O povo é assim. Usa estórias para ensinar, dar exemplos, transmitir experiências, sabedoria. No meio de uma conversa informal, um bate-papo, aflora uma joia da cultura popular. O folclore não é apenas um velho costume que se mantém por mera repetição. Ele tem uma lógica, uma inteligência didática. Assim o boiadeiro Zé Cristino saiu-se com esta narrativa. Tão grande quanto a hospitalidade mineira é a desconfiança. Minha sogra dizia: "coração dos outros é terra que ninguém pisa, meu filho".
Segue um exemplo materializado em forma de conto. Não é qualquer um que nós colocamos para dentro da nossa casa. Nem tudo que ouvimos merece crédito. A cilada reside por traz de aparências inocentes. O mal tenta ... atenta, corrompe, usa de artifícios para chegar. O conto popular transmite essa lição.
* * *
Diz que o diabo atenta o casal por sete anos seguidos para estragar o amor, separar e ganhar a alma. Depois não pode provar mais.
Havia um casal unido pelo amor e pela fé. Tementes a Deus, eram honestos e se respeitavam. Tudo que faziam levava o nome do Senhor: "se Deus quiser!", "graças a Deus!", "Deus quer assim", "Deus seja louvado". Rezavam e praticavam o catolicismo.
Moravam numa fazenda. O capeta a quase sete anos já tentava separar os dois sem êxito. Faltando um dia para esgotar o prazo que dispunha, tomou a forma humana, montou num cavalo e saiu pelos caminhos, desiludido e pensando o que fazer. Passou por um casebre paupérrimo onde morava uma velha, vizinha do casal bem aventurado. Estava na janela. Satanás parou.
_ Boa tarde! Mas... não conheço o senhor. É de fora?
_ Não senhora. Faz sete anos que moro aqui. Me arranja um copo d'água?
A velha trouxe a água e continuou com sua curiosidade:
_ Sete anos?! Não é capaz. Como que nunca te vi...
_ É que eu estava muito ocupado em ganhar a alma daqueles dois lá.
_ Uai! Quer dizer que o senhor é o tinhoso?
_ Não sei o quê que eu sou não. Isso não interessa. O que importa é ganhar aquelas almas hoje, porque, amanhã, esgota o prazo.
_ Ah, isto é fácil!
_ Fácil? se eu não consegui...
_ Já disse que é fácil.
_ Se a senhora conseguir eu te prometo que dou tudo o que a senhora quiser. Tudo. É só pedir. Quer ficar rica? Quer uma casa boa?
_ Não. Eu sou pobre, vou morrer pobre, mas estou satisfeita. O que está me fazendo falta é um par de chinelos.
_ Oquê?! Só isto!!! É pobre até para pedir... Quer tratar assim então?
_ Quero. Amanhã o senhor volta aqui.
O demônio figurado em homem foi embora.
A velha não perdeu tempo. Foi até a fazenda onde morava o casal e só a mulher estava em casa. O marido saiu cedo para trabalhar. De longe ela o avistava no alto de um morro, roçando pasto.
_ Bom dia! , disse a velha à mulher.
_ Ô dona fulana, chega pra cá! Pode entrar. Senhora é de casa, gente conhecida.
_ Dá licença. E seu marido?
_ Está pelejando na roçada de pasto. Olha lá...
_ Ah, minha filha, esse mundo! Oh, não é candonga (*) não, mas não acho justo você aqui sozinha em casa o dia inteiro nessa luta: varre, passa, lava, cozinha, limpa tudo e seu marido encontrando com outra...
_ Está doida! Ele nunca faria isto!
_ Eu sabia que não ia acreditar, mas é só tirar a prova. De tarde você vai ver. Eles encontram lá debaixo daquela árvore no pasto. É só esperar. Mas eu vou te ensinar uma simpatia para ele esquecer ela de uma vez por todas: pega uma navalha na hora que ele estiver dormindo e passa por cima do pescoço dele em cruz três vezes, sem encostar. É bater e valer (**). Mas fica calma, filha. Cuidado, não briga.
Foi-se a mentirosa e a mulher ficou atormentada.
A velha foi em casa. Trocou de roupa, colocou um vestido todo colorido. Mudou o jeito do cabelo e até a ginga do andar. Deu volta para não ser vista, subiu o morro pelo outro lado e entrou no pasto que o homem estava roçando. Ele logo estranhou:
_ Uai, a senhora aqui? Tem alguma novidade ou recado?
_ É meu filho, essa vida não é fácil. Sua mulher...
_ O quê que tem ela?
_ Tenho que te contar o que vi. Chega aqui pra sombra.
Foram para debaixo da tal árvore. De longe a esposa viu a silhueta dos dois mas não reconheceu a velha por causa da distância. Acreditou que era verdade a traição do marido.
A velha lhe falou:
_ Senhor sabe, né, eu sou de casa. Chamei... chamei na sua fazenda, ninguém atendeu. Rodeei pelos fundos e entrei pela cozinha. Escutei aqueles risos lá dentro. Voz estranha. Cheguei e vi sua mulher com outro homem no quarto.
_ Não acredito! É mentira!
_ Verdade! Pode acreditar. E digo mais: escutei eles tramar... Ela vai te matar com uma navalha para ficar com a fazenda e ter sossego de viver junto com o amante. O senhor chegando lá não fala nada com ela, não demonstra. Faz que não teve nada. Mas fica prevenido. De noite o senhor vai ver a armadilha dela.
Foi-se embora a ardilosa. Bastante nervoso, o homem pensou muito e resolveu seguir o conselho da velha. Chegou em casa e não falou nada para a mulher. Ela também nada comentou com ele. Estavam estranhos um com o outro. Logo ele se fez de muito cansado e foi dormir. Ao deitar deixou o revólver armado sob o travesseiro. Fingiu que dormia. Chegou a esposa e chamou. Ele não respondeu, como num sono pesado. Esbarrou nele. Teve então certeza que já dormia mesmo. Pegou a navalha no banheiro e foi fazer a simpatia. O homem pressentiu ela junto dele, abriu os olhos, a viu com a navalha. Lembrou da fala da vizinha e atirou na cabeça da esposa. Ao vê-la morta, sangue para todo lado, entrou em desespero e descontrolado, suicidou-se com um tiro no ouvido.
O maligno, que a tudo assistira escondido em sua invisibilidade, no outro dia se fez de novo em cavaleiro e foi à tapera da velha maliciosa. Pegou uma vara comprida, colocou o par de chinelos novos na ponta e entregou a ela de longe, esticando a vara até a janela, sem apear do animal. Falou:
_ Ôh, velha, toma aqui o seu chinelo! A senhora é tão perigosa que nem eu quero chegar perto... Morre logo, viu, não demora não, que lá no inferno a senhora vai fazer proeza ...
E foi-se embora para as profundezas, satisfeito com a vitória.
* Candonga: africanismo, com o sentido de fofoca, intriga, mexerico, calúnia, fuxico, inverdade.
** Bater e valer: o mesmo que "tiro e queda". Expressão popular que indica infalibilidade.
*** Texto: Ulisses Passarelli
**** Informante: José Cândido de Salles, 08/09/2000, Santa Cruz de Minas/MG.
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