Bem vindo!

Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




terça-feira, 31 de julho de 2012

Zé Pereira: imagem alegórica do carnaval de outrora

Um antigo refrão carnavalesco, assaz conhecido, atesta a inocuidade desta manifestação folclórica: “viva o zé pereira, que a ninguém faz mal ...” Como de fato a afirmação é legítima. As mudanças sociais é que fizeram mal ao zé pereira. A dinamicidade tremenda do carnaval o consumiu.

Este bloco carnavalesco é um folguedo alegre, barulhento, de irresistível ritmo firmado na percussão de frenéticos tambores - dentre bumbos, zabumbas, surdos, caixas e treme-terras, ou vem animado por uma charanga. Nele se misturam mascarados tradicionais, gente fantasiada de bichos e de bonecos gigantes.    

           De origem portuguesa, atesta o pesquisador Luís da Câmara Cascudo ser o “zé p’reira” natural do norte e das Beiras, aparecendo também nas festas dos oragos locais e nas romarias. Foi introduzido no Brasil primeiramente no Rio de Janeiro oitocentista.

       A novidade fixou-se e rapidamente se espalhou atingindo outros Estados e ganhando cores locais.

Com toques estilizados, adentrou nas grandes sociedades carnavalescas, de rua e de salão.Vila Velha (ES), Pelotas (RS), Goiás (GO), São Bento do Sapucaí (SP), Parati e Vassouras (RJ), Ouro Preto, Mariana e Prados (MG), etc., conheceram a tradição. De muitos lugares desapareceu, sendo hoje raríssimo. Os bonecões acompanhados de charanga e batuqueiros persistem animados em certas cidades paulistas: Atibaia, Iguape, Caraguatatuba, Redenção da Serra, Torrinha e Santana do Parnaíba [1]. Em Minas é afamado no Rio Novo, além de um grupo autêntico em Ritápolis.

Em São João del-Rei marcou época. Na primeira década do século XX até um pouco depois, vários destes grupos desfilavam pelas ruas, vindos de diversos bairros, encontrando-se na avenida e nutrindo certa rivalidade. O Bairro do Senhor dos Montes ficou célebre pelo seu grupo. Um dos registros do prof. Sebastião Cintra, nas “Efemérides de São João del-Rei”, noticia que em 1901, “no sábado de carnaval, percorreram a cidade os barulhentos Zé Pereiras”. O jornal são-joanense “O Repórter” registrou-os. Na edição n.2, de 05/02/1905, encontra-se este trecho: “Barulhoso Zé Pereira tem atordoado os moradores vizinhos á sede do Clube X e a pacifica população das ruas por onde elle tem transitado”. Na de n.4 o jornal atesta que “desde domingo passado que os préstitos do immortal Zé Pereira, tem se succedido, cada qual mais chibante e apparatoso disputando a victoria pelo chic, e numero de socios, uns ostentando asseiados carros, vistosos animaes e outros a pé, sempre em alegria cresente e animadora, fazendo crer que hoje e nos seguintes dias, proprios, mais se enthusiasmarão, honrando e homenageando o deus Momo”. No ano seguinte o mesmo órgão da imprensa reclamava acerca do desânimo do carnaval e a ausência de preparativos (n.1, 04/02/1906): “Os meninos é que estão a zabumbar o Zé Pereira, mas um zé sem futuro, zé que não formará e nem fará as nossas delícias”. Já na edição n.96, de 10/2/1910, em meio a severas críticas à desorganização e desânimo do carnaval daquele remoto ano e aos exageros do entrudo, há este lamento: “Nem ao menos o zabumbar de um Zé Pereira, animado, tão comum em outras localidades de menor importância, tivemos este ano”. Mas esta manifestação ainda durou mais alguns anos e depois sumiu. Só ficou na memória do são-joanense. Parece que do seu esfacelamento surgiram subsídios para os blocos de sujos. Mas averiguar isto exige pesquisa própria. E se o zé pereira é o pai dos blocos de sujos, é então avô do nosso querido “Lesma Lerda”.

E qual não foi a surpresa quando em 14/02/2000, a edição n.1.101 do jornal-mural “Amanhecer”, desta cidade, anunciou: “Zé Pereira domingo de carnaval... concentração 13 horas no Largo do Rosário. Bonecos gigantes e boi-bumbá. Parabéns ao Neném Quati e sua turma”. Era a força espontânea da memória coletiva brotando novamente! E saiu o zé pereira, descendo da Rua das Flores (atual Maestro Baptista Lopes) e se reunindo no Rosário, donde desceu pela avenida central com autenticidade numa memorável e calorenta tarde, girando os bonecões macrocefálicos na pisada certeira dos toques da charanga.

Penso que pelo valor histórico e folclórico este bloco merece grande atenção, hoje desfilando com o nome de “Recordar é Viver”, ainda sob o comando do “Mestre Quati” (Benedito Reis de Almeida). Compõe uma faceta bastante genuína do nosso carnaval de rua. E suas reminiscências foram bases formadoras do carnaval atual. O carnaval tradicional merece um grande apoio.

Vista parcial do bloco do Mestre Quati no desfile do ano 2000. 

Notas e Créditos

* Texto (fevereiro/2002; modificado em 14/06/2009) e foto (05/03/2000): Ulisses Passarelli.
** Obs.: O Professor Antônio Gaio Sobrinho transcreveu em um de seus livros notícia jornalística de 1924 sobre o zé pereira em Conceição da Barra de Minas, àquela época, um distrito são-joanense: "nestes dias, de 3 horas da tarde em diante, começarão a percorrer as ruas os numerosos grupos e cordões de fantasiados e retumbante zé pereira." (Memórias Sentimentais de Conceição da Barra de Minas. São João del-Rei: UFSJ, 2014. 230p.il. p.208).


[1] - In: Revelando São Paulo: Festival da Cultura Paulista Tradicional. SP: CEC, 2003. (DVD) 

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Moçambique de Santana do Garambéu

Nesta postagem destacamos algumas imagens do moçambique de Santana do Garambéu (do tipo bate-paus ou moçambique de vara). Pertence à Mesorregião Campo das Vertentes, Microrregião de São João del-Rei. 

Santana do Garambéu está numa faixa geográfica que forma um corredor cultural , no qual é marcante a presença deste tipo de moçambique, com guardas em Ponte Nova (Bias Fortes), Paraíso Garcia (Santa Rita do Ibitipoca), Santa Rita do Ibitipoca, Ibertioga, Piedade do Rio Grande e Barroso e noutras épocas até mais além, em São João del-Rei, Correia de Almeida e Ressaquinha. 

As fotografias seguintes mostra o terno na Festa do Divino de São João del-Rei e o curto vídeo na Festa do Rosário em São Gonçalo do Amarante. 







O moçambique bate-paus, da cidade de Santana do Garambéu / MG, 
se apresenta durante a Festa do Rosário em São Gonçalo do Amarante 
(São João del-Rei / MG), ex-Caburu.

Notas e Créditos

* Texto e vídeo: Ulisses Passarelli, outubro/2011.
** Fotografias: Cida Salles, 05/06/2011

domingo, 29 de julho de 2012

Catupé de Resende Costa



Congado de Resende Costa/MG dança na Avenida Josué de Queiroz em Matosinhos, São João del-Rei, durante a Festa do Divino. Esta guarda de catupé traz a bandeira de São Benedito. 


Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Vídeo: Maria Aparecida de Salles Passarelli, maio / 2011.

sábado, 28 de julho de 2012

Congo do Caburu



O congo de São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei / MG), ex-Caburu, atravessa naquela vila o Beco de Pedra, trazendo o reinado para a Festa do Rosário. 


Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Vídeo: Iago C.S.Passarelli, out.2011

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Rasoura das Dores

                                                                             
Rasoura é uma pequena procissão, circunscrita aos arredores da igreja donde sai. Dizem que tamanho não é documento. Como de fato, o pequenino cortejo processional não dispensa uma certa pompa e aparato.

No quarto domingo da quaresma sai a Rasoura de Nossa Senhora das Dores, da Igreja do Carmo, em São João del-Rei, às 8 horas. A veneranda imagem, de impressionante fisionomia, é incensada. Espadas prateadas estão cravadas em seu peito, um manto roxo aveludado recobre-lhe o corpo. Seu olhar de sofrimento nos remete à Paixão Sagrada.

A orquestra e seu coro executam o O vos omnes, que nos faz refletir se há dor maior que a daquele martírio de salvação, de seu Filho muito amado, Nosso Senhor. Os terceiros carmelitas vestidos com hábitos talares, velas à mão, vão conduzi-la.

De fora, o sino anuncia tristemente a rasoura e a excelente Banda de Música “Santa Cecília” faz correr arrepios no corpo, executando a comovente e tocante marcha fúnebre “Saudades”, do são-joanense Benigno Parreira. Sob o pálio, o padre segue contrito com o ostensório e a capa de asperges. O Turiferário vai enfumaçando o ambiente, que fica com aquele perfume religioso.

Outra marcha torna o ar respeitoso e contemplativo. O Cruciferário e os Ciriais abrem alas; mais atrás, as chamas bruxuleantes dos Ceroferários. A rasoura segue vagarosa descendo a Rua do Carmo. Contorna-lhe a praça com o vistoso Chafariz da Municipalidade. Diante do cemitério da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmelo, fazem uma curta parada. A Mãe Dolorosa volta-se para o enorme portão de ferro trabalhado. Um coral ali posicionado a saúda com o “Stabat Mater”, para que a Senhora lacrimosa se compadeça das almas dos carmelitas ali sepultados.
            
Numa sacada de antigo sobrado, atiram-lhe uma chuva de pétalas de rosas. Se o andor fosse do Rosário, os congadeiros cantariam: “Lá do céu tá caíno fulô!”... São as graças infinitas, que caem do céu sobre nós. O andor estaciona para receber as flores: está “dando a graça” àqueles devotos.
            
O sino já anuncia a chegada. Entra sob palmas. A banda municipal, de fora, encerra a participação.  A orquestra, de dentro, retoma a função musical na missa. O celebrante lembra que “a fé nos edifica” e que “a procissão não é um passeio; é uma peregrinação, um símbolo da jornada terrena rumo à salvação celeste”.
            
Apurando os ouvidos já se ouve o dobre lá no São Francisco. É a Rasoura dos Passos, de igual valor e beleza. Muitos devotos saem de uma vão para a outra. A gradação das cores rosa-lilás-roxo das hortências do andor, no matiz da contrição, proporciona uma contemplação sui-generis, da piedosa imagem. Um devoto cuidadoso inseriu bailarinas amarelas entre elas, aquelas pequenas orquídeas mimosas (Oncidium), dando vida ao que parece morto de dor. A vida supera. E assim vão os fiéis se preparando espiritualmente para a soleníssima Procissão do Encontro. Mas esta é logo mais, à noite...

Rasoura das Dores.

Notas e Créditos


* Texto: Ulisses Passarelli, quaresma de 2001
* *Foto: Iago C. S. Passarelli, 10/03/2013

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Chegada do Congo em São Gonçalo do Amarante

Chegada do Congo na Igreja de São Gonçalo do Amarante, no distrito homônimo, ex-Caburu 
(São João del-Rei / MG).Congadeiros trazem à igreja o reinado por ocasião da Festa de N.S.do Rosário.

* Texto: Ulisses Passarelli
** Foto: Iago C.S. Passarelli, out.2011.

Reinado em São João del-Rei

Reinado, Bairro São Geraldo, São João del-Rei / MG.
Rei Congo - Ciro Neves; Rainha Conga: Maria do Rosário Neves. Festa de N.S.do Rosário.

* Texto e foto (agosto/1997): Ulisses Passarelli

Folia de Coqueiros


Folia de São Sebastião, Coqueiros (Nazareno / MG). 
Participação no encontro de folias de Mercês de Água Limpa, ex-Capelinha (São Tiago / MG).


Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Vídeo: Maria Aparecida de Salles Passarelli, janeiro/2010.  

Nótulas sobre o antigo carnaval de São João del-Rei/MG

Apenas com o objetivo descritivo de repassar algumas informações obtidas o presente texto olha para trás à procura dos confetes passados, das serpentinas de outros tempos.

Uma característica do carnaval antigo era o entrudo e de tão forte na folia momesca se tornou como que seu sinônimo, embora fosse apenas um de seus atrativos. Constava de um jogo alegre de água (em bacias, baldes ou bisnagas), polvilho ou farinha, perfumes, e todos terminavam lambuzados. Os perfumes eram acondicionados em vesículas de cera em forma de limão ou laranja que se rompiam ao chocarem contra o corpo de um circunstante. Mais tarde foram trocados por borrachinhas contendo a água de cheiro.

Era costume muito arraigado. O Código de Posturas são-joanense proibia o entrudo e o comércio das laranjas e limões de cheiro [1].

A imprensa também combateu este jogo [2] : “(...) reviveu até o antigo e nunca assaz condenado entrudo, com limões de cheiro, jarros e bacias d’água.”

Pode-se rastrear a tradição nos anúncios dos jornais para o carnaval [3]: “Bisnagas de todos os tamanhos, sortimento colossal na Charutaria do Commercio. – Rua Moreira Cesar, 10. (...) Borrachinhas para limão, por atacado e varejo na Charutaria do Commercio .”

Houve proibições e ação policial no sentido de coibir o arraigado costume [4]: “o doutor Alvaro Correa Bastos Junior, Delegado de Policia da Comarca de S.João d’El-Rey, Minas Gerais, etc., FAZ saber, para conhecimento dos interessados, que é prohibido o jogo de entrudo, e que serão estrictamente observadas as Posturas Municipaes”. Em 1907 uma página jornalística comemorava[5]: “Felismente foram, de todo supprimidos os limões e esguinxos d’agua que tanto prejudicavam o folguedo carnavalesco. Ainda bem.”

Mas o entrudo não se extinguiu assim tão rápido. O comércio dispunha de artigos nele usados [6]: “Carnaval. Borrachinha para limões, encontram-se á venda no Bazar Japonez. R.Moreira Cezar, n.10, S.João d’El-Rey.” Este anúncio foi repetido na edição seguinte do mesmo jornal, do dia 6, e uma nota intitulada “carnaval”, deu conta de que o “malsinado” entrudo foi vigoroso, pelas bacias d’água e célebres limões de cera e borracha, atirados a torto e a direito sobre qualquer transeunte desprevenido. Comenta ainda da música executada, “no celebre corêto da rua Moreira Cezar, com as bambinelas de baeta e arcadas de bambus para attrair o povo”, taxando-as de caiporismo. Mais uma edição adiante critica o desânimo e desorganização do carnaval daquele ano: “Nem ao menos o zabumbar de um Zé Pereira, animado tão comum em outras localidades de menos importancia, tivemos este anno. Em compensação, porém, o entrudo tocou as raias do exaggero: agua em abundancia, supplantando, quasi por completo, o jogo de confetti, sempre mais agradavel e divertido.”

Era uma fase de transição. Ainda existia o jogo de água, farinha e perfumes, mas perdia força a cada dia, sob o incentivo às batalhas de confetes e serpentinas, bem como os desfiles de clubes organizados, que viviam de forma concomitante ao entrudo. Eis algumas citações:


"Carnaval. É hoje o 1º dia do tríduo carnavalesco, tríduo do Momo, o rei da folia e da festança. Desde Domingo passado que os prestitos do immortal Zé Pereira, tem se succedido, cada qual o mais chibante e apparatoso disputando a victoria pelo chic, e numero de socios, uns ostentando asseiados carros, vistosos animaes e outros a pé, sempre em alegria cresente e animadora, fazendo crer que hoje e nos seguintes dias, proprios, mais se enthusiasmarão, honrando e homenageando o deus Momo. Os clubs até hoje organizados são 115, 109, 13 de Maio e do Calúbra. Eia, rapaziada! A alegria, a folgança!" [7] 

* * *

(...) "Á noite a concurrencia de populares se fasia notar principalmente na Rua Moreira Cesar, onde se erguia um coreto para a banda “Ribeiro Bastos” executar suas escolhidas peças. (...) As batalhas de confetti foram até certo ponto intensas e renhidas e do mesmo modo as de lança-perfumes. (...) A policia não permitiu no ultimo dia o corta-jaca e o maxixe no Municipal, evitando assim algumas dos rolos do costume". [8] 
* * *

"Batalha de Confetti. Na rua Municipal, 18-22 h, com a banda do quartel". [9] 

* * *

"Carnaval. O Bazar Japonez recebeu um grande sortimento de lança-perfume, confetti, serpentinas, mascaras e novidades proprias para esses folguedos, que está vendendo muito barato. Rua Municipal, 5". [10] 

* * *
"Na confluencia das Ruas Direita e Moreira Cezar, a municipalidade fez armar um artistico coreto onde se ouvia uma fanfarra de um dos nossos batalhões do Exercito (...) As batalhas de confetti e lança-perfumes feriram-se com galhardia e denòdo ..." [11] 

* * *

"Club X. Os valentes carnavalescos, no dia 2 deste, já deram o panno de amostras com um retumbante ZÉ PEREIRA com vários carros e puxado pela banda de musica do 11 regimento uniformizada a caracter". [12] 

* * *

"O apreciado Clube X realizou Quinta-feira um animado Zé Pereira, que percorreu as principaes ruas da cidade. Na movimentada passeata saiu acompanhado de numerosos automoveis e precedido de bandas de clarins e de musica, um dos bellos carros allegoricos do carnaval do ano passado".[13] 

* * *

"Zé Pereira. A 31 do anno passado, effectuaram os sympathicos ranchos carnavalescos desta urbe, Custa mas Vae e Zero, uma passeata pelas ruas desta cidade em saudação ao povo sanjoanense".[14]

* * *

“Approxima-se o carnaval. Usem o lança-perfume Vlan, o mais perfumado e inoffensivo, prefiram as serpentinas David, as suas cores são as mais vivas e o seu papel o mais resistente”. [15]


Enfim são muitas as provas do esplendor daqueles carnavais, explícitas em citações jornalísticas, apenas algumas das quais aqui selecionadas para exemplificar. Também são abundantes as informações orais de antigos foliões do momo.

Fala-se nos blocos de índios, ou seja, de pessoas com fantasias emplumadas, armadas com flechas e arcos, lanças e machadinhas, tomando nomes de tribos conhecidas e desfilando como se simulassem hordas, com tal realismo que metiam medo na criançada.

Os zé pereiras que sobreviveram até cerca da década de 1950 se enchiam de bonecões macrocefálicos, os populares “cabeções”, girando e balançando seus braços longos e molengas, no gingado característico, revividos a partir do ano 2000 pelo afamado “Mestre Quati” (Benedito Reis de Almeida).

Pequenos grupos se divertiam pelas periferias fazendo desfilar o boi, tal como o do falado “seu Inácio”, dos lados do Betume (imediações da Igreja de São José Operário, Bairro Tijuco), além de outros. Sim, aquele mesmo do bumba-meu-boi, desgarrado entre batuqueiros dando arrancos e chifradas rua afora, sempre atiçado e pondo moleques a correr. 

Ali pelas Águas Férreas surgia o urso, ou melhor, um folião de mais ânimo metido sobre um quente traje felpudo, de encardida estopa, imitando a figura de um urso, fazendo-se adestrado por um homem que o fazia dançar, preso numa corda, tangido a chicote. Figura tradicionalíssima, conhecida no carnaval de outras partes do Brasil, mormente no Nordeste, onde ainda vive. Evoca os velhos espetáculos de rua da Europa quando artistas de rua exibiam esses animais nas praças e feiras, depois de os amansar sob terríveis torturas, como a televisão já mostrou. 

A nêga maluca era um homem com peruca desarranjada, pele tisnada de carvão, boca bem borrada de baton, seios postiços exagerados, ancas recheadas de travesseiro, para amparar as eventuais quedas e fazê-la uma figura ainda mais desajeitada. De andar trôpego, acorria a entregar um boneco nos braços de seu pretenso cônjuge, alegando sua paternidade na clássica frase: “toma, que o filho é seu”. Sempre refugada, depois de muita pilhéria e afetamento, saía a curiosa personagem com sua charanga acompanhante a caçar outro pai para seu filhinho, depois de arrecadar uma oferta daquele, qual pensão alimentícia, revertida à beberagem do grupo. A fantasia permanece mas sem o enredo do passado.

Os animadíssimos blocos de sujos, com mascarados de toda estirpe, brincavam por aí livremente. Não canso de dizer que são filhos do zé pereira, seus legítimos herdeiros, como o querido e atual Bloco do Lesma Lerda é o seu neto.

O fim dessa era vem nos meados do século XX, quando toda a atenção se converge para os bailes carnavalescos de clubes e suas matinês, além do aparato das grandes agremiações - escolas de samba, ranchos e cordões, que inauguram um novo tempo no carnaval da cidade. Mas isto é assunto para outro texto...

Boi de carnaval, Águas Férreas, Bairro Tijuco, São João del-Rei/MG, 05/03/2000.

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli, 17/07/2007
** Obs.: os jornais citados nesta postagem foram todos publicados em São João del-Rei e fazem parte do acervo da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida. 
*** Revisão e acréscimos em 22/03/2017
[1] - CÓDIGO DE POSTURAS DE SÃO JOÃO DEL-REI, 1887, art.153.


Referências Hemerográficas

[2] - O Resistente, n.374, 21-23/02/1901.
[3] - O Repórter, n.6, 26/02/1905.
[4] - A Opinião, n.129, 15/02/1912.
[5] - O Repórter, n.2, 11/02/1907.
[6] - O Repórter, n.94, 03/02/1910.
[7] - O Repórter, n.4, 25/02/1906.
[8] - A Tribuna, 21/02/1915.
[9] - O S.João d’El-Rey, n.101, 19/02/1922.
[10] - O S.João d’El-Rey, n.101, 19/02/1922.
[11] - A Bigorna, n.1, 08/03/1923.
[12] - O S.João d’El-Rey, n.43, 06/01/1921.
[13] - A Tribuna, n.507, 06/01/1924.
[14] - A Tribuna, n.1.006, 05/01/1930.
[15] - A Tribuna, n.455, 14/01/1923. 

Boi de Carnaval

Boi de Carnaval, Águas Férreas, Bairro Tijuco, São João del-Rei / MG.
Retratado durante o Bloco das Piranhas. 
Notar inscrição de propaganda no "couro" do boi, recurso de folk-comunicação.


* Texto e foto (05/03/2000): Ulisses Passarelli

terça-feira, 24 de julho de 2012

Pastorinhas de Tiradentes

Pastorinhas, Bairro Vargem de Baixo, Tiradentes/MG.
Grupo retratado no adro do Santuário da Santíssima Trindade, após a missa do Natal.
Aparecem a mestra sra. Ana de Meneses e o pároco Padre Ademir Longatti. 
Ao fundo, o paredão da Serra de São José.

* Texto e foto (25/12/1995): Ulisses Passarelli

Folia de Ribeirão Vermelho



Folia de Reis "Embaixada João Batista Tobias" de Ribeirão Vermelho/MG. 
Apresentação durante encontro de folias em Mercês de Água Limpa, ex-Capelinha (São Tiago/MG).

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Vídeo: Cida Salles: janeiro/2010.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Mutirão na Restinga

Mutirão de capina, Restinga (Ritápolis/MG).

* Texto: Ulisses Passarelli
** Foto: data e autor não identificados.
*** Reprodução fotográfica de originais presentes na sacristia da Capela de São Sebastião,
Restinga do Meio, em 1996.

Ligeiro relato sobre mutirões

Sob o nome de muxirão é conhecido no Brasil o costume rural dos pequenos agricultores se auxiliarem mutuamente e de forma gratuita, em favor de um, reunindo-se para exercer uma tarefa de execução impossível só pelo indivíduo ou mesmo por sua família. Posteriormente o ajudado participará de outros muxirões em auxílio das pessoas da comunidade que lhe ajudaram.

A palavra muxirão tem procedência indígena e ao longo do território nacional se desdobrou em muitas corruptelas: mutirão (a mais conhecida, por isso doravante, usada neste texto) mutirom, mutirum, muxirã, muxirom, pixurum, ponxirão, putirão, putirom, puxirão, puxuru e puxirum. Surgem como sinônimos Brasil afora: ademão, adjunto, ajutório, ajuri, ajuricaba, arrelia, bandeira, batalhão, boi-de-cova, côrte, estalada, faxina, junta, pega-de-boi, suta.

É costume antiqüíssimo, difundido no Brasil todo e em diversos países da América, África, Europa e Ásia nos quais vai recebendo uma vastidão de nomes.


Mutirão de capina, Restinga (Ritápolis/MG).

Muitos estudiosos os tem abordado mas destaco dentre eles os seguintes ensinamentos:

"O Mutirão, velho hábito das populações rurais brasileiras, não poderia ser examinado longe da realidade econômica nacional (...) não só no Brasil como em vários países, o Mutirão depende mais ou menos da organização do trabalho rural, da carência de mão de obra etc., aspectos logicamente ligados à estrutura econômica agrária e, por conseguinte, à própria economia regional." (MOTA, p.12)
* * *
(...) "há uma instituição de solidariedade social, nem eventual nem episódica, com todas as características de permanência e generalidade. (...) Se esse apoio recíproco não existisse, muito piores seriam as condições de vida das nossas populações rurais.(...) mesmo na fase em que nos encontramos, de transição de uma economia colonial para uma economia pré-capitalista, ainda aqui o corretivo do mutirão se afirma para desbastar arestas e encher os vazios da pobreza." (GALVÃO, p.14)
* * *
"O mutirão é uma instituição social que atenua, corrigindo-os, os efeitos individualistas que a economia latifundiária imprimiu à vida rural brasileira." (CASCUDO, p.603)

Em Minas Gerais é costume bastante arraigado e na microrregião Campos das Vertentes onde focalizei esta pesquisa foi bastante usado, hoje resumido a ocorrências muito eventuais em comunidades rurais mais isoladas e tradicionalistas. Em geral desapareceu das povoações, banido pela força conjunta da pressão capitalista, de fatores da globalização, do fluxo migratório para novas frentes agro-pecuárias de outras regiões, do êxodo rural e por algumas distorções trazidas pelas leis trabalhistas e de proteção aos menores de idade (assíduos nos mutirões). A falta de oportunidades e de infra-estrutura no campo, além da especulação imobiliária, contribuem também para a dissolução das comunidades rurais. Uma vez que os agentes desse costume se transferem para as periferias, eles não tem possibilidade de mantê-lo e logo desaparecem. Na cidade só resta o mutirão para “bater laje”, ou seja, concretar a laje de uma casa.

Não compete a um pequeno artigo ilustrativo explorar em análises cada um destes ítens supra-expostos.

Por tudo isso, muito embora não estejam exterminados, mas pelo menos semi-extintos ao menos por aqui nas Vertentes, opto por uma questão de bom senso em escrever no passado.


Mutirão de Capina, Restinga (Ritápolis/MG).

Eram ocasiões de mutirões: capina de grandes plantios, roçado de pastos, abertura ou limpeza de regos de irrigação, valas para divisão de terras e estradas de servidão à comunidade; taipamento de casas ou mesmo sua construção completa, certas colheitas e seu carregamento, abate de um porco grande, limpeza de áreas que serviriam a festas da comunidade, serviços de tecelagem (mutirões femininos), derrubada de matas, carregamento de madeira, encoivaramentos, obras de certas pontes, edificação de capelas rurais, etc.

Distinguiam-se duas modalidades deste serviço voluntário: o mutirão propriamente dito, que era solicitado aos companheiros por quem dele precisava, ou oferecido por eles (ou pelo líder comunitário), que reconheciam a necessidade do proprietário; ou em outra qualquer circunstância, mas sempre com o consentimento do dono da terra, que por saber de antemão, se preparava para o evento com comes-e-bebes suficientes e gente para ajudar na cozinha, pois é de praxe tratar fartamente dos componentes de um mutirão. É ponto de honra. Retribuição indispensável e instantânea. A segunda modalidade era a “traição”, que mais que sinônimo de mutirão, designava aquela sua versão que se realizava de surpresa, sem que o beneficiado soubesse, posto que era tramado “pelas suas costas”. A turma de trabalhadores chegava de repente no sítio ou fazenda, pela madrugada e acordava os moradores com grande algazarra, entre tiros para o ar, foguetes, cantoria, batidos de pedras no metal da enxada ou foice. Assim anunciados e feitas as saudações, partiam direto para o serviço, enquanto o anfitrião acorria desorientado para arranjar de uma só vez comida, quitandas, café e cachaça para todos.

Fica claro que enquanto os homens pegavam nas ferramentas pesadas, se estabelecia um mutirão paralelo, o da cozinha, a cargo das mulheres, aceleradas nos preparativos, sempre abundantes.

O dono da terra ficava como um pêndulo no balanço entre a cozinha e a roça, dando atenção a todos e por assim dizer supervisionando as tarefas, sem porém nenhum autoritarismo.

O número de participantes era sempre muito variado pois dependia da disponibilidade e boa vontade de ajudar. Obviamente que pessoas antipatizadas naquele meio não recebiam tal ajuda e por conseguinte, quanto mais benquisto mais participantes teria o mutirão em seu favor. Relatos orais falam de vinte a oitenta integrantes. Claro que variava também com o tamanho da tarefa e o da própria comunidade rural.

Os mutirões mais freqüentes por aqui eram os de capinar e os de roçar.

Para o de capina prevaleciam dois sistemas de tarefas: o de quadros e o de eito. Os líderes logo ao chegar ao lugar do serviço, punham-se a medir o solo por meio de varas (cada uma com 11 palmos e meio – ou seja aproximadamente 2,50 m cada), em comprimento e largura, marcando terrenos em quadriláteros, de duas a quatro varas ou mais, que entregavam a cada trabalhador. Pegavam no serviço com firmeza e sempre havia o intuito de terminar mais cedo que os outros. Quem não dava conta e pelo almoço não tinha terminado, era alvo de zombaria por parte dos companheiros.

Após a alimentação, o serviço remanescente era tomado de imediato no sistema de eito. Todos compunham como que uma linha de trabalhadores, em sentido transversal ao terreno. Avançavam capinando juntos, mas nunca a fileira se fazia homogênea. Os melhores de serviço eram postos nas extremidades e mais para o centro ficavam os menos produtivos. Como os extremos logo avançavam mais, a formação tomava o formato de uma meia-lua e se ela fechasse em círculo sob os do centro... Aí então o motejo era enorme! Os do meio se esforçavam ao máximo para que isso não acontecesse, pois o chefe da turma, quando via que para isso caminhava, logo gritava como interjeição entre a cantoria: “olha a coruja!” ou “olha o homem do bumbo!”. Era como a senha para que acelerassem. E nesse jogo passavam horas.

Em tempos muito remotos havia o costume de um indivíduo correr ao longo da fileira batendo um tambor para compassar o ritmo das enxadadas. Ainda se usava uma espécie de fantoche de pano imitando uma coruja, que era fincada numa estaca no meio do roçado e ficava de lá como que vigiando os trabalhadores. Era o incentivo pois o bicharoco de trapos ficava com a pessoa retardatária até o próximo mutirão e o sujeito era então alvo de intermináveis pilhérias. Assim também que o caixeiro batia seu instrumento mais perto do atrasado para lhe estimular o ritmo. Desaparecidos de fato, ficaram apenas no palavreado como lembrança.

Durante os quadros não, mas no eito, a cantoria era desenfreada, puxada pelos mais experientes, um encabeçando cada extremo da fileira (eram os “orélas”). Desafiavam-se mutuamente, exibindo seus dotes improvisatórios e o conhecimento acerca de versos antigos decorados. Em Piedade do Rio Grande eram chamados "capitães de roça".

Os demais capinadores ou roçadores respondiam em vogais prolongadas como se aboiassem, mas respondendo em uníssono, ou prolongando o fim dos versos, então escalonando vozes como nas folias de Reis.

Os cantos deste trabalho seguiam a estilos, variáveis conforme a região. Em Alagoas por exemplo, reparou Alceu M. Araújo que o chamavam “aboio de roça”, diferente do aboio do vaqueiro, mas guardando certa similitude estrutural.

Por aqui um estilo é a “derrubada”, cantada por ocasião dos serviço com foice, enxada ou machado. Os versos habitualmente aludem às coisas simples da roça e parecem ingênuos aos olhos do observador urbano. É também conhecida no sudoeste mineiro.

"Agora qu’eu vô cantá, - ô laranjeira!
Qu’inda hoje eu num cantei, -  ô laranjeira!
Eu quero exprimentá meu peito, -  ô laranjeira!
S’inda ‘stá como eu deixei, -  ô laranjeira!"
(Passos/MG. O solista canta os versos e os demais respondem “ô laranjeira”)

Para o centro-norte mineiro se diz “guaiano de roça” (ou guaiana), diferenciando-o do verdadeiro guaiano, que é canto acompanhado de dança em filas vis-a-vis, desempenhado nos intervalos das folias de Reis.


O “jongo de roça” se discernia pela influência afro no seu estilo e não raro se intercalavam palavras de base africana:
(Solista:)
"Oi que puê, que puê!
Oi, norungandá, quimbarca maioê, rê, rê, rê!

_ Êh...! Chega a barca, barquêro,
quero m’imbarcá,
passá pro lado de lá,
subí no arto de montanha...
ei, saravá quem é?"

(Desafiante:)
"_ Êh...! Saravá dono roça,
saravá dono de roça!"
(Cubango, Resende Costa/MG)

 Um estilo muito próximo era a “jomba”, que ainda sobrevive absorvida pelos moçambiques, sobretudo no rumo oeste mineiro. O desafio se processava numa linguagem travada, até por vezes quase dialetal, por meio de pontos, cujo significado só os iniciados poderiam entender. Até porque muitas vezes estavam eivados de misticismo religioso referentes aos orixás e entidades espirituais. Por isto cantavam algo cuja interpretação ficava ininteligível ou era interpretada às avessas:

"Vovô pegô o machado
E foi pro rio pescá;
Vovó pegou o anzol
E a lenha foi cortá,
Se eu canto jombê,
Ôceis intende jombá..."
(Ibituruna/MG)

Algumas vezes um trabalhador ousava intrometer-se no desafio e tentava interpretar e responder o verso proposto, que se repetia até ser desvendado por um certo desafiante. Mas se não houvesse o traquejo os mais velhos poderiam “amarrá-lo” através da cantoria ou mesmo revidar com temíveis feitiços, de fato ou apenas na ameaça verbal, apenas propondo um verso misterioso que o intimidasse:


"Num mexe com marimbondo

Sem ter palha pra queimá

Marimbondo é bicho bravo
Inda faz casa no ar..."

(São Gonçalo do Amarante, São João del Rei/MG)

A “acabada de roça” era com os versos derradeiros, sempre alegre e não mais de porfia, trazendo satisfação e recobrando os ânimos:

“Ei, candimba!
Arruma a mala,vai embora
_ Oi, candimba!”
(Cubango)

ou:

“Vamos’imbora, gente!
Vamos’imbora gente,
Até para o ano se Deus quisé!”
(Santa Rita do Ibitipoca)

 Para terminar e sempre em intensa alegria, arrancavam um ramo do mato, ou planta de milho ou cana, e com ele vinham  na dianteira, de volta da lavoura para a sede da fazenda ou sítio, acenando-o qual um pendão. É a “bandeira”. Por vezes eram duas: uma ficava com o chefe do mutirão (“turmeiro”) e tinha um pano ou lenço vermelho amarrado, e outra era entregue ao “patrão” (dono do terreno), com um pano branco.
            
Os trabalhadores chegavam pulando no ritmo da cantiga, enxada  ou foice ao ombro, batendo no metal com uma pedra fazendo-o tinir ou percutindo ritmadamente uma enxada contra a outra. 
           
Entregar o ramo como uma bandeira (daí dizerem “festa das bandeiras”) era o simbolismo de entregar a missão.
            
O dono da terra agradecia a todos e se confraternizavam com a comilança extra, a cachaça corria solta e diante de uma fogueira improvisada no terreiro da fazenda, passavam outras tantas horas tocando instrumentos musicais e cantando modas caipiras, dançando catiras, canas-verdes lundus, quimbetes, batuques de viola, mazurcas e outras danças.
            
Da parte de todos havia o esforço de cumprir as tarefas antes do Natal, pois a roça que ficasse sem limpeza até esta data extrema, fosse por grande desleixo do seu dono ou por não permitir o mutirão, era alvo de uma represália sui-generis chamada joão-do-mato, estafermo ironizador e de finalidade expurgatória, que às escondidas punham na sua lavoura. Mas deste detalhe não vou explanar neste texto, pois já foi tema de outro, que publiquei a uma década.
            
Assim em resumo corriam os mutirões embora que detalhes se vissem daqui e dali e que me fogem no momento deste breve relato.
            
É fato lastimável o desaparecimento deste costume que além de uma finalidade prática utilíssima, tinha um grande poder agregador na comunidade, banindo o egoísmo. Não se fazia por dinheiro, mas por consideração. A paga era a alegria de uma união fraterna, a satisfação da dança e do canto, a fartura alimentar. As condições sociais desfavoráveis desestruturaram quase por completo o sistema de vida rural e suas tradições. Sem articulação não tem mais como viver, nem na roça vazia de gente nem no subúrbio lotado de estranhos.

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore Nacional. São Paulo: Melhoramentos, 1964.

AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 3.ed. Rio de Janeiro: Delta, 1978.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.]

GALVÃO, Hélio. O Mutirão no Nordeste. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura, 1959. Coleção Documentário da Vida Rural, n.15.

MOTA, Ático Vilas-Boas da. Mutirão: inquérito lingüístico-etnográfico-folclórico. Goiânia: Impresa Universitária, 1964. V.1, questionário.

PASSARELLI, Ulisses. Topei com o joão-do-mato... Revista da Comissão Mineira de Folclore, Belo Horizonte, n.19, agosto/1998.

Cantos afro-descendentes: vissungos. Suplemento. Belo Horizonte: Secretaria Estadual de Cultura, out./2008.

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli, agosto/2007.

** Fotografias: autor e data não identificados. Reproduções de fotografias presentes na sacristia da Capela de São Sebastião na Restinga do Meio (Ritápolis/MG), consentidas pelo zelador da época.

domingo, 22 de julho de 2012

Senhora Santana

Algumas  tradições sobre Santa Ana

Santa Ana (“Santana”) é avó de Jesus Cristo, comemorada a 26 de julho. Segundo Antônio Gaio Sobrinho, “seu culto, mais antigo no Oriente, foi autorizado, no Ocidente, em 1378”.

Tal autorização me parece um tanto curiosa, haja vista a Bíblia nada falar a seu respeito. Apenas nas páginas não canônicas encontramos algo a respeito de Santana. Ora, se os apócrifos foram abolidos de qualquer uso litúrgico e catequético, então não haveria, nesta perspectiva, sentido venerar oficialmente uma santa que só tem base neles. 

Segundo a tradição ela seria descendente de Davi. Seu pai era Acar, da Tribo de Judá e sua mãe, Santa Emerenciana. Mas o hagiológio registra com este nome uma mártir, que ainda em catequização foi apedrejada por pagãos em lugar não conhecido, no ano 304 d.C. Festejada a 23 de janeiro [1].

Ana teve uma irmã chamada Emerina (ou Eméria). Emerina teve como filha Santa Isabel, que se casou com São Zacarias e deu à luz São João Batista. 

Consta que Ana casou-se três vezes, a primeira das quais com São Joaquim, aos vinte anos de idade. Por duas décadas o casal permaneceu sem filhos, motivo de grande tristeza para ambos. Joaquim, que tinha um comportamento caridoso, recebia dos judeus o descaso por não ser israelita. Assim o repreendiam pelas suas ofertas. Recolheu-se sem nada dizer à esposa, por longo período, em orações e jejuns. Em contrapartida, sua mulher igualmente lamentava sua má sorte, sem descendentes e supostamente viúva. Um anjo oportunamente anunciou-lhes que Deus lhes concederia uma graça extraordinária: o nascimento de uma criança, porta de chegada do Messias. Joaquim voltou e deles nasceu Maria de Nazaré, a Virgem, Mãe de Cristo e da Humanidade. Os apócrifos Papiro Bodmer, Proto-evangelho de Tiago, Evangelho do Pseudo-Mateus e História de José Carpinteiro [2], registram com detalhes o diálogo de Ana com sua criada acerca de seu sofrimento, suas preces e lamentos, bem como os do consorte, além do anúncio angélico e aspectos da vida de Maria de Nazaré.

O segundo casamento de Santana foi com Cléofas (irmão de São José). Nasceu “Maria de Cléofas”, que esposou Alfeu, gerando São Tiago (o Menor) e o apóstolo São Filipe. Por fim, seu terceiro casamento se deu com Salome, com quem teve uma filha, conhecida por “Maria de Salome” que se casou com Zebedeu e tiveram como filhos os apóstolos São Tiago (dito Maior) e São João (Evangelista).

A descendência deixada por Santana explica o parentesco de Jesus com alguns apóstolos e com o Batista. Suas filhas de nome Maria de Cléofas e Maria de Salome, junto com uma terceira Maria, a Madalena (a pecadora arrependida), é que formaram a tradição cristã das “Três Marias”, que choraram por Jesus no calvário, junto com uma quarta homônima, a Virgem Maria, sua mãe. Estas três marias é que são representadas em nossa Procissão do Enterro com o curioso nome de “Maria Beú”, por três mulheres que acompanham o esquife do Senhor Morto, com traje de luto, todo preto, com vestido longo e véu sobre a cabeça. “Beú” é alteração da expressão heu, repetida pelas personagens de tanto em tanto, quando cantam muito dolosamente: “Heu! Dómine, Salvator noster!” (Ai! Senhor, nosso Salvador!)

Três Marias é ainda o nome das três estrelas, que formam a Cinta ou Talabarte da constelação de Órion[3].

Por ser avó do Salvador, Santana é considerada padroeira das avós cristãs e pela primeira gravidez em condições por assim dizer miraculosas, tornou-se patrona das mães (*). Talvez por isto seja invocada contra inflamações nos seios, como mostra esta benzeção informada pela saudosa Sra. Elvira Andrade de Salles, em setembro de 1997, natural do povoado do Guilherme, na zona rural de Bias Fortes / MG, mas radicada a muitos anos no Córrego, em Santa Cruz de Minas: 

“Homem bom me deu pousada
mulher má me fez a cama; 
quarto escuro, esteira rôta; 
entre os ciscos e a lama. 
Senhora Santana benza esses peitos 
onde essa criança mama.”

Deu rigorosa educação religiosa à Virgem Maria, tanto que uma de suas imagens mais populares representa-a como uma senhora tendo ao lado uma menina (Maria), a quem mostra um pergaminho com inscrições sagradas. Dizem-na “Santana Mestra”. Daí ser também protetora das professoras. 


Imagem de Santana da Igreja do Carmo, São João del-Rei. 
Acervo da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmelo.

Nos tempos do ciclo do ouro Santana era protetora dos mineradores, por razões pouco claras. Antônio Gaio Sobrinho, em comunicação pessoal, atribuiu esse padroado à coerente alusão, um tanto poética por sinal, de que, assim como os garimpeiros procuravam no seio da terra uma joia preciosa, também Santana trazia em suas entranhas uma joia, a Virgem Maria. Talvez por essa razão sua imagem figura nas antigas igrejas coloniais das cidades onde houve minas [4]

Uma notícia curiosa nos revela Antônio Gaio Sobrinho acerca de uma decisão da Câmara de São João del-Rei datada de 03/10/1742 (**): 

"acordaram mais em não pagar ao Capelão que diz as missas da Senhora Santana, de agosto em diante, mais que tão somente meia oitava por cada missa por assim lhe mandar a (desistir) por razão da Irmandade estar com dívidas e sem recursos e ser desnecessário capelão por não ser Irmandade e sim Confraria."

Ainda a título de curiosidade e como registro, segue uma peça avulsa do cancioneiro popular (***):


Senhora Santana,
de grande valor:
me dá meu marido,
que a Rosa tomou ...

Deixando o marido
fez a Rosa bem;
e sorte da rosa
e do cravo também!

Nas serras de São José e do Lenheiro encontra-se com frequência a pedra-santana, nome de origem não identificada, aplicada pelos faiscadores a uma espécie de minério de ferro de cristalização cúbica, a magnetita. Narrou-me o amigo Luiz Antônio Sacramento Miranda, que ainda na década de 1970, que as crianças do Bairro Senhor dos Montes, em São João del-Rei, conservavam a simpatia de na Sexta-feira da Paixão, às 15 horas (horário da morte de Jesus), colocar uma pequenina pedra destas debaixo da língua por algum tempo, a seguir a jogando na água. Tal medida, teria o objetivo de garantir aprovação escolar naquele ano, não deixando o jovem estudante "tomar bomba" (ser reprovado). 


Pedra-santana, Serra do Lenheiro, São João del-Rei. 

No Rio Grande do Norte essa santa goza de enorme reputação, especialmente no Sertão do Seridó, onde lhe promovem grandes festividades que congregam enormemente os fiéis daquela região, conforme presenciei em 1995 (Caicó e Currais Novos).

No centro-sul mineiro é padroeira secundária da cidade de São Tiago, por decreto do Bispo de Oliveira, Dom Jesus Rocha [5]. É padroeira de Barroso, Carandaí e Antônio Carlos, com grandiosas festas em seu louvor. Tem capela em Ressaquinha. Tinha festa em Santa Cruz de Minas, até meados da década de 1990. Em Prados oitocentista seus devotos intencionaram erigir uma capela própria, intensão não efetivada (****).

Em São João del-Rei/MG, na zona rural, comemorava-se tal como os santos juninos, porém num âmbito mais familiar que propriamente comunitário. Considerava-se que a última fogueira do ano seria a desse dia, consagrada a Santana. Se um mastro de qualquer santo de junho ainda estivesse de pé, devia ser baixado nesse dia [6]. No bairro de Matosinhos, ainda que tardiamente (fim do século XIX), ganhou um dia festivo durante as festividades de Pentecostes, a quarta-feira após o Domingo do Espírito Santo, encerrando as festividades. No ano de 1891 exerceu o cargo de Juiz de Santana na Festa do Divino, o Cônego Francisco Nunan (*****). Após o resgate da festa em 1998, o seu dia ali passou a ser a quinta-feira imediatamente antes do dia maior da festa. 

Cumpre ainda ressaltar, que a tradição cristã acerca de Santana se estendeu de maneira geral ao candomblé e à umbanda, sincretizando-a com a mais velha dos orixás: Nanã Buruku (ou Burukê), por isto mesmo intitulada “Avó dos Orixás”. As cores votivas de Nanã são o branco e o roxo e por isto, o manacá é sua flor consagrada (******). 

Manacá (Brunfelsia uniflora, solanaceae): branco, roxo, lilás... flor de Nanã. 


[1] - Grande Enciclopédia Delta Larousse. Rio de Janeiro: Delta, 1979.
[2] - In: MORALDI, Luigi. Evangelhos apócrifos. São Paulo: Paulus, 1999.
[3] - Alnitek, Anilam e Mintaka. De acordo com a mitologia grega, Órion ou Oríon era um caçador gigantesco, filho de Poseidon (deus do mar). Artemís (deusa da caça) fez com que um escorpião o picasse sendo então transformado em constelação, junto com o inseto. A cristianização do nome se deu por analogia às três mulheres de nome Maria, ou ainda denominando-as na tradição de “Três Reis Magos”. 
[4] - GAIO SOBRINHO, Antônio. Santos negros estrangeiros. São João del-Rei: [s.n.], 1997.153p.il. 
[5] - Cidadania, São Tiago, n.45, fev./mar.-2006.
[6] - Informação pessoal de 1996, do capitão de congado e folião Luís Santana, natural do Pombal (São João del-Rei), onde faziam tal festa, na casa de seu pai, Afonso Santana, que acabava por agregar a vizinhança. O informante, quando chegava com seu congado (catupé) na porta da igreja, de praxe cantava: 

"Êh, Santana!    - bis
Abre a porta do céu, São Pedro..."    -   bis

Bandeira de Santana. Acervo da Comissão Organizadora da Festa do Divino Espírito Santo.
São João del-Rei/MG. Data: 04/06/2017.

Notas e Créditos

* Ver: BRANDÃO, Ascânio, Monsenhor. Santa Ana: Mãe da Mãe de Deus. São Paulo: Paulinas, 1962. 
** GAIO SOBRINHO, Antônio. São João del-Rei através de documentos. São João del-Rei: UFSJ, 2010. 260p. p.60. (ACOR 01 PG 163)
*** Informante: Elvira Andrade de Salles, Córrego, Santa Cruz de Minas, 1998. Cedido por uma gentileza de Maria Aparecida de Salles, a quem consigno agradecimentos.
**** Ver: VALE, Dario Cardoso. Memória Histórica de Prados. Belo Horizonte: [s.n.], 1985. Nota nº11, p.158.
Este autor, baseado no Livro de Provisões da Cúria Arquidiocesana de Mariana, enumera que "em fins de 1826 (cf.Cx.281, pacotilha 3, Doc.42, idem.), Francisco Joaquim de Assis e mais devotos da Senhora Santana, moradores da Freguesia da Conceição dos Prados, pedem licença para erigir uma Capela à Santa. (Esta capela não chegou a ser construída)."
***** Fonte: jornal Gazeta Mineira, n.347, 10/06/1891.
****** Os Orixás: Nanã. 3.ed. São Paulo: Três, 1987. 34p.
******* Texto: Ulisses Passarelli
******** Fotografias: Iago C.S. Passarelli, 2014 (pedra-santana), Ulisses Passarelli, 2014 (imagem de Santana; manacá; bandeira de Santana)