ainda ativo.

Congo das Águas Férreas numa procissão de Nossa Senhora Aparecida no Bairro Guarda-mor. Foto: autor não identificado, 1983; gentilmente cedida para reprodução pelo Capitão Geraldo Elói.

04- Moçambique bate-paus - Bairro São Dimas – Capitã Márcia Aparecida Lopes (1999-2002). Grupo infanto-juvenil, feminino, chamava-se “Frutos do Rosário”. A mesma equipe mantinha concomitantemente um relevante trabalho de inculturação, que dava suporte às então chamadas "Missa Afro".

Apresentação do grupo de inculturação "Frutos do Rosário" durante o
Encontro das Bandeiras da Festa do Divino em Matosinhos,
São João del-Rei. Fotografia: João Hipólito, 10/06/2000. 

05- Moçambique Bate-paus - Rua do Ouro, Bairro Alto das Mercês – Capitão Tadeu Nascimento de Sousa. Surgido com forte ligação ao centro umbandista “Mãe Joana D’Arc”, aliás, primeiro nome da guarda, que surgiu composta por adultos (1997-1999). Depois de um ano desativada, o mesmo capitão levantou outra guarda, desta vez com crianças, sob o nome de “Anjos do Rosário”. Cerca de 2001 encerrou suas atividades.

Guarda "Mãe Joana d'Arc" em frente ao Salão Comunitário Santa Rita de Cássia, no Araçá, quando buscava o Reinado. Capitão Tadeu Nascimento de Sousa. Foto: Ulisses Passarelli, 1997. 
Guarda "Mãe Joana d'Arc" em frente ao Salão Comunitário de São Geraldo e a igreja desta invocação, em momento de apresentação coreográfica. Capitão Tadeu Nascimento de Sousa. Aos fundos observa-se a guarda do Capitão Luís Santana, da mesma cidade. Foto: Ulisses Passarelli, 1997. 
Capitão Tadeu, na mesma ocasião das fotografias anteriores. 

Guarda "Anjos do Rosário" posando para retrato no ano 2000.
Autor não identificado. Fotografia gentilmente cedida para reprodução
pelo capitão da mesma. 
Guarda "Anjos do Rosário" em apresentação no pátio de uma escola no ano 2000.
Autor não identificado. Fotografia gentilmente cedida para reprodução
pelo capitão da mesma. 

06- Mocambique / Catupé – Vila Nossa Senhora de Fátima (Matosinhos), Capitão “Geraldão”. Guarda mista, inicialmente com predomínio de Moçambique, quando de sua fundação pelo Capitão “Geraldão”, na década de 1950, e depois com maior tendência para o Catupé, pelo seu continuador, o Capitão “Zé Tita”, que morava na Horta Velha (Bom Pastor de Baixo, Matosinhos). Teve também ajuda do Capitão “Chico Zacarias” ( ou "Chico da Inês"), que substituiu Zé Tita. Suas atividades vieram até meados da década de 1980.

Flagrante da primeira Festa do Rosário no Bairro São Geraldo, em São João del-Rei.
A esquerda, congado do Capitão Geraldão (moçambique); à direita, congado do Capitão Luís Santana (catupé);
aos fundos o Reinado, observando-se quão numerosos eram os reis, rainhas, príncipes e princesas; 

na mesa ao centro, o sacerdote e pessoal da Igreja.
Ano: 1958. Autor: não identificado. Fotografia gentilmente cedida para reprodução pelo Capitão Luís Santana. 

Congado do Zé Tita, que está adiante do grupo com o tamborim. 
Foto: autor e data não identificados. Provavelmente década de 1960. 
Gentilmente cedida para reprodução pelo saudoso Capitão Altamiro Ponciano. 
Congado do Capitão Chico Zacarias numa Festa do Rosário no Bairro São Dimas em
São João del-Rei provavelmente na década de 1980. Autor: não identificado.
Fotografia integrada ao acervo do projeto Encontro Congadeiro nas Vertentes, gentilmente cedida
para reprodução pela senhora Celina Batalha.  
Detalhe do Capitão Chico, com o tamborim nas mãos. Fotografia da mesma fonte da
anterior, editada por este blog para evidenciação. 

07- Catupé “Nossa Senhora das Mercês” – Bairro Alto das Mercês, Capitão: Wilson Bernardino. Grupo de vida efêmera, esteve ativo entre 2007 e 2008.

08- Catupé  - Bairro São Dimas, Capitão Raimundo "Camilo" (Raimundo Marino da Silva). Guarda sob a bandeira de Nossa Senhora do Rosário foi das mais importantes em São João del-Rei, fundada em 1962 pelo Capitão José Camilo da Silva (1904-1994), pai de Raimundo. Nos tempos iniciais o segundo capitão era o sr. Valdemar Fagundes, que já fora também capitão no distrito de São Gonçalo do Amarante. Outros capitães fizeram parte da guarda, como Jesus da Silva, Altamiro Ponciano, Luís Carlos Rosa e Luthéro Castorino da Silva. Sofreu uma paralisação em 1994 à época do falecimento do fundador e foi recuperada quatro anos depois em grande parte graças aos esforços do capitão Luthero, por ocasião da reativação da Festa do Divino no Bairro de Matosinhos, primeira ocasião que voltou às ruas, em 1998. Desativou-se em 2009.

Congado do Capitão Raimundo Camilo em marcha pela Rua Joaquim Zito de Sousa,
em Matosinhos, durante a Festa do Divino. 31/05/1998.  



Congado do Raimundo Camilo recolhe uma Juíza de Ramalhete na Caieira, 
durante uma Festa do Rosário. Foto: Ulisses Passarelli, 1999. 

Mesmo terno da foto anterior, momentos antes, recolhendo o Reinado. 

  
Outras imagens do Reinado na Caieira. 

Detalhe da bandeira do rosário e da bandeira
durante uma Festa do Rosário no Bairro São Geraldo. 

Terno de Raimundo Camilo nas imediações da Gruta do Divino
durante a Festa do Espírito Santo de 2006. Na caixa o Segundo Capitão
José Adnei da Luz. 

Zona Rural

09- Congo - Povoado da Canela, Capitão “Procópio da Maria Joana”. Grupo nos moldes do que ainda existe em Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, com o qual tinha franca colaboração e vice-versa, tanto que, desaparecido o da Canela, aquele faz a festa do povoado, sempre em novembro. 

10- Congo - Povoado de Januário. Extinto a muitos anos. Capitão: "Zarias". Desenvolvia-se nos moldes do grupo da Canela e Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno. Década de 1960.

11- Catupé - localidade de Mestre Ventura, Capitão “Saturnino”. A minúscula povoação só existia em função da estação férrea que ali havia, ao longo da “Linha do Sertão”, da Estrada de Ferro Oeste de Minas, km 127, inaugurada na década de 1930. Com a erradicação dos trilhos (1983), o lugar tão isolado e sem outra perspectiva econômica, se esvaziou e hoje se resume a apenas duas fazendas. Tudo o que restou da estação são os vestígios da plataforma de pedra e a caixa d'água que abastecia as locomotivas. Saturnino seria natural do então distrito de Conceição da Barra onde tinha sua guarda mas mudou-se para Mestre Ventura onde montou esse pequeno Congado. Dizem que era rixento e que mesmo sem convite, querendo participar com seu Congado na Festa do Rosário da vila de São Gonçalo do Amarante numa época em que apenas o Congo local a fazia, para lá marchou com sua turma, mas logo à entrada teve de fazer meia volta pois seu grupo foi banido por um enxame de marimbondos, que ali os aguardava às custas de rezas fortes arranjadas pelo famoso capitão José Fagundes, do Congo da vila. Ao que parece, foi o fim deste Catupé.

12 - Moçambique bate-paus - Povoado do Caquende, década de 1970. Organizador por Raimundo Marçal, filhos e crianças da comunidade, segundo referência José Antônio de Ávila Sacramento (*). 


Notas e créditos

In: Caquende, Jornal de Minas, São João del-Rei, 28/05 a 03/06/2010, n.125, ano 10. p.2.
**Texto e fotografias (exceto indicação em contrário): Ulisses Passarelli. 
*** Pesquisa, texto e acervo fotográfico: Ulisses Passarelli.

sábado, 21 de setembro de 2013

Palhaços de Folias de Reis: ambiguidade e enigma - parte 1

Esta postagem é a primeira parte de um pequeno relato rascunhado a caneta esferográfica em pedaços residuais de papel, que encontrei entre meus guardados. Os rabisquei em agosto de 2008 e o novo objetivo para este blog impôs revisão e acréscimo. Dedica-se especialmente à figura do palhaço, que carrega em si uma carga imensa de simbolismos. 

* *  *

Nas folias de Reis existe um personagem em geral conhecido por “palhaço”, mas que, apesar do nome, não se confunde ou filia à arte circense. É mera analogia pelas roupas de cores vivas, largas no corpo para permitir a liberdade de movimentos e das brincadeiras que faz com as pessoas. Em vez da pintura de maquiagem no rosto usa a máscara, que figura elementos simbólicos e atávicos. De fatura artesanal, a máscara é extremamente individual. Como uma impressão digital pode-se dizer que não existem duas iguais no universo das folias, denotando uma riqueza artística de criação imensurável.

O palhaço de folia é uma figura ambígua. Não obstante ser interpretada como maléfica, recita louvores e benze os doentes. Na verdade a carga maligna que lhe é atribuída é tão somente influência das concepções catequéticas, que lhe carimbaram o selo de demoníaco. Nada, porém, ele possui de diabólico quando se perscruta suas origens, na análise dos gestos, ações, palavras e funções; ou seja: seu verdadeiro âmago. É um personagem ancestral. Não se pode julgá-lo pela mera aparência de sua máscara, cheias de barbas desgrenhadas, de um cabelo de crina, de chifres, de dentes pontudos e evidentes. Isto é uma aparência superficial que choca o observador carola, pois traz à tona a palavra do missionário religioso descrevendo o capeta de cor vermelha... O palhaço na verdade evoca o sagrado primitivo das forças naturais que, é a figuração bestial de um princípio anímico.

Palhaços da folia distrital de São Sebastião da Vitória (São João del-Rei-MG). 
O público assiste fielmente ao desempenho dos mascarados.1994.

A origem pagã se prende a rituais agrários e a ritos de passagem da adolescência, como demonstrou sobejamente Pinelo Tiza com os caretos, chocalheiros, máscaros, filandorras, etc., seus arquétipos ibéricos.
As roupas vermelhas, a máscara de careta, a voz cavernosa, as estripulias fazem parte da composição figurativa de um personagem e são elementos muito mais extrínsecos que intrínsecos, embora possam estar eivados de simbolismos. As lambadas de seu “rêio” (relho) são purificadoras, posto que disciplinares. Se ele carrega um ramo de espada de São Jorge (gênero Sansevieria, família asparagaceae) ou uma espada de madeira ou uma lança é como uma arma simbólica, que defende todo o grupo, espantando o adversário espiritual; os chocalhos atados à cintura ou ao tornozelo tinem evocando espíritos benfazejos, forças do bem, como as campainhas rituais (sinetas, carrilhões, adjás) e os guizos dos moçambiqueiros (paiás, gungas, maçaquaias).  

Sua passagem nas casas e sítios ajuda expurgar pragas, doenças, maldições, espíritos perturbadores. Nesse papel de catarse o "medonho-bonito" de sua máscara se equipara às carrancas do vale do São Francisco, que outrora podem ter tido papel de adorno como figuras de proa das barcas e hoje são considerados amuletos no conceito popular. A cara feia espanta, afasta, amedronta, isola.

Este post foi idealizado curto e não permite destrinchar muito o assunto, mas seria o caso de se aprofundar pelo conceito e significado da máscara, elemento religioso e cultural cosmopolita, presente em muitas civilizações, desde a antiguidade remota.

O palhaço das folias é conhecido por vários outros nomes Brasil afora: marungo, bastião, tenente, matias, pastorinho, boneco, alferes, saca-trapo. O nome palhaço é sem dúvidas o mais divulgado.  Nem por isso goza de unanimidade, porque entendem alguns mestres que é um nome desrespeitoso para a função religiosa que exerce, ou seja, ele faz brincadeiras, mas não “palhaçada”.

Palhaço da folia de Ritápolis/MG conduz sua vara enfeitada e com chapinhas idiofônicas na ponta, 
além da bandeira do grupo. 1996. 

Nesta afirmação encontra-se a pista da verdadeira função do palhaço: a religiosa e/ou mística. A visão dos mestres (interna) é lendária e de uma interpretação de ordem funcional. Cada área geográfico-cultural tem sua versão dominante. Uma das mais conhecidas narra que os palhaços representam soldados da guarda do Rei Herodes, disfarçados, mandados para seguir a Sagrada Família e descobrir seu paradeiro. Voltariam para avisar ao malvado monarca onde era o local para que mandasse matar Jesus. Descobriram, mas se converteram e não retornaram, passando a acompanhar o Menino Deus dali para frente, fazendo brincadeiras para distrair a atenção dos judeus e romanos enquanto José e Maria fugiam para o Egito com o Messias no colo.

Em São João del-Rei/MG, corre a crença que o palhaço é um centurião que acompanha a bandeira, como um guardião, um soldado disfarçado que usa de brincadeiras para dissimular sua verdadeira identidade. É o defensor da folia e por conseguinte dos folieiros. Graças a esta concepção, é possível nesta região que o palhaço se aproxime da bandeira, a segure, e até que seja o próprio bandeireiro, situação inimaginável na maioria das outras regiões onde existe.

A ambiguidade está nele. É um convertido, mas o peso da perseguição inicial ainda o faz pecador. Ser um palhaço é um ato penitencial e até mesmo votivo. Não é mera diversão. Brincar faz parte de sua personalidade, contudo entrar na farda e se ocultar na máscara é uma missão árdua que obedece a uma rigorosa praxe estipulada pelo mestre de cada grupo. Algumas folias fazem um ritual de proteção especial ao palhaço na abertura e encerramento da jornada, para vestir e retirar a farda. Existem casos de sincretismo religioso.

Em sua chegada nas residências o palhaço é aquele que primeiro intermedia o contato entre visitantes e visitados. Enunciando um verso de chegada, ou apitando, ou com gritos e exclamações, alerta aos moradores acerca da chegada da folia: “Ôôôô...pá!” ; “Óia nóis chegando aí, gente!” ; “ô, patrãozinho: prende os cachorro que Santos Reis está chegando na sua morada!” ; “ ô nhánhá: é de vosso agrado recebe nossa bandêra?” ; “Óia nossa chegada” ; “Dá licença, aí!!!” ; “Boa noite, gente!”

Exemplo de versos coligidos em São João del Rei nos anos noventa:

“Santos Reis aqui chegô
“Aqui chegou bandeira santa,
Com a sua companhia,
Do mártir São Sebastião,
Procurando a bela rosa
Nós somos seus soldados
Para festejar seu dia!”
Ele é o nosso capitão!”

Assim acontece nas casas em geral. O anonimato do palhaço leva o primeiro pedido de licença e a saudação inicial. É protocolar, antes mesmo da bandeira ou do mestre. Se a chegada é numa fazenda é de regra que a folia espere de fora do terreno, antes da porteira. Compete ao palhaço abri-la, pedindo licença, e começando a gritar desde longe da sede, vai até a moradia chamando pelo dono da casa. Estabelece com ele um diálogo breve, do tipo “como vai, como passou”; pede as licenças devidas para a chegada, pergunta se é do agrado receber a bandeira e os nobres foliões, etc. Obsequiado pela permissão, volta acelerado ao grupo, gritando a resposta positiva e abre a porteira para a folia entrar. Agora entra junto com o grupo sem passar de novo na frente da bandeira.

Dentro da residência desenvolvem-se vários outros procedimentos protocolares quando o palhaço está presente. Eles estarão tematizados na segunda parte desta postagem, em breve. Aguardem!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

TIZA, António Pinelo. Inverno Mágico: ritos e mistérios transmontanos. Lisboa: esquilo, 2004. 287p.il. 
BITTER, Daniel. A Bandeira e a Máscara: a circulação de objetos rituais nas folias de reis. Rio de Janeiro: 7 Letras; Iphan/CNFCP, 2010. 224p.il. 

* Texto e fotos: Ulisses Passarelli