Bem vindo!

Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




terça-feira, 29 de abril de 2014

Caquende em festa

O povoado do Caquende, no sudoeste do município de São João del-Rei, incluso no distrito de São Sebastião da Vitória, junto às águas represadas do Rio Grande pela Represa de Camargos é um lugar acolhedor, centrado pela igreja da padroeira, Nossa Senhora do Carmo. 

A partir de amanhã o largo gramado receberá intensa programação oriunda da sétima edição de um evento intitulado Encontro de Cultura Popular, que envolve a comunidade e visitantes num importante trabalho de defesa das tradições, inculturação, entretenimento e difusão dos valores religiosos da cultura popular. 

Além da apresentação de grupos folclóricos convidados da redondeza, contará com exibição de um mutirão de colheita do milho (jomba), banda de música, sarau de poesias, missa, encontro de corais, atividades com as crianças, exposição, etc. 

Destaque para apresentação do grupo local Pilão de Inhá, demonstrando danças rurais de colheita, soca do arroz, sob a voz magistral do sr. Vicente. A direção deste grupo assume a coordenação geral do evento. Vale a pena conferir. 


quinta-feira, 24 de abril de 2014

O Boi-malhado e a Queima do Judas

Um Festejo Popular em São Gonçalo do Amarante

Por muitas regiões do Brasil é bastante arraigado o costume de queimar, explodir ou malhar a varas e porretes um boneco grotesco chamado Judas, personificação do Traidor de Jesus. Este evento de ordinário acontece arrematando o ciclo quaresmal, em alguns lugares no Sábado de Aleluia, noutros pela páscoa, como o caso em questão. 

No distrito de São Gonçalo do Amarante (ex-Caburu), em São João del-Rei, a queima do Judas é uma tradição muito antiga, que conheceu tempos de ocaso. Informações de campo indicaram que a última vez que aconteceu foi em 1999, já simplificada. Relatos de informantes mostram que anteriormente o costume era mais animado e contava também com a participação de um folguedo de bumba-meu-boi, localmente chamado "boi-malhado", que a cerca de vinte anos segundo uns, trinta segundo outros, não saía às ruas. 

Felizmente porém, neste Domingo da Páscoa, 2014, o festejo transcorreu novamente, revestido de grande animação graças à junção de esforços de lideranças comunitárias como Miro, Sininho e outros, além do Mestre Vavá, que não mediu esforços para por o boi de volta na brincadeira. 

Confeccionado sobre um grande balaio emborcado, debaixo do qual se mete o homem que lhe dá vida em movimento de avanço e recuo, se faz acompanhar de vários tocadores locais, de pandeiro, caixa, violão, bandolim, sanfona e xique-xique , todos congadeiros do lugar. 

O boi-malhado faz a alegria da criançada. Com seus pegas rua afora, põe os pequenos a correr, mas que logo voltam para puxar o rabo do bicho ou fazer-lhe negaças na dianteira, fingindo-se pequenos toureiros.  

Na praça da matriz outro brinquedo chama a atenção: o pau de sebo. Pequenos e grandes fazem a farra no escorregadio madeiro, pelejando grimpá-lo em escalada para alcançar no topo o prêmio tão cobiçado. 

O sistema de som instalado no coreto toca músicas nos intervalos do boi e logo se fazem animações com as crianças. Do lado oposto foi fincada uma árvore de embaúba, símbolo da forca do Judas, patíbulo improvisado. O boneco é trazido e pendurado. Vestido de roupas velhas é recheado de bombas interligadas por um pavio. Entre o coreto e a embaúba, um arame liso é esticado e nele se prende um artefato pirotécnico em forma de avião. Na hora certa será ele a acender o pavio do Judas. 

Logo o povo se agita. Vai começar a leitura do testamento do Judas, um pasquim anônimo que alguém do lugar escreve deixando em nome do Judas um herança indesejável para várias pessoas do lugar. Em tom de brincadeira mas também crítica, vai o boneco em versos distribuindo heranças indesejáveis, por vezes oferecidas em tom crítico e chulo, mas que faz as alegrias do povo: 

"Deixo para aqueles que não ajudô,
um pinico de cocô..."

Concluída a leitura é hora do clímax. O aviãozinho recebe fogo e corre cuspindo fagulhas pelo fio de arame rumo ao Judas. A ansiedade é enorme e se escuta o burburinho das pessoas. As crianças ficam agitadíssimas. Adoram esta festa. 

O fogo sobe pelo pavio do boneco e logo lhe atinge a primeira bomba, que arrebenta uma perna com grande estrondo; depois a outra e assim membro a membro, a cabeça e por fim uma mais forte lhe explode por completo o tronco, sob vaias, aplausos, gritos, vivas, xingamentos, gargalhadas, cachorros latindo, crianças agitadas. 

Um foguetório explode no ar, marcando o fim da festa. O boi-malhado volta ao recolhimento, tocando rua afora, até para o ano se Deus quiser. O povo vai embora, cada um para sua casa, alegre, comentando as heranças, satisfeito com a festa e sentindo justiça feita pelo destino do mal apóstolo. 

O boi-malhado brinca com as crianças na Praça da Matriz.

Os músicos que acompanham o boi-malhado.
Tentando subir o pau-de-sebo. 

O aviãozinho.

O Judas.
Assista ao vídeo desta festa em: BOI & JUDAS

* Texto: Ulisses Passarelli
** Fotos: Iago C.S. Passarelli, 20/04/2014. 

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Sexta-feita da Paixão em Conceição da Barra de Minas

O Descendimento da Cruz e a Procissão do Enterro

(ofereço em especial ao pároco dessa cidade, por sua dedicação e sensibilidade)

O ciclo da quaresma é um período riquíssimo em manifestações religiosas fortemente eivadas de valores culturais. Nos Campos das Vertentes estes eventos tem muita força e tradicionalidade, conhecidos em várias cidades e distritos, alcançando em algumas grande vigor, a exemplo de Prados, Tiradentes e sobretudo São João del-Rei, onde atingiu um patamar extraordinariamente preservado, que lhe garante um grande afluxo de visitantes e fiéis. 

Nesta postagem o olhar se volta para a aconchegante Conceição da Barra de Minas, cidade de origens setecentistas que ainda conserva belos exemplares arquitetônicos em igrejas e casario, e muitos costumes dignos de nota. Ora focamos o Descendimento da Cruz e sequencialmente a Procissão do Enterro, na Sexta-feira da Paixão, segundo observação de 2014. 

A cruz do Senhor e figurados diante da matriz paroquial.
Na praça da matriz, diante da imponente igreja da padroeira, Nossa Senhora da Imaculada Conceição, é armada uma arquibancada de madeira centrada pela grande cruz onde está fixada a imagem de Jesus. De um lado e outro se postam os "figurados", assim chamados os figurantes, pessoas da comunidade que nesse dia se caracterizam em papéis bíblicos, tais como centuriões romanos e apóstolos, Moisés, João Batista, Salomé e Herodíades, etc. (*)

O sacerdote ressalta os valores da fé cristã. 
De uma tribuna posta adrede, entre os figurados e o povo na praça, o pároco, Padre Saulo José Alves, em eloquente e empolgante oratória, perfeitamente embasada nos preceitos evangélicos, mantém toda a grande massa de fiéis presentes em contínua atenção para os elementos sagrados da Paixão do Senhor. 

Sequência do Descendimento da Cruz.

Ao fim de sua pregação conclama aos personagens José de Arimatéia e Nicodemos a passo a passo, descer a imagem do Crucificado: primeiro lhe tiram os cravos das mãos, depois é suspenso pela toalha alvíssima, a seguir o cravos dos pés, e lentamente vai sendo descido ao colo da jovem que representa Maria, a Mãe Dolorosa. Momento tocante, clímax simbólico de toda uma catequese magnificamente teatralizada com o máximo respeito e participação na fé de fiéis daquela comunidade.

Vêronica canta com toda dramaticidade.

Após a prédica a Verônica sob à tribuna e canta com grande sentimento o "O vos omnes": há dor maior que a minha dor? Vagarosamente desenrola a toalha onde está estampada a face do Salvador e depois aos poucos a enrola de novo. Fazendo-lhe eco, lamentam as três Maria Beú: "Heu, Deus!"

As lutuosas Maria Beú, uma representação das tradicionais três Marias.
São plangentes carpideiras em sentinela pela morte de Cristo.

A veneranda imagem do Senhor Morto é descida ao esquife. Sua sobriedade é quebrada pela cor intensa de algumas flores de orquídeas, Cattleya loddigesii, carinhosamente ali depositadas. O cortejo processional toma forma, saindo pela praça. Na dianteira o grande estandarte carregado na horizontal, deitado, com a sigla da condenação, SPQR. Os figurados se seguem em notável harmonia, iniciados por Adão e Eva, dois jovens em vestimenta básica de folhas artificiais. Ele traz um cipó de forma espiralada enrolado no ante-braço evocando a astuta serpente; Eva vem mordendo uma maçã. Seguem-se muitos outros personagens, povo e mais povo, gente que não acaba mais, parece que a cidade toda está ali. A banda vem também, com suas marchas fúnebres.

A banda honra a antiga e enraizada tradição musical do lugar.
Pelas tantas vem o esquife do Senhor Morto sob o pálio roxo, ladeado por centuriões e membros da Irmandade do Santíssimo Sacramento. A sua passagem é acompanhada por quase todos. Quem não vai por algum motivo, se persigna à sua passagem. 

O pálio com o esquife. 
Fiéis rezam o terço, concentrados. Alguns vem de vela à mão, contritos. Ser devoto é ter a alma preenchida de luz. O lume emana, irmana.
Uma devota.  
Uma nota pitoresca que hoje muito raramente se vê noutros lugares nessa cidade está felizmente preservada: é a presença dos farricocos, que a corruptela popular transforma em "fura-cocos", marchando céleres, de dois em dois, batendo matracas. Há duplas que caminham no sentido do fluxo da procissão, outras no inverso e às vezes se cruzam matraqueando numa cena assaz pitoresca. No passado, seu papel era manter a ordem das filas contra a invasão de bêbados ou eventual desordem de alguma criança, fustigando os desobedientes com varadas. Abolida a forma do castigo, permanecem impondo a presença mascarada em cone, no traje preto profundo, figuras ancestrais, simbólicas.

Farricocos.
A presença dos farricocos é uma nota especial desta procissão em Conceição da Barra de Minas, conferindo-lhe uma importância ímpar no cenário das tradições das Vertentes. São de origem ibérica, trazidos ao Brasil colonial e mantidos em muito poucas cidades.

Farricocos.
A procissão desliza, serpenteia, como um fluxo gigante de devotos entre o casario cheio de preciosidades arquitetônicas. Por fim vem o andor de Nossa Senhora das Dores, aglomerando mais fiéis ao redor. O itinerário é longo, penitencial. Mas ninguém reclama. Todos estão ali pelo mesmo motivo, a mesma fé motriz, tendo a tradição por leme.

Parte da multidão de fiéis que toma as ruas durante a Procissão do Enterro.

Conceição da Barra de Minas deve se ufanar de seus costumes e envidar todos os esforços em prol de sua preservação, dentre o patrimônio material e imaterial, que em verdade só tem plenitude de sentido quando são sentidos assim, vivenciados e compartilhados, não um mero cenário, mas parte integrante da vida em comunidade.

Notas e Créditos

* Obs.: em São Miguel do Cajuru, distrito de São João del-Rei, informações orais deste ano dão conta de que entre os figurados da Paixão naquela vila estão as Virtudes Teologais (Fé, Esperança e Caridade), Adão e Eva (cobertos com folhas de café!), os Apóstolos, Moisés, Abrãao e Isaac, Centuriões, Ester, Maria de Cléofas, José e Maria, Nicodemus, José de Arimatéia, Verônica e as três Maria Beú. A informante citou ainda escoteiros. 
** Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotos (19/04/2014): Iago C.S. Passarelli
**** Agradecimentos: Daniel William Dias Nascimento, pelo apoio concedido. 
*****Sobre as tradições quaresmais desta cidade, leia também, clicando no link abaixo:

ENCOMENDAÇÃO DAS ALMAS EM CONCEIÇÃO DA BARRA DE MINAS  

sábado, 19 de abril de 2014

Visitação das Igrejas

Na São João del-Rei tricentenária, a atmosfera barroca envolvente, eivada de história e cultura por toda parte, geriu um complexo sistema de crenças, rituais e cerimônias, que foi construído sobre as atividades religiosas do ciclo quaresmal. Seu ápice são as atividades sacras da Semana Santa. 

1- Visitantes na Igreja das Mercês.
O fiel encontra muitas possibilidades, bem como o turista, entre assistir missas, acompanhar procissões, ofícios, lava-pés... mas em especial nesta postagem, se focaliza a VISITAÇÃO DAS IGREJAS, um antigo costume desta terra que se mantém plenamente ativo desde longa data. 

É muito intrínseco ao são-joanense e até difícil achar palavras para descrevê-la de forma adequada. É preciso vir, ver, visitar, sentir... cheiro, sons, cores, burburinho de gente, matraqueados, sabores de amêndoas, ver cortinas roxas. Acontece na plenitude de uma romaria familiar, que de toda a cidade acorre para o centro histórico, lotando as ruas, desenvolvendo um roteiro pelos templos, que permanecem abertos e aromatizados pelo rosmaninho, pela arnica e o manjericão. 

2- "Para a cera do Santo Sepulcro!" clamam meninos em peditório
com matracas na porta das igrejas, como estes, no Rosário. 
Na porta de cada igreja ficam meninos com matracas, sentados junto a um pequeno cofre de madeira ou com coletores de pano vermelho em forma coador. A aproximação dos visitantes batem a matraca e falam alto e ritmado: "para a cera do santo sepulcro!" e desta forma recolhem donativos. 

3- Capela do Santíssimo, Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar.
As Capelas do Santíssimo Sacramento estão floridas. O entra e sai é grande. Gente fotografando, povo rezando. No Pilar o aspecto é imbatível, pelo volume de vasos, requinte e zelo. Afinal é a Catedral Basílica.

O roteiro que segui este ano com esposa e filho é o seguinte, que seguia na infância com meus pais e o irmão abaixo de mim em idade: inicialmente a Igreja de São Gonçalo Garcia. Vencida a escadaria charmosa, curvilínea e o portão de ferro gradeado, simples mas não isento de seu encanto, se depara com uma fila de visitantes estancada diante da imagem de Santa Luzia, muito venerada neste templo. O ritual é o seguinte: beija-se a fita, passa-se os dedos sobre os olhos da santa esculpidos  na salva que segura e esfrega-se estes dedos sobre os próprios olhos para assegurar a boa visão. As demais imagens estão recolhidas nas salas laterais, acessíveis para visita, destacando o padroeiro, Santa Joana d'Arc, Santo Expedito e Nossa Senhora do Amparo. 

4- Cenografia no São Gonçalo: luzes e fumaças dramatizam a encenação.
Som mecânico reproduz a música de nossas orquestras bicentenárias, ecoando no ambiente.
Um quadro curioso se desenha no presbitério. Atrás de um biombo de pano aberto ao centro, com desenhos de uma floresta, que ambientam o cenário, uma imagem do Senhor está ladeada por dois anjos suspensos. A transfiguração é relembrada. Um jogo de luzes e fumaça climatizam a encenação. Uma longa fita vermelha vem da imagem, anteparada por uma fileira de bancos atravessados. O povo a beija, persigna-se, ajoelha, admira, reflete. 

O passo seguinte é o São Francisco, igreja alcançada pela Rua Balbino da Cunha. Logo de saída se vislumbra o belo Chafariz da Legalidade, de 1834. O templo magnífico mantém nas janelas os bandeirões com a ignóbil sigla SPQR (*). Logo à entrada, na base da escadaria em espiral, feita de pedras, um Senhor Morto jaz entre ramos de arnica, velado por dois círios. Tudo está escuro. Só o bruxulear das chamas lampeja tênue no ambiente sagrado. A cena rememora o sepulcro. 

5- O Sepulcro do Senhor, na monumental Igreja de São Francisco de Assis. 
A grande igreja está no escuro. É Quinta-feira de Trevas. O mundo está na escuridão, a morte domina momentaneamente graças à maldade humana que condenou o Filho de Deus. É preciso compreender a psicologia dessa noite, desse cenário didático. No altar-mor, imagens de roca dos santos franciscanos ora estão em novas posições graças às articulações dos braços e pernas. Com outras roupas e adereços, são agora centuriões de capacete e lança, apóstolos medrosos com túnicas. Adaptabilidade. 

Na travessia da nave para a sacristia, no corredor, um velho banco-baú e uma essa escura, com uma caveira entalhada. Móveis tenebrosos. A grande e bela imagem de Nossa Senhora da Conceição se impõe na sacristia, terna, com um olhar carinhoso, abrangente... florida. Muitos vem vê-la. 

A Igreja de Nossa Senhora de Lurdes nessa noite não faz parte do conjunto de encenações mas está aberta e em missa. Santo Antônio zela a entrada em capelinha aconchegante. Santo queridíssimo. Tem uma multidão de devotos. Descido o largo, que se continua com a Rua da Prata (oficialmente Padre José Maria Xavier), se vislumbra um passinho aberto, e gente ajoelhada na capela do convento, em contínua oração, terços e mais terços, começados por uns, emendados por outros. 

A Ponte do Rosário, maravilha oitocentista de pedra, nos leva à rua mariana, Direita, Getúlio Vargas. A antiga igreja dos escravos, de 1719, tem muitos fiéis no interior, vendo no presbitério a montagem com anjos e luzes. Na sacristia a Grande Mãe, de rosário à mão está belíssima, majestosa. De sua janela, se vê a lua cheia saindo por detrás dos velhos telhados. "Não há Paixão sem cheia", diziam os antigos, se referido à fase lunar inalterável em toda Semana Santa.

6- Rosário: a Grande Mãe. 
Do Rosário se toma a Rua Santo Antônio, transformação urbana, setecentista, do longínquo Caminho Geral do Sertão. O casario desaprumado se engalana de roxo para a visitação. Panos pendem das fachadas coloniais. A fé transborda das janelas. O luto sai de dentro das casas para a rua de pedra pé-de-moleque, prateada pelo clarear da lua cheia. 

7- Rua Santo Antônio: a fé transborda das velhas janelas como uma lutuosa onda roxa. 
Na simpática capelinha do taumaturgo lisboeta, o jogo de luzes dramatiza e evidencia o triunfo de Jesus sobre a morte. Abaixo de seus pés um anjinho de joelhos vela silencioso um sepulcro vazio, forrado de rosmaninho e arnica serranos. O padroeiro Santo Antônio está de pé na sacristia, cheio de flores, com vestes sacerdotais. Não lhe faltam visitantes fidelíssimos. 

8- Jogo de luzes sobre o Senhor do Triunfo na simpática Capela de Santo Antônio. 
O retorno pela mesma via se desvia à esquerda pela Travessa Roque T. Neto (que ainda conserva interessante paredão de pedras arrimando um quintal), subindo em graciosa curva rumo à Rua das Flores (oficialmente, Maestro Batista Lopes), onde passando por significativo patrimônio arquitetônico residencial, se vai à novel Capela do Divino, que tem cara de antiga, porque se instalou em prédio colonial e com muito charme, tem uma relíquia no teto: pinturas do pincel genial de Joaquim José da Natividade, em estilo rococó, ao modo ilusionista. A montagem neste templo nada deve aos mais antigos. Vemos aqui a sequência da Assunção de Maria num jogo de três imagens belíssimas, dispostas em três níveis: Nossa Senhora da Boa Morte ao nosso nível, "morta", dormindo, sereníssima em seu esquife; Nossa Senhora da Assunção, intermediária, subindo, de braços abertos, sentada numa nuvem, sapatinhos caindo para a Terra; Nossa Senhora da Glória, de joelhos, nas alturas do altar-mor, mãos contritas em atitude de prece, coroada pela Santíssima Trindade. A didática catequética dessa encenação barroca é notória. Fala por si, se revela com eloquência.

9- Na Capela do Divino, Maria se eleva em planos de santidade. 
Na descida para a Muxinga se passa por dois cemitérios vizinhos, lado a lado, de irmandades diferentes. Subindo pela beira do hospital se chega ao Largo da Câmara, pelourinho de um lado, Igreja das Mercês acima. Alcançar-lhe já é um ato penitencial, escadaria de pedra, larga,comunitária, afunilando para a porta da igreja. Estreito é o caminho que leva à Deus. A evangelização está em tudo. Parece que foi planejado meticulosamente. 

10- Nas Mercês a lição da humildade relembra a origem simples de Jesus,
num tempo em que a soberba domina a humanidade. 
A montagem cenográfica mostra-nos agora o outro extremo da vida de Cristo: a Gruta de Belém. A Sagrada Família comovedoramente humilde se ilumina entre carneirinhos e um galo curioso. A Santa Mãe banha seu filho sagrado numa gamela artesanal de madeira, dessas de fazer broa. É a Belém mineira! Uma livre interpretação, verdadeira riqueza improvisatória, criatividade que confere um regionalismo especial ao conjunto. Já se ouve belos acordes de uma marcha de Luiz. Na sacristia, a música de Batista Lopes soa maravilhosa numa caixa de som escondida entre flores, que rodeiam a imponente Virgem das Mercês, libertadora, rompedora de correntes, malditos grilhões escravos. Depois de vislumbrá-la, nada mais bucólico que ver-lhe os jardins, uma alameda cheia de bromélias, folhagens, flores, cavalinhas, entre pedras e fontes, que terminam numa gruta iluminada, com a imagem de Nossa Senhora de Lurdes. 

11- Água cristalina numa fonte da alameda da Igreja das Mercês. 
A escadaria está cheia de famílias e turistas, subindo e descendo. O mirante permite ver uma parte histórica da cidade e ao longe, na colina oposta, o cruzeiro luminoso que ladeia a pequena Capela do Bonfim. Mas logo abaixo do observador está um grande painel fixado na parede de fundo da Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar. Retrata a Santa Ceia. Diante dele um palanque serve à missa campal do Lava-pés. Uma mesa representa o local da instituição da eucaristia. Muita gente assiste e ora. Ao redor, vendedores de pipoca com seus carrinhos típicos e outros ambulantes tradicionais, como aquele que fica com uma grande haste onde se finca coloridos algodões doces _ gostinho de infância; outro, está com um bujão de gás hélio para encher balões, bexigas de ar, alegria das crianças. 

A Capela do Santíssimo no Pilar como já se disse, apresenta-se lindamente florida. A Rua Getúlio Vargas está com os dois passinhos abertos, bem como o Oratório de Nossa Senhora da Piedade. Há ainda o Museu de Arte Sacra e o Memorial Dom Lucas. Atrações não faltam. Diante da catedral, populares vendem arnica, amêndoas, maçãs do amor e outras delícias típicas.

      

12, 13 e 14 - Maçãs do amor, cartuchos de amêndoa e a medicinal arnica: produtos típicos em venda pelas ruas. 

A última estação dessa caminhada da fé é o Carmo. É Igreja imponente, joia colonial. Diante dela um grande tapete de serragem colorida dá as boas vindas e sacraliza até os paralelepípedos de pedras do calçamento que se pisa. A entrada é tão concorrida pela beleza e conteúdo ofertados, que não é fácil chegar ao altar. Uma longa fila se forma. Enfim, ver a Senhora do Monte Carmelo e elevar-lhe preces é como coroar esta via-sacra. 

15- Movimentação na Igreja do Carmo. 
Eis a peregrinação anual do são-joanense. Na direção proposta ou na inversa, ou num sentido aleatório, não importa. Ninguém lhe manda fazer isto, não é convocado... é invocado, pelo seu instinto sagrado que mais parece incrustado no DNA. Semana Santa em São João del-Rei é assim: acolhedora, sagrada, musical, cultural, com perfumes de ramos desfolhados, é dramática e barroca. Não é um espetáculo forjado. É uma essência vivenciada, "ecossistêmica", que só se justifica porque a fé permanece viva geração após geração.


Notas e Créditos 

* SPQR: iniciais da expressão latina Senatus Populus Que Romanus (Senado e Povo Romano). São estampadas em amarelo ou dourado sobre flâmulas roxas como símbolos da autoridade terrena, do poder político e militar, que reinou durante a crucificação de Jesus. As pessoas interpretam contudo esta sigla de forma jocosa. Ouvimos três versões populares em São João del-Rei: uma delas diz que SPQR é "São Pedro quer rapadura"; outra, "seu padre quer rapé"; uma terceira aposta em "sal, pão, queijo, rapadura"...  O Professor Antônio Gaio Sobrinho registrou também "salve povo querido de Roma" e ainda "sou poeta quando ronco"... Entretanto, frisou: "mais bela e significativa é certamente a que li num dos barroquíssimos sermões de Vieira: "Salva Populum Quem Redemisti, isto é, Salva o Povo Que Redemiste."
**Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotografias (17/04/2014): Iago C.S. Passarelli (1,2, 4-11); Ulisses Passarelli (3,12-15)


Referências Bibligráficas

GAIO SOBRINHO, Antônio. Sanjoanidades: um passeio histórico e turístico por São João del-Rey. São João del-Rei: A Voz do Lenheiro, 1996. 104p.il. p.54. 

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Quando começou a encomendação de almas no Brasil?

Certo dia fui alvejado com a pergunta que intitula esta postagem. Pessoalmente penso que foi junto com o próprio Brasil. Mas de fato não existem muitas indicações concretas de datação. A maior parte das notícias procedem do século XX e algumas do anterior. Contudo há razões para suspeitar numa prática bem mais antiga, à moda portuguesa, com finalidade catequética. Elementos da cultura popular foram bastante usados como meio de evangelização no passado.  

A este respeito, eis uma citação interessante, levantada por TINHORÃO: o padre jesuíta Fernão Cardim, na obra "Tratados de Terra e Gente do Brasil", secretário do visitador Cristóvão de Gouveia, em 1583, após visitar três aldeias baianas, relatou que os meninos índios aprendiam muito bem o que lhes ensinavam os portugueses, entre os quais, rezar, cantar, tocar instrumentos europeus, falar português e ainda "cantam à noite a doutrina pelas ruas e encomendam as almas do purgatório."

Abaixo retratado o grupo de São João del-Rei, encomendando almas no portão do Cemitério Municipal, o "Quicumbi", como é mais conhecido este campo santo.


                                     


Referência Bibliográfica

TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil colonial. São Paulo: Ed.34, 2000. 176p.il. p.32.

Notas e Créditos 

* Fotografias: Iago C.S. Passarelli, 28/03/2014
** Texto: Ulisses Passarelli
***Leia também: Encomendação de Almas em Conceição da Barra de Minas 

terça-feira, 15 de abril de 2014

O folclore dos dentes - parte 1

Odontologia Mística - levantamento bibliográfico e notas de campo

"A velha tapanhumas escutou a voz do filho no longe cinzado e se espantou. Macunaíma apareceu de cara amarrada e falou pra ela: 
_ Mãe, sonhei que caiu meu dente.
_ Isso é morte de parente, comentou a velha.
_ Bem que sei. A senhora vive mais um sol só."
(Mário de Andrade, Macunaíma: o herói sem nenhum caráter)

Guia de dentes no capitão de congado Luís Bento Silva.
Guarda de Marujos N.S. do Rosário e Sta.Efigênia, Congonhas/MG, 01/11/1998.

A religiosidade popular e a mística fazem parte da vida diária das ações humanas, das profissões e até da lúdica, de boa parte da população, notadamente das camadas sociais mais sacrificadas...

Frei Francisco van der Poel demonstrou bem o quão arraigado está a religiosidade na vida de nosso povo, dizendo-a "a riqueza dos pobres"(1).

Os dentes não escaparam desta realidade. Com efeito a "odontologia" popular não está isenta de influências desta natureza. Os dentes sobretudo são os maiores merecedores de rezas e benzeções dirigidas à boca. Correm crenças, fazem simpatias. O próprio elemento dentário, creem, tem, energias protetoras místicas e é usado como amuleto. Sonhar com dente é indício frequente de mal agouro. A epígrafe deste texto, embora de origem literária, é baseada em crença vigente, que a genialidade de Mário de Andrade soube aproveitar em sua rapsódia, onde também incluiu outra passagem inerente ao folclore da odontologia: Macunaíma gemia com as dores incômodas causadas pelo "sapinho" (candidíase), que afetara-lhe a boca após envolver-se com três prostitutas. Curou-se porque seu irmão Maanape roubou a chave do sacrário e entregou-lhe para que a chupasse. 

Câmara Cascudo esclareceu sobre o uso da chave do sacrário nos rituais do catimbó (2). Vale também a chave comum, devidamente preparada, simbolizando-a. É usada como amuleto. Em São João del-Rei o uso da chave do sacrário goza de grande prestígio, quando se consegue um sacristão amigo que a empresta por umas horas para compor rituais populares para abrir caminho, fechar o corpo contra malefícios, curar sapinho passando-a em cruz sobre a boca. 

Em outra obra, Cascudo esclarece que os dentes "são amuletos possuidores de potência mágica defensiva contra o maléfico, mau-olhado, maus ares" (3)

Aparece com frequência entre os penduricalhos que compõe os balangandãs das baianas. Em 27 exemplares analisados por Raul Lody havia nada menos que 42 dentes nas pencas (4).

É muito comum o uso de um dente unitário (ou garra, com o mesmo objetivo) encastoado e preso a um cordão para se pendurar ao pescoço. A função estética _ o uso como adorno _ é secundária. O motivo primário, gerador do uso é a pretendida  proteção contra males, aliada à garantia de uma dentição sólida. 

Se for dente de jacaré ou ferrão de aranha-caranguejeira, afasta a pessoa que o usa da ofensa por essas espécies, além de alcançar proteção contra a dor dentária (2). É um amuleto

Em Santa Cruz de Minas (em 1994) vi um cordão que prendia medalhas de santos junto a um dente de anta. Usava-se para por ao pescoço durante as doenças debilitantes, que causam astenia, prostração, para dar forças, pois a anta (tapir) é um animal forte. É a presença da magia simpática

Na vizinha São João del-Rei os mandingueiros mais antigos e afamados punham um dente da serpente cascavel (exatamente a presa inoculadora de veneno) trespassado na ponta de um bastão, por meio de orifício. Tal bastão, uma vez preparado em sessões rituais, passava a ter fortes poderes, tinha firmeza. O dente da cobra se tocasse alguém, mesmo que não furasse, gerava no local do toque, em pouco tempo, uma ferida incurável. Os velhos capitães de congados sabiam desses mistérios. Num caso desta natureza, o dente funciona como talismã

Carrancas e máscaras de palhaços de folias de reis ostentam grandes dentes escancarados, mecanismo de afastar o mal, indicando uma ferocidade de defesa maior que a do atacante. 

Dentes gigantes em máscaras de palhaços de folias de Reis. 
Encontro em Ribeirão Preto/SP, 2011. 
Mas existem também as enfiadas de dentes, vários exemplares trespassados em cordão compondo colares, rosários de dentes, como há os rosários de garras, com as mesmas funções. São as guias

O sonho com os dentes se reveste de importante simbolismo. Em São João del-Rei a crença geral é de que prediz aproximação da morte na família ou de parente ou amigo muito próximo, mormente se na imagem aparecem cariados, podres ou bambos (com mobilidade). 

Um manual nos ensina que o sonho quando mostra dentes apodrecidos é indicativo de enfermidade; dentes que caem, doença grave; que nascem, aumento na família; dente belos, prosperidade; sendo arrancados, pequenos prejuízos; sujos, boas notícias; postiços, perseguição de inimigo; de ouro ou chumbado, sorte no jogo. Sonhar que se consulta um dentista é traição; que se é um dentista, são questões por dinheiro; que se extrai um dente do sonhador, dificuldades (5).

Os dentes surgem nos mitos e lendas. Quando alguém é perseguido pela bestial mula-sem-cabeça para se livrar de seu ataque deve esconder as unhas e os dentes para que a criatura fantástica não os veja (6).

Uma lenda etiológica sobre o tamanduá, justifica que este animal come formigas devido à falta de dentes. Quando os animais foram criados por Cadjurucré com cinza da fogueira noturna, o criador formidável, já cansado de tanto fazer bichos, na derradeira noite de trabalho, criou o tamanduá. Quando ia terminá-lo veio a madrugada e a fogueira se apagou. Sem ter como terminá-lo, por não haver mais cinza, recorreu ao espírito para completá-lo pois ainda faltava a língua e os dentes. O espírito pegou uma varinha fina, pôs na boca do bicho à guisa de língua e despachou-o, pois o dia vinha raiando. O tamanduá retrucou: _ mas que vou comer se não tenho dentes? O espírito respondeu-lhe: _ vais comer formigas! (7)

Reza-se contra dor de dentes. Nas rezas a padroeira dos dentistas e dos sofredores de odontalgias é lembrada: Santa Apolônia. Câmara Cascudo, no seu "Meleagro" (p.157) cita uma oração desta natureza de Augusto Severo/RN: 

"Estava senhora Santa Pelonha em sua cadeira de ouro sentada com a mão posta no queixo e passa Nosso Senhor Jesus Cristo. Perguntou: _ que dói, Pelonha? _ um dente, Senhor! _ pois, Pelonha, do sul ao norte, do nascente ao poente, ficará esta criatura livre e sã e salva de dor de dente, pontada, nevralgia, estalecido e força de sangue". (Completa-se com Pai Nosso e Ave Maria às Chagas de Cristo)

Também sob a forma de ensalmos clamam por Santa Apolônia, como estes exemplos que recolhi em Santa Cruz de Minas (maio/1998): 

Estava Santa Pelonha
sentada na pedra fria,
curando dor de dente
com uma ave-maria.

Encontrei Santa Pelonha
sentada na pedra fria,
que benza essa dor de dente
entre uma ave-maria. 

As lesões causadas por fungos chamadas candidíase, vulgarmente "sapinho", merecem atenção dos benzedores. Causam incômodos principalmente em crianças e na esperança de melhoras recorrem às benzeções. Em Passos/MG (jul./1997): "Jesus Cristo quando veio de Roma, o quê que trouxe de lá? Trouxe água da fonte e ramo do monte, que há de curar (fulano...) deste mal de sapinho."

Esta oração é polivalente. Serve para várias doenças que os benzedores sabem identificar, bastando substituir a palavra "sapinho" pelo nome do malefício: há de curar fulano deste mal de... simioto, espinhela caída, ar das vistas, quebrante, vento virado, lombriga assustada, nervo torto, veia magoada, carne ofendida, osso rendido, junta desconjuntada... 

Uma benzeção anotada em São João del-Rei (set./1998), diz:

"Quando Deus andava pelo mundo, encontrou São Pedro sentado na pedra se lastimando.
_ Que tens, Pedro, que tanto lastima assim?
_ Dor de dente, Senhor!
_ Se for pus, vaza; se for bicho, morra!"

Quando diz "vaza" o benzedor marca com a digital do polegar direito uma cruz sobre a pele em cima do dente afetado. Ao dizer, "morra",marca outra, da mesma forma. Vaza e morra são pronunciados de forma enfática, imperativa. Repete-se três vezes a fórmula e por fim se completa com a prece de um Pai Nosso e uma Ave Maria.

Outra benzeção de Passos: 

Três e três, seis, e três nove.
Noves fora!
Assim como noves fora,
o sapinho da boca da criança
há-se sair fora!
Sai de três vez,
sai de seis, sai de nove
e sai de tudo de uma vez!

Nossa Senhora Aparecida:
assim como esse ramo seca, 
o sapinho da boca da criança há-de secar!

O benzedor risca no ar cruzes sobre a boca da criança, usando de um pequeno ramo verde. O ramo é posto a secar no sol e ninguém deve tocá-lo além do benzedor, ou pegará a moléstia. Quando o vegetal secar o sapinho terá secado. Completa-se com uma oração de Pai Nosso e três Ave-Marias. É um exemplo de ensalmo numérico

Outra forma de curar o sapinho é passar a ponta do cabelo da madrinha três vezes na boca afetada (8). Em São João del-Rei, segundo informação de 1996, a receita desta simpatia é passar a barra da saia da madrinha em vez do cabelo. 

No Rio Grande do Norte o costume é passar algodão no dente acometido por um mal e colocá-lo no oco de uma árvore. Vai-se embora do lugar sem olhar para trás. Quem pegar ou tocar pega o mal (2). É o conhecido processo de transferência de moléstia, usadíssimo na medicina mágica. 

A pena da asa do bacurau se esfrega contra o dente tira-lhe a dor (3; 9). Bacuraus são várias espécies de aves noturnas (ordem caprimulgiformes, família caprimulgidae), outrossim conhecidas por curiango, curumbamba, curibamba, noitibó e mede-léguas. 

O misticismo em torno dos dentes e a religiosidade que os cercam são pontos marcantes da cultura popular. Por diversas etnias se pode rastrear seus sinais. 

Referências Bibliográficas

(1) - POEL, Francisco van der. Frei. Religiosidade popular: a riqueza dos pobres. Carranca, Belo Horizonte, Comissão Mineira de Folclore, n.34, p.5, jun./1998. 
(2) - CASCUDO, Luís da Câmara. Meleagro: pesquisa de catimbó e notas de magia branca no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Agir, 1978. 208p. 
(3) - CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. 930p.
(4) - LODY, Raul Giovanni. Pencas de balangandãs da Bahia: um estudo etnográfico das jóias-amuletos. Rio de Janeiro: FUNARTE/INF, 1988. 167p.il.
(5) - NEHUAY, Pandjah. Manual dos sonhos: intrepretação dos sonhos conforme os mais célebres cabalitas antigos e modernos. 17ed. Rio de Janeiro: Espiritualista, [s.d]. 172p.
(6) - AZEVEDO, Ricardo. Monstrengos de nossa terra: seleção de mitos populares. São paulo: FTD, 1986. 
(7) - PAIVA, Melquíades Pinto, CAMPOS, Eduardo. Fauna do Nordeste do Brasil: conhecimento científico e popular. Fortaleza: Banco do Nordeste, 1995. 274p. p.215-6.
(8) - Seleção das melhores rezas e simpatias que o povo escolheu. São Paulo: Thirê, 1995. 95p. p.69 e 71. 
(9) - ARAÚJO, Iaperi Soares de. A medicina popular. Natal: UFRN, 1981. 132p. 


Notas e Créditos

* Informantes: 
- Santa Cruz de Minas: Elvira Andrade de Salles
- Passos: Manoel Teodoro do Nascimento
- São João del-Rei: Luís Santana
** Texto e fotografias: Ulisses Passarelli
*** Agradecimentos e oferecimento: a Arthur Cláudio da Costa Moreira, pelo incentivo na retomada deste trabalho

domingo, 13 de abril de 2014

O retorno do trabalhador

Um homem muito bom, inimigo do pecado, à prova de qualquer maldade, certo dia, por razões de trabalho, teve de deixar a família e foi buscar labuta longe. 

Ficou longos anos fora sem poder voltar do serviço para visitar os de casa, até que depois de décadas disse ao patrão que queria voltar para a sua família. 

Na hora da despedida, seu empregador deu-lhe um grande pão e disse que era para comer com os familiares e que só o partisse quando chegasse em casa. 

O homem partiu. Chegou à sua cidade, foi em casa e viu seus familiares todos velhos, muito idosos e ele próprio estava bem conservado. Todos aqueles anos passaram lentos para ele. Devido à sua bondade e virtude esteve na graça de Deus, permanecendo jovem. 

Indo para casa.
Cena flagrada no povoado do Valo Novo.
São João del-Rei, 2013. 
Começou a conversar com as pessoas da sua casa que não o reconheciam. Foi então que perguntou à senhora pelo marido e ela lhe respondeu que ele havia saído de casa a muitos anos e nunca mais voltado. O homem apontou para um retrato na parede, dele próprio, mais jovem e a velha comparando enfim o reconheceu. Abraçaram-se fervorosamente em meio à admiração pelo milagre. 

A família felicíssima foi comemorar o retorno do pai. O homem levou o pão que havia ganho para a mesa e abriu-o. Qual não foi a surpresa ao ver dentro do alimento sagrado muitas jóias de grande valor, que o patrão ali ofertara como recompensa pela idoneidade e pelos longos anos de trabalho fiel. 

Notas e Créditos

* Texto e fotografia: Ulisses Passarelli
** Informante: Aluísio dos Santos ("Ló"), São João del-Rei/MG, 1997.
*** Obs.: é de se notar neste conto popular alguns elementos ou reminiscências da odisséia do herói grego Ulisses, que retorna ao lar depois de longos anos sem ver a família e não é reconhecido de imediato pelos de casa.


sexta-feira, 11 de abril de 2014

São Pedro e a Caveira

Os apóstolos andavam pelo mundo afora acompanhando Cristo nas pregações e curas. Numa estrada deserta viram um esqueleto no chão. Pararam em volta e ficaram olhando, perguntando uns aos outros quem poderia ter sido o falecido. 

Caveira entalhada em madeira de uma essa.
Igreja de São Francisco de Assis,
São João del-Rei / MG.
São Pedro, que estava muito mal humorado, chutou a caveira e o crânio saiu rolando. Jesus o repreendeu:

_ Isto são modos, Pedro! Cadê o respeito que te ensinei? Anda! busca lá a caveira e pergunta pra ela de quem que ela é. 
_ Mas, Mestre, caveira não fala...
_ Já mandei, Pedro!

Então São Pedro buscou e perguntou. A caveira respondeu:

_ Ah! Quem sou eu? Eu sou um infeliz que saiu desse mundo enganador, onde sofri a vida inteira para criar meus filhos de sol a sol, pra hoje um deles vir chutar minha cabeça ... 
_ Papaaai!!!


Notas e Créditos

* Texto e foto (11/04/2014): Ulisses Passarelli
** Informante: Aluísio dos Santos, São João del-Rei, 24/03/2000.
*** Obs.: um outro conto muito difundido na região, estabelece o encontro de São Pedro com a caveira noutra circunstância que não o mal humor: o apóstolo estaria difamando alguém ou revelando um segredo, e Cristo deu-lhe uma lição de moral sobre não falar mal dos outros, pedindo que perguntasse à caveira o motivo de sua morte. São Pedro após relutar a teria perguntado: "_ Quem te matou, caveira?", ao que ela respondeu: "_ A língua!" , ou seja, morreu por ter dito mais que devia, vitimada por uma vingança. Apesar do tom anedótico, em ambos os contos do encontro do apóstolo com a caveira, sobressai o ensinamento da cultura popular contrário à prática do desrespeito e da calúnia. 
**** Links sugeridos: conheça mais estórias populares sobre este apóstolo clicando nos títulos abaixo:

MAL VIZINHO  

A SURRA DE SÃO PEDRO 

A CONDENAÇÃO DA MÃE DE SÃO PEDRO  

MAIS UMA DA MÃE DE SÃO PEDRO


quarta-feira, 9 de abril de 2014

Dez imagens da folk-comunicação - parte 1

A comunicação popular escrita é um caminho muito usual e geralmente anônimo das pessoas se expressarem e transmitirem recados, mensagens, críticas, informações, por vezes velados, de outras ocasiões bastante objetivos, de maneira que foge à imprensa habitual.

Esta transmissão de informações é sabidamente cosmopolita e estudiosos tem se ocupado em classificá-las e analisá-las. Alguns exemplos já foram levantados neste blog e ora a dezena de retratos seguintes exemplifica uma pequena parcela do arraigado costume na região estudada.

Engloba diversas manifestações tais como grafitos em banheiros públicos, impressos de orações pagos em jornais, orações-correntes, testamentos de judas, pasquins, frases de para-choque de caminhão, etc.

Esta pequena postagem não cairá na tentação de discutir a legalidade de certos caminhos desta comunicação popular. As fotos apenas as apresentam, ficando as discussões e comentários reservados a uma outra oportunidade em preparação.

O objetivo ora se restringe a chamar a atenção para estes elementos culturais, que em si são para o povo importantes mecanismos midiáticos. São informais e vem carregados com uma significação simbólica e uma forma insólita, que, contudo, conseguem atingir eficazmente seu público alvo, merecendo dos pesquisadores atenção e ampliação dos registros e estudos. 

1- "Tentamos levar a pedra mas não conseguimos"
Pichação gaiata numa enorme pedra no Bosque da Mãe d'Água, Serra de São José, Tiradentes/MG.
Crítica à legislação protecionista da área, que proíbe coleta de animais, vegetais ou minerais. 01/12/2009.
2- "O povo cala o muro fala!"
Mensagem pichada no muro da estação ferroviária de São João del-Rei/MG.
Rua Quintino Bocaiúva, Centro, 20/06/2013.   
  
3- "Aguardando chuva".
Automóvel empoeirado estacionado na Av.Tiradentes, São João del-Rei. 02/05/2013.

4- "Os Coletores de Lixo desta rua desejam-lhe um Feliz Natal e próspero Ano Novo, junto a sua família, e pedem um 'Papai-Noel'. Que Deus o recompense. São João del-Rei, dezembro de 1962."
Pedido de ajuda dos funcionários de limpeza pública distribuídos aos moradores. Papel-cartão, 6 x 9,5cm.

5- Desenho raspado na pintura de uma placa de sinalização de trânsito (depressão na pista), representando um skatista.
Avenida Tiradentes esquina com Rua Aureliano Mourão, São João del-Rei. 06/09/2013. 
6- Programa da Festa de Nossa Senhora do Rosário em São Gonçalo do Amarante (ex-Caburu), 1992,
distrito de São João del-Rei,constando eventos ligados ao reinado e a dança folclórica do congo.
Na base do impresso, quadrículas reservadas a propagandas de patrocinadores. 

Afixação nas paredes das casas comerciais em geral. Papel-jornal, 21,5 x 31,5cm. 
7- Manuscrito à caneta esferográfica em folha pautada de caderno, contendo no estilo corrente, a novena
à "Bondosa Alma de Bento do Portão", de autoria anônima, coletada em 12/04/2009 no Cemitério Municipal
de São João del-Rei, popularmente chamado "Quicumbi". 

 Transcrição e comentários disponíveis através do link no fim desta postagem. 

8- Convite para paraninfo da festa do padroeiro.
Capela de São Geraldo Magela, São João del-Rei, 1975.
Impresso 21 x 15,5cm. 

9- Esboço de face evocando a suposta fisionomia de Cristo.
Grafito a carvão num muro de placa de cimento de lote em construção.
Praça Dom Silvério, Bairro das Fábricas, São João del-Rei, 01/11/2013.

10- Cartão de Natal dos coletores de lixo que andam nos caminhões de rua em rua fazendo limpeza pública.
Distribuído em envelopes, que habitualmente se lhes devolve nos dias seguintes com uma oferta voluntária.
São João del-Rei, 2013. Impresso em pepel reciclável, 10,5 x 14,7cm. 


Notas e Créditos

* Texto e fotos: Ulisses Passarelli
** Para saber mais leia: CORRENTES   

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Folia de Reis de Ribeirão Vermelho


Assista ao novo vídeo da Folia de Reis "Embaixada João Batista Tobias", de Ribeirão Vermelho/MG, que se vê na fotografia acima. Clique no seguinte link: 


* Foto: Iago C.Salles Passarelli, 26/01/2014

domingo, 6 de abril de 2014

Na minha terra se fala assim - parte 3

Amarrar as calças – o mesmo que “apertar a correia”: preparar-se para uma situação difícil, precaver-se das dificuldades iminentes.
Balofo – gordo, inchado, obeso, edemaciado.
Bater as botas – morrer.
Bater perna – andar muito, caminhar sem rumo, vagar.
Birinight – cachaça, pinga, aguardente, "caninha", "marvada", "parati", "água que passarinho não bebe".
Birosca – bar ordinário, estabelecimento comercial ruim; "buteco". 
Boca aberta – idiota, imbecil.
Buléu –  surra, sova. Dar um buléu, tomar um buléu.
Camorfa – mulher leviana, impudica, oferecida. Prostituta.
Casinha de caboclo – emboscada, armadilha, situação embaraçosa.
Catiripapo – tapa, bofete, “esfrega”.
Catita – pequena e bonita. Menina catita.
Catramba – velho, estragado, danificado, desgastado.
Cavaquista – brigão, encrenqueiro, gerador de desavenças frequentes.
Chamada – admoestação, chamar à atenção, à responsabilidade.
Chifrudo(a) – “corno”, pejorativo: pessoa traída no amor, vítima da infidelidade no relacionamento. Pode ser também um dos muitos sinônimos do diabo.
Chinfrim – desqualificado, de mau gosto.
Chumbado – bêbado, embriago. “Saiu chumbado do bar”.
Conversa pra boi dormir – conversa à toa, sem proveito, diálogo inútil.
Conversar goma – conversar com agressividade, usando de palavras ameaçadoras ou de auto-promoção.
Cor de burro fugido – cor indefinida, mistura confusa de muitas cores.
Currutela – mulher leviana, impudica, de conquista fácil. Prostituta. 
Enfiar o bico – entrometer-se, envolver-se em assunto alheio.
Erado - criado, adulto, formado, constituído. Pode contextualmente ter o sentido de velho. Boi-erado. Canário-erado.
Escarafunchar – remexer, procurar exaustivamente.
Esticar o paletó – falecer. “Fulano esticou o paletó”: morreu.
Ficar boneco – “ficar velhaco”, ficar esperto, estar prevenido contra dificuldades e perigos próximos; estar de prontidão contra complicações.
Filhote de cruz-credo – filho com os defeitos do pai. O mesmo que “filho de Deus me livre”.
Fiúza – confiança. “Ficar na fiúza de ...” : esperar providências e atitudes de alguém, sem tomar as próprias.
Gogó – garganta, faringe, “goela”. Por extensão diz-se que tem muito gogó que fala de si mesmo enaltecendo as próprias qualidades, “contador de vantagem”, “contador de marra”.
Gosto de cabo de guarda chuva – sabor indefinido, gosto desagradável, que não se sabe se doce, azedo, salgado, amargo ou agridoce.
Gosto de corrimão de rodoviária – o mesmo que “gosto de cabo de guarda chuva.”
Indaca – confusão, tumulto: “ficou discutindo, caçando indaca com os outros...” . Podem ser também resquícios no campo espiritual, carga negativa, encosto, má influência na aura: “entrou naquele casarão abandonado e saiu cheio de indaca”. Neste sentido, o mesmo que “urucubaca”, azar. 
Inhaca – fedor, catinga, mal cheiro, podridão.
Lapo-lapo – mole, flácido, sem consistência. “O angu que ela mexeu ficou um lapo-lapo!”
Mamado – bêbado. “Chegou em casa mamado”.
Manqueba – idiota.
Maquitolar – mancar, andar trôpego, coxo.
Marmelada – falcatrua, favorecimento ilícito.
Meia-jota – olhar de esgueio, observar às escondidas. “Ficou de meia-jota” : na espreita.
Mutungar – cair, desmaiar, desfalecer. “Mutungou no meio do povo” : perdeu os sentidos dentro do tumulto.
Negro-aço – pessoa albina.
Nesga – pedaço grande. “Tirou uma nesga de bolo”.
Nhaco – o mesmo que nesga. “Pegou a coxa do frango e mordeu um nhaco”.
Osso – dureza, dificuldade, peleja. “Aquilo ali é osso!”. O mesmo que “osso duro de doer”.
Pafúncio: palerma, imbecil. "Fulano é um pafúncio..."
Passa-n’água: idiota.
Passar sabão – admoestar, xingar por motivos de correção de conduta execrável.
Pastel – bobo, abestalhado.
Pataquada – idiotice, situação ridícula, palhaçada. “A reunião foi uma pataquada!”
Rabo de foguete – situação difícil, complicada. “Rabuda” (vide).
Rabo de Olho – esgueio, “olhar de banda”, espiar, olhar com o campo lateral da visão, sem focar a atenção, despistando o interesse real do olhar.
Rabuda – situação difícil. “Enfrentou uma rabuda danada!”. Em sentido pejorativo, mulher de quadris largos. Na gíria umbandista, apelido chulo das pombas-giras.
Rameira - mulher leviana, impudica. Prostituta. 
Sabonete – pessoa “escorregadia”, no sentido de ser arisco, de não se deixar prender a nada nem a ninguém. Indivíduo esquivo. “Passar um sabonete”: o mesmo que “passar sabão” (vide).
Saca-trapo – sujeito desmazelado, maltrapilho, anti-higiênico, de hábitos sociais esquivos.
Tabefe – tapa no rosto.
Tendepá – confusão, discussão, “bate-boca”, tumulto.
Tereré – doido, louco, “lelé”, biruta, maluco, desorientado. 
Torete – pedaço grande. “Cortou um torete de cana para chupar”.
Tungar – tomar de; usurpar. “Tungou minha ferramenta”
Urucubaca – azar, má sorte, praga espiritual.
Vira-bosta – pessoa imprestável, inútil, de má vontade, ruim de serviço.
Zambi-zambi – indivíduo com andar trôpego, zonzo. “Caiu da árvore e saiu zambi-zambi”.
Zanzar – andar muito, sem rumo.

O povo em burburinho conversa no adro da igreja de forma descontraída.
Procissão de São Jorge, Matriz da Imaculada Conceição.
São João del-Rei/MG, 25/04/2009.

* Texto e foto: Ulisses Passarelli