Bem vindo!

Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




quinta-feira, 28 de agosto de 2014

O folclore dos dentes - parte 3

Vocabulário popular da odontologia

O universo popular da cultura informal, do linguajar diário, criou um vasto vocabulário em torno da dentição e de certas práticas clínicas odontológicas. Ele mostra um modo muito especial de visualizar as relações de saúde do homem com respeito aos dentes, constituindo uma curiosa forma de nomenclatura, algumas vezes extensiva até a quem trabalha na área. 

Não é nada técnico, oficial nem científico, tão pouco desrespeitoso. É folclore, vivo e alegre, perspicaz nas observações, registrando ora com humor ora com uma pitada de sofrimento a realidade do problema da saúde bucal, que em parte ainda atinge lamentavelmente uma parcela do país. 

Os termos foram recolhidos por longos anos de vivência clínica em São João del-Rei e Santa Cruz de Minas. Foram preservados de maneira anônima em velha anotação de pesquisa. 

Guia de tentos e dentes. São João del-Rei, 2007. 

Banguela (o) – desdentado, total ou parcial. Termo pejorativo que remete aos benguelas, etnia africana, bantos de Angola escravizados no Brasil. Tinham o costume de limar os dentes gradativamente desde muito cedo, de tal forma que em idade avançada eram minúsculos, por questões que consideravam estéticas e talvez rituais. Por analogia, quem tinha dentes pequenos ou faltantes eram equiparados aos benguelas. Eram embarcados ao Brasil pelos traficantes de escravos no porto de São Filipe de Benguela, possessão portuguesa em Angola. 

Beque – sorriso falho quando só aparecem os caninos (ou algum pré-molar), quando os incisivos já foram extraídos. Termo absorvido do futebol. 

Bloco – coroa total metálica.

Boca de latrina – expressão pejorativa: sujeito acometido por intensa halitose.

Boqueira – queilite angular. Lesão nas comissuras labiais (ângulos da boca) associada à perda da dimensão vertical e infecção fúngica.

Boticão – “buticão”, fórceps. Instrumento usado para extrair dentes.

Cabresto – mentoneira, aparelho usado em ortodontia e ortopedia funcional dos maxilares. Analogia ao equipamento de couro e metal usado na cabeça dos animais de carga e montaria.

Caco – foco residual ou resto radicular. Remanescente dental inaproveitável, extremamente destruído pela cárie e doença periodontal.

Chapa – 1- Dentadura. 2- Radiografia. “Bater uma chapa” (radiografar).

Chumbinho – amálgama.

Cobra caolha – amálgama aplicado numa única fóssula oclusal de pré-molar inferior. Ver: olho de cobra.

Cocada – prótese total removível ainda em confecção, na fase de prova dos dentes em cera. 

Curativo – capeamento pulpar; restauração provisória. 

Dentadura – Prótese total removível. Denominação consagrada pelo uso, inclusive no linguajar profissional.

Dentão – dente excepcionalmente grande; caso de macrodontia.

Dente crescido – caso de pericementite: inflamação aguda no periodonto, ao redor do cemento, causando incômoda e dolorosa sensação de extrusão dentária.

Dente da frente – incisivo.

Dente de cavalo – dente anterior grande e de ângulos nítidos; incisivo proeminente.

Dente de leite – dente decíduo. Denominação consagrada pelo uso, inclusive no linguajar profissional. Sua tonalidade muito branca lembra a do leite[1].

Dente de mandioca – dentes anteriores superiores muito brancos, grandes, de tamanho e forma muito parecidos, com pouca distinção morfológica entre incisivos centrais e laterais [2].

Dente de traíra – dente afiado, pontiagudo, como do peixe traíra (gênero Hoplias, família erythrinidae).

Dente do juízo – terceiro molar.

Dente do siso – ou apenas, “siso”; terceiro molar. Denominação consagrada pelo uso, inclusive no linguajar profissional. O mesmo que “dente do juízo”, nome dado devido ao período que estes dentes erupcionam (“nascem”), em torno de 18-21 anos de idade em média, quando o jovem atinge a maioridade [3].

Dente inflamado – literalmente, dente acometido por pulpite. O povo adota este conceito por extensão para outras situações clínicas dolorosas, tais como: pericementite, abscessos (crônicos ou agudos) e osteíte.

Dente mole – elemento dentário com mobilidade, gerada pela perda patológica de implantação óssea.

Dente podre – dente extensamente destruído por lesão cariosa. Geralmente é resultado de uma cárie aguda e por vezes, rampante.

Dentucinho – 1- criança com dentição mista (“fase do patinho feio”), na qual os dentes permanentes parecem ser grandes em relação ao tamanho da face infantil, ainda em crescimento. Dentes com diastema (afastamento com falta de ponto de contato entre elementos contíguos). 2- diminutivo de dentuço.

Dentuço – pessoa com os dentes anteriores grandes. Dentudo. É sempre de uso zombeteiro, especialmente aplicado aos portadores de protrusão maxilar.

Distraí – corruptela comum de extrair. Exodontia, avulsão cirúrgica.

Dor de dente – odontalgia. Diz-se dos sintomas de pulpites e lesões ósseas periapicais (junto ao ápice da raiz dentária).

Estrelinha – amálgama, para as crianças.

Goleiro - incisivo inferior remanescente. 

Heróis da resistência – últimos dentes remanescentes em uma boca edêntula em sua quase totalidade. Não raro restam apenas os dentes anteriores inferiores.

Limpa-trilho – diz-se quando os incisivos mediais superiores são muito protrusos. Analogia à forte peça de ferro que os trens a vapor antigos, as maria-fumaça, tem na frente, a fim de tirar objetos dos trilhos, para evitar acidentes por descarrilamento da locomotiva.

Limpeza – procedimento de profilaxia dental: raspagem de cálculos, remoção de manchas, polimento dentário – indistintamente.

Marfim – 1- esmalte dentário. 2- resina de uso odontológico estético.

Massinha – cimento de óxido de zinco e eugenol usado em restaurações provisórias e capeamentos (diretos e indiretos).

Mata-cobra – articulador de garfo ou charneira, usado para montagem de modelos de gesso em laboratório.

Mau hálito – halitose.

Nervo do dente – a polpa dentária e não especificamente as suas terminações nervosas.

Obturar – de forma indevida é sinônimo de restaurar. Obturar é tampar, fechar. Restaurar é restituir forma, função e estética.

Olho de cobra - amálgama aplicado nas duas fóssulas oclusais de pré-molar inferior. Ver: cobra caolha.

Panela – os molares. Também se diz das amplas cavidades cariosas que acometem estes dentes.

Pé do dente – região cervical da coroa (próximo à gengiva) e colo do dente. É comum o paciente queixar-se da dor nesta área nos casos de recessão gengival e abrasão local do tecido dentário.

Perereca – prótese parcial removível muco-suportada, sem grampos fundidos e eventualmente com grampos improvisados com fios ortodônticos. Pelo suporte deficiente, “salta” da boca, daí “perereca”, o que pula.

Pilão – molar. O termo se aproxima da etimologia inicial, pois que, molar vem de , a pedra de moer, donde surgem as palavras moinho, moagem, moleiro, moenda. Pilão é o artefato de madeira usado primitivamente para moer, por vias manuais e não por mecanismo mecânico. O molar é o dente responsável pela moagem do alimento.

Piorréia – “periodontose”; periodontite avançada. Lesão do periodonto quando o dente já apresenta franca mobilidade, muito tártaro, sangramento gengival, tecido de granulação, alteração das características anatômicas da região peridental.

Pivô  - pivot, coroa com espiga. Coroa unitária com pino intracanal integrado à própria coroa, cimentado em conjunto. Em grande parte substituído pelo sistema de núcleo metálico fundido cimentado antes da coroa propriamente dita, num sistema mais eficiente.

Platina – amálgama. O povo supõe que o amálgama seja feito por platina, talvez porque no passado sua liga recebia pequenos percentuais deste metal raro e precioso.

Presa – canino. Terceiro dente da bateria anterior, imediatamente após os incisivos.

Quisto – cisto.


Rancá – extrair dente; exodontia.

Ratinho – pessoa com dentes semelhantes aos de um rato. Se o dente é pequeno dizem “ratinho”, se grande e protruso, “ratão”.

Rôti – Roach, PPR (prótese parcial removível), sistema a grampos fundidos, geralmente em liga de cromo-cobalto.

Sapinho – candidíase oral, principalmente em crianças. Lesão esbranquiçada e sangrante, causada pela infecção fúngica por Candida albicans.

Sorriso cento e um – diz-se que alguém tem este sorriso quando falta um único incisivo na bateria anterior. É uma aproximação bem humorada com a matemática: 101 é formado pelos algarismos um, zero e um; como na boca – um dente, sem dente, outro dente ...

Sorriso de piano – arco dentário com elementos de tamanho e forma próximas, tendo o aspecto nitidamente quadrilátero. A monotonia da composição gerou a analogia com o teclado de um piano.

Sorriso mil e um – faz-se pelo mesmo princípio do cento e um, porém quando faltam dois incisivos vizinhos um do outro.

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Fotografia: Iago C.S. Passarelli, 2014   
*** Leia também:

O folclore dos dentes - parte 1
O folclore dos dentes - parte 2



[1] - Na gíria futebolística, sobretudo no futebol informal, infanto-juvenil, “dente de leite” é o jogador muito ruim, que é posto em campo só para complementar o número regimental de jogadores, sendo excluído das jogadas importantes.
[2] - As crianças de São João del-Rei costumam brincar com a casca da mandioca (Manihot utilíssima, euforbiácea), pegando a parte interna (muito branca) e cortando à faca as bordas e fazendo entalhes que imitam dentes pela forma. Curvam em forma de arco dentário e alojam esta “dentadura de mandioca” no vestíbulo bucal, mantendo-a presa pela musculatura do lábio superior e bochechas.
[3] - No interior potiguar, em 1996, em Santo Antônio (do Salto da Onça) e Caicó (nas comunidades rurais de Laginhas e Sabugi) ouvi diversas vezes chamarem ao terceiro molar de "quexá" e “dente quêro”.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Quadrinhas de amor - parte 3

Esta postagem apresenta aos estudiosos e amantes da poesia popular mais cinquenta quadras compostas sob a inspiração do amor, parte de uma coleção bem maior, em parte já exposta neste blog e com outros números planejados. 

São quadras anônimas e talvez em alguns casos tornadas propositalmente "anônimas", ou em outras palavras, quiçá apropriadas pelo povo de autores conhecidos e repetidas de boca em boca ou de caderno em caderno, como se fossem de autoria própria. E assim ganham asas e se reconfiguram sob novas influências, variantes, corruptelas e regionalismos. É um processo de folclorização. 

As trovas de amor revelam muitas vezes uma filosofia popular que rege os relacionamentos, mormente os da juventude e adolescência. Outras vezes mostra na sua trama um amor platônico; desilusão, paixão ou tão somente simpatia. Algumas tem desfecho gentil e educado, mas por vezes se fazem grosseiras e até cômicas. Nota-se também em algumas a repetição de fórmulas, tais como os versos-feitos, que aparecem em várias quadras de diferentes procedências. 

O saber popular permite toda esta flexibilidade. Em sua lógica não se prende a fórmulas rígidas. O importante é ser funcional.

Página de um caderno de poesia popular.
Santa Cruz de Minas, 1996. 

Sei que você gosta de mim,
Menina, se tu soubesse,
Embora diga que não.
Como eu te tenho amor,
A boca nem sempre diz
Tua caías em meus braços
O que senti o coração.
Como o sereno caiu na flor.


Menina, minha menina,
O amar e o querer bem,
Quem te fez tão bonitinha?
Todos dois andam junto,
Foi o sol, foi a lua,
O amar passa trabalho,
As estrelas miudinha...
Querer bem padece muito.


Da roseira nasce espinho
O suspiro mais a saudade,
E nasce também a flor;
São dois amor que eu tenho:
Do seu orgulho, carinho,
O suspiro é quando eu vou,
Do seu desprezo, a dor...
A saudade é quando eu venho.


Com A escrevo amor,
Fiz o A pra te amar,
Com P escrevo paixão,
Fiz o Q pra te querer,
Com R escrevo Roberto[1],
Fiz o D pra te deixar,
A letra do meu coração!
Somente quando eu morrer.


Seus olhos são de veludo,
Se eu fosse uma pedra,
Seu sorriso, encantador;
Queria que você sentasse,
Sua boca é meu livro,
Mas como sou gente,
Na faculdade do amor.
Queria que você me amasse.


Joguei uma pedra n’água,
Sua boca é uma rosa,
A onda foi espalhando,
Seu nariz é um botão,
Uma lágrima discreta
Dentro dos teus olhos tem um laço
Veio em meu rosto molhando.
Que prende meu coração.


A paixão e a saudade
Menino dos olhos pretos
São duas fiéis companheiras:
Olhos preto, matadô,
A paixão dura pouco,
Se eu morrer por esses dias
A saudade a vida inteira.
Seus olhos que me matô...


Sua mãe é uma rosa,
Dentro da minha casa,
Seu pai é um jardim,
Corre água sem chover,
Os dois trabalharam juntos
Não sei se são meus olhos
Pra criar você pra mim.
Que chora por não te ver.


Você disse que sou criança
Você disse que sou criança,
Recebi isto com fervor,
Criança sei que sou;
Pois mesmo pequenina,
Um dia você sentirá saudades
Estou morrendo de amor.
Da criança que te amou.


Oh, meu querido
Mandei te retratar
Da minha veneração!
Na parede de meu quarto,
Deus grave suas palavras
Para na hora que não te ver
Dentro do meu coração.
Consolar com seu retrato.


Os pássaros pedem ar,
Os pássaros perderam as penas,
Os presos, liberdade,
Os peixes perderam as escamas,
Eu peço a você,
Eu vivo perdendo tempo,
Amor e felicidade.
Amando quem não me ama.


Moreno dos olhos lindos
O beijo que você me deu
Que um dia encontrei,
É sofrimento para mim,
Não sei o que tu tens
Andarei sempre sofrendo,
Que logo apaixonei.
Até chegar o meu fim.


O amor é como um punhal,
É triste a dor da saudade
De dois cortes fatais,
Ao despedir de alguém.
Quem ama sofre muito,
Quem parte, parte chorando,
Quem não ama sofre mais ...
quem fica, chora também.


Hoje eu vi uma abelha[2],
O vento quando é forte
Pousada, tonta de amor,
Joga folha no chão;
Em tua boca vermelha,
O amor quando acaba
Pensando que era uma flor.
Deixa dor no coração.


Enquanto o mundo for mundo
Se entre duas pedras
Enquanto Deus governar,
Pode nascer uma flor,
Enquanto você desistir,
Então, por que entre nós
Outro, não hei de amar.
Não pode nascer um amor?


A folha da bananeira
Eu tive um sonho esta noite,
Tem quatro ou cinco recortes
Sonho de tanta alegria,
Hei de te amar
Sonhei que me casaram a força
Até na hora da minha morte.
Logo com quem eu queria.


Quando vires a tarde fria,
Quando ver o dia triste,
Não pense que vai chover
A tarde querendo chover,
São meus olhos tristes
Lembre-se que são meus olhos
Que choram por não te ver.
Que choram por não te ver.


Subi no pé de lima
Não te ofereço rosas
Chupei lima sem querer;
Porque tem espinho;
Espetei no espinho
Mas te ofereço meu coração
Pensando que era você.
Com todo amor e carinho.


Se amar for pecado
Sou um jardineiro imperfeito,
Quero ser um pecador,
Pois, no jardim da amizade,
Para ser crucificado
Quando planto um amor-perfeito,
Nos braços do meu amor.
Nasce sempre uma saudade...


De saudade ninguém morre,
Meu amor me deu um beijo,
Vive sempre a sofrer,
O meu corpo estremeceu,
Creio que é verdade,
Depois de nove meses
Pois vivo sempre a sofrer.
O nosso filho nasceu...


Com Deus me deito,
As letras pegaram fogo,
Com Deus me levanto,
Corri para salvar;
Breve eu terei
Salvei a letra ... [3]
Você ao meu canto[4].
O resto deixei queimar.


Quando eu tinha 11 anos
Minha vida é um céu
Só pensava em brincar,
Quando estou do teu lado,
Agora que tenho o dobro
Vira inferno,
Só penso em te amar.
Quando estamos separados.


Ribeirão que corre água,
Se eu fosse uma rainha,
No fundo corre areia,
Te daria o meu reinado,
Se amar fosse crime,
E se fosse uma andorinha,
Eu estaria na cadeia.
O meu ninho do telhado.


Quando eu te amava
O teu rosto é lindo,
Você era a flor do meu canteiro.
Teu sorriso encantador,
Agora que te odeio,
Não me canso de falar,
Você é o porco do meu chiqueiro.
Eu você é meu amor.


Do céu quero uma estrela,
Esta noite eu tive um sonho,
Do jardim quero uma flor,
Na praia do mar sereno:
Dos teus lábios quero um beijo
Sonhei que estava beijando
Do teu coração quero amor.
Seu lindo rosto moreno.


* Texto: Ulisses Passarelli
** Informante: Maria Aparecida de Salles, Santa Cruz de Minas, 1996.
*** Leia também: 



[1] - Verso que permite a flexibilização da letra inicial para ajustar a qualquer outro nome.
[2] - Leia sobre o folclore das abelhas na postagem: As abelhas na cultura popular
[3] - Enuncia-se a letra inicial do nome do amado.
[4] - Paródia de uma conhecidíssima oração do tipo ensalmo: “Com Deus me deito, / com Deus me levanto, / na graça de Deus,/ do Divino Espírito Santo.” Ela enseja também outra paródia, de cunho antes humorístico que desrespeitoso, da mesma procedência desta série de quadras: “Com Deus me deito, / com Deus me levanto, / eu na beirada, / a negra no canto.”

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Folclore nosso de cada dia

Hoje é o dia do folclore. Mas para este blog todo dia é dia do folclore, porque ele faz parte de nosso dia a dia. A cultura popular impregna a vida humana nas mais diferentes etnias. Perpassando muitas tradições e mudando de tendencias regionalmente e ao longo do tempo, as manifestações da cultura popular abarcam os inúmeros ramos do conhecimento humano. 

Advinhas, superstições, produção manual de artesanato, lendas e outras narrativas congêneres, as danças e folguedos típicos, vários ritos, o anedotário, o movimento do cordelismo, as benzeções e rezas fortes, o contexto dos ex-votos, frases de para-choque de caminhão, as fincações de mastros, costumes agrícolas, etc.; enfim, um imenso volume de formas e vertentes culturais estão dentro do que a mais de século e meio chamamos de tradições folclóricas. 

Lamentavelmente o mau uso da palavra levou ao seu desgaste quanto ao significado técnico e muitas vezes ela tem sido preterida, em parte trocada pela expressão "cultura popular". 

Os folcloristas lutam com grande esforço pela preservação e conhecimento destas tradições e os mestres do saber popular reclamam apoio, reconhecimento e valorização, em prol do patrimônio imaterial que tão bem dominam.  

Questões à parte, o folclore representa um filão riquíssimo das expressões culturais de um país, vivenciado no cotidiano do povo, em sua vida coletiva, funcional e dinâmica. 

Para melhor entendimento das questões pertinentes à ciência do folclore, ao fim desta postagem estão lincadas seis fontes de consultas úteis aos que queiram se aprofundar no tema. 

Artesanato em madeira: miniatura de uma charrete. São João del-Rei, déc.1990. 

Congadeiros de Resende Costa, da Guarda Santa Efigênia, um catupé, recolhendo o Reinado 
durante a Festa do Divino são-joanense, no Bairro Matosinhos, 2009.

Um cruzeiro enfeitado para a Festa da Santa Cruz, na localidade de "Trabanda do Corgo" (Outra Banda do Córrego).
Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno (São João del-Rei), 2014. 

No portão do cemitério, a altas horas, reúnem-se em preces e cantos pelos mortos
 os encomendadores de almas. Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, 2000.

Chorando a morte do Zé Pereira (boneco no caixão).
Carnaval de Ritápolis, 2000. 

Ex-votos em madeira representando graças alcançadas sobre as mãos.
Santuário da Santíssima Trindade, Tiradentes, 2014.

Melão de São Caetano: na veterinária popular usa-se macerado e diluído em água 
para curar "febre interna" e "curso" (diarréia) de bezerros. Santa Cruz de Minas. 

Ovos de galinha caipira prontos para venda, 
enrolados individualmente na palha do milho. São João del-Rei, 2013.

Pastorinhas das Águas Férreas, Bairro Tijuco, São João del-Rei, 2000. 

Folia de Reis, Santa Cruz de Minas, 1995.

Notas e Créditos

* Texto e fotografias: Ulisses Passarelli
** Para saber mais a esse respeito acesse os links abaixo:

Folk-lore: tributo a Willian John Thoms
Você sabe o que é folclore
Dia do Folclore
Fundamentos do Folclore
Salvaguarda da Cultura Popular - UNESCO
Salvaguarda do Patrimônio Imaterial - UNESCO
Carta do Folclore Brasileiro - COMISSÃO NACIONAL DE FOLCLORE

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Linguagens sonoras

São João del-Rei ficou conhecida como a "Terra onde os Sinos Falam". A construção de sua alma religiosa dobrou séculos, festa a festa, ano a ano, como a areia que cai de uma ampulheta. O tempo das tradições sacras ainda parece colonial... Elas foram conservadas na força de uma fé incomensurável, que dentre tantos costumes preservou uma linguagem singular através de dobrados e repiques dos sinos das igrejas do centro histórico, com tamanha especificidade, que o povo, ainda hoje, identifica pelo eco do bronze, se morreu um padre, se a procissão está saindo, se há um chamado de missa, etc.

Mas vez por outra e talvez desde sempre, uma polêmica rodeia a mudança dos toques de sinos em São João del-Rei. É uma discussão antiga e em verdade inútil. Aposto que, há oitenta anos atrás, os sineiros velhos diziam que os novos (daquela época) estavam mudando os toques e não deveriam... 

Se o sino é uma linguagem, a mudança é inevitável. Toda linguagem é profundamente dinâmica conforme a faixa etária que a adota e as próprias influências culturais de cada época. Senão, vejamos: quando o escravo da Ana Romeira criou a Senhora é Morta foi uma mudança no ritual, e drástica, pois este toque não existia ainda! Vai que um desses meninos sineiros de agora, cria um novo toque que ninguém pensou até hoje ...

Agora, não quer dizer que se deva estimular as mudanças e experimentações. Criações novas são intuitivas. Sou a favor da preservação sim e todos os sineiros devem ser ensinados de como são os toques tradicionais e estimulados a conservá-los. Apenas afirmo que mesmo assim, ainda que se vigie a meninada para não "bater errado", as mudanças virão, positivas e negativas. 

Ou por acaso os repiques e dobrados obedecem a partituras musicais paradas no tempo, fixadas lá em cima na torre? Ou porventura tem um manual lá no alto, escrito numa cartolina, tipo: um repique no sino pequeno e dois no grande significa tal coisa... Não! Não é assim que funciona. Se aprende de oitiva. É uma tradição aprendida informalmente. Não é um aprendizado institucional. O mecanismo é pela transmissão oral, via mestre-aprendiz. Este é o maior pressuposto de uma tradição folclórica. Como tal, está sujeita a mudanças ligadas ao poder de memória de cada executor e a sua coordenação motora. Então, tem mudanças que podem ser involuntárias, fruto de uma capacidade individual limitada em reproduzir com exatidão o que foi aprendido. Vejo isto todo dia nas congadas e folias... É assim que surgem variantes que anos mais tarde se consolidam como se fossem um modelo. 

No passado isto existiu também com os apitos de trem: os maquinistas tinham toques específicos de embarque, alerta, chegada, cumprimentar, etc. E cada um imprimia seu estilo próprio e sabia afinar o mecanismo de apito da maria-fumaça, a ponto do povo antes de ver a locomotiva, dizer: "óh, escuta... o seu Emídio Giarola tá chegando do sertão na 68..." 

O boiadeiro com o berrante também tinha toque de ajuntar boiada, de rancho, de pouso, de retirada, de estouro do gado, de marcha. E a sua comitiva, os fazendeiros e agregados conheciam cada um destes sons e sabiam o que deviam fazer ao ouvi-los. 

Hoje mesmo os traficantes de drogas a altas horas ou a qualquer horário soltam tantos e tais foguetes para avisar a chegada do carregamento e o tipo de entorpecente, assim ouço dizer e graças a Deus, nada entendo disto, porque não é meu ramo, nunca experimentei e nem pretendo. 

Nas alvoradas festivas além da saudação ao dia maior com fogos de artifício, em alguns lugares conservam caixeiros à rua batendo tambores em ritmos próprios e por vezes únicos. Na Festa do Divino de Pirenópolis existe a "banda de couro", um grupo de tamborzeiros com este intuito. Na Festa do Espírito Santo de São João del-Rei, em Matosinhos, igualmente,os caixeiros do Divino. No distrito de São Gonçalo do Amarante os caixeiros possuem um toque de ritmo exclusivo às 5 horas, na madrugadinha da Festa do Rosário, que tem o curioso nome de vamos'imbora, Vitalina! A propósito, os caixeiros mais velhos do lugar o batem de uma forma distinta do atualmente executado e mesmo entre os de hoje há variações individuais impressas como floreados por tocadores mais hábeis. Em todos porém a linha melódica geral é mantida. Estas alvoradas constituem também uma linguagem pois trazem em si um anúncio: acordar cedo e ir para a missa que é dia de festa! A comunidade onde acontece compreende este sinal e o acata. 

Para mim, tudo isto faz parte de um rico patrimônio imaterial. É uma linguagem folclórica, do domínio da cultura popular, viva e utilitária, numa torre eclesiástica ou numa companhia ferroviária...

Caixeiros do Divino nas ruas de Matosinhos, 2009. 

Campanário. São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei), 2011. 

Maria-fumaça, São João del-Rei, passando nas imediações do Sutil, 2000.

Notas e Créditos


* Texto e fotografias (trem e caixeiros): Ulisses Passarelli
** Fotografia do campanário: Iago C.S. Passarelli