Bem vindo!

Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sexta-feira, 22 de julho de 2016

Terceiro Encontro de Congados de Tiradentes

No último domingo, dia 17 de julho de 2016, a cidade de Tiradentes/MG vivenciou em seu centro histórico intensa e alegre manifestação de regozijo pelo rosário de Maria. Congadeiros do terno do "Prego" (alcunha do Capitão de Congado Claudinei Matias do Nascimento), da própria cidade _ Bairro Capote _ recepcionaram pelo terceiro ano consecutivo as guardas visitantes vindas de Senhora de Oliveira, São João del-Rei, Barroso, Resende Costa, Ibituruna e Dores de Campos. 

Os dançantes se reuniram no Largo das Forras onde após receberem o café da manhã, dançaram e cantaram ao som de seus instrumentos, tudo de forma devocional, para deleite dos turistas que em derredor acompanhavam com grande interesse, registrando tudo em fotografias, filmagens e self's. Como é de costume nestas festas chama muito à atenção o colorido e a musicalidade, muito peculiar de cada estilo congadeiro. 

Formaram um cortejo rumo à Igreja de Nossa Senhora do Rosário, que esteve aberta aos ternos. Cada qual adentrou em visita e por fim, na retaguarda, trouxeram a imagem de Nossa Senhora do Rosário numa charola, momento de grande importância para o congadeiro. Rua abaixo, seguiram para as Mercês, a bela igreja rococó que os recepcionou para uma bênção. O pároco, com respeito e entusiasmo, acolheu e abençoou a todos. Quando o congadeiro encontra na Igreja apoio e compreensão, se sente feliz em plenitude, tranquilo com o cumprimento de sua missão, estimulado a continuar. 

Seguiram para o almoço, em nova travessia pelo centro. No pátio da escola, após o almoço e a confraternização de costume, cada guarda cantou em tempo livre sua manifestação de gratidão ao convite e ao alimento oferecido. E receberam uma lembrança da festa, pequeno banner com estampa de Nossa Senhora do Rosário, da Escrava Anastácia e da Igreja de São Benedito. Algumas guardas se despediram. 

Por fim, as guardas que permaneceram voltaram à Igreja de Nossa Senhora das Mercês em cujo adro , gramado e aprazível, contíguo ao cemitério, estavam fincados os mastros. Cada uma desceu um mastro em ritual próprio, já no cair da noite e assim, ao pipocar de alguns fogos de artifício isolados, despediam-se congadeiros de mais uma missão cumprida.

Aspecto do quadro do mastro da Escrava Anastácia. 

Visão geral dos mastros no adro-cemitério de Nossa Senhora das Mercês:
da esquerda para a direita: Escrava Anastácia, Santa Efigênia, São Benedito,
Nossa Senhora das Mercês e Nossa Senhora do Rosário. 

Aspecto da descida do mastro de São Benedito, pela guarda de Barroso. 



Entrega do quadro do mastro descido ao festeiro. 
Senhora Rainha e Senhor Rei da guarda de Senhora de Oliveira. 

Congado de Barroso em cortejo. 

Marujos de Dores de Campos. 

Moçambique de Ibituruna. 

Jovens congadeiros (as) de Resende Costa .

Coreografia do terno de Senhora de Oliveira. 

Moçambique Santa Efigênia, de São João del-Rei.
Capitão Tadeu, de Matosinhos, São João del-Rei.    


O congado anfitrião, do Capitão "Prego". 

A imagem de Nossa Senhora do Rosário fecha o cortejo. 
Notas e Créditos

* Texto e acervo: Ulisses Passarelli
** Fotografias: Iago C.S. Passarelli
*** Veja neste blog como foi esse evento no ano anterior clicando no link abaixo:

SEGUNDO ENCONTRO DE CONGADOS DE TIRADENTES

terça-feira, 19 de julho de 2016

Catirina & Pai João

O Blog TRADIÇÕES POPULARES DAS VERTENTES completa hoje quatro anos no ar. Exatamente a 19 de julho de 2012 era fundado com o objetivo de valorizar e registrar a cultura popular do centro-sul de Minas Gerais, conhecido por Mesorregião Campo das Vertentes. O trabalho prossegue otimista, driblando as adversidades. Esta página contabiliza 700 postagens disponíveis, sem contar outros textos lincados e se aproxima de 170.000 visitas, entre nacionais e estrangeiras.

Diante disto, com muita gratidão aos visitantes e seguidores, nada mais justo que festejar. E o faço com este post comemorativo, lembrando de dois personagens desaparecidos das folias de Reis da região, mas que guardavam grande importância simbólica no universo reiseiro: Catirina e Pai João. E se o tema deste aniversário é a folia de Reis, a explicação reside unicamente no sentimentalismo, por ter sido esta manifestação a minha porta de entrada para o mundo da cultura popular, ainda na infância. De tal forma foi marcante, que a cada dia aprofundo mais no seu contexto.

* * *

Narram e narraram vários foliões destacados pelo saber, que, outrora, as folias de Reis em São João del-Rei e em várias localidades e municípios em derredor, tinham uma personagem cômica chamada "Catirina", parceira inseparável do palhaço (= marungo, bastião). 

Era vivenciada por um homem travestido e mascarado. Trajado simploriamente, lembrava em sua figura e encenação uma mulher do mundo rural de antanho, senão mesmo uma escrava. Vestido de chita ou de pano liso e ordinário de algodão, lenço à cabeça, munido de pequeno embornal ou sacolinha para recolher espórtulas, e tendo a cara borrada de maquiagem grosseira sobre a máscara, lá vinha a Catirina, a par do Bastião, cheia de trejeitos, mas sem exageros, brincando e falseando a voz, para disfarçar a verdadeira identidade de seu artista.

Tudo que o Bastião fazia, Catirina faziam também. A função era a mesma, o objetivo um só. Ao mesmo tempo que guardavam a folia e davam orientação aos rumos da chegada a uma fazenda ou residência, também faziam gracejos que alegravam os anfitriões e compunham o universo mítico de uma folia de Reis.

Por vezes, algumas folias mais antigas, vindas de lugares recônditos da zona rural traziam também mais um personagem mascarado, Pai João, ou como se dizia também, "Nêgo Véio" (Negro Velho), outro caricato simbolizando um escravo idoso ou negro de idade avançada. Segundo o imaginário da época, primeira metade do século XX, vestia-se de calça e camisa modestas, paletó desgastado pelo tempo, máscara ao rosto retratando longevidade, chapéu de palha, trazendo à mão uma bengala de pau. De voz gutural e andar trôpego, não disfarçava porém certo assanhamento por Catirina, que decerto, guardava sua predileção pelo Marungo. Não se arvoravam em triângulo amoroso, mas com certeza eram uma tríade cômica.

O tempo os sacrificou. Desapareceram por completo nesta região. E faz tempo... Pai João que foi sempre o mais raro, perdeu-se primeiro nas agruras dos anos e hoje ninguém se lembra dele. Os velhos mestres que informaram já partiram. Catirina foi depois e notícias parcas ainda lhe dão uma vida em ocaso na década de sessenta. De lá para cá extinguiu-se. O palhaço continua, a bem da verdade um pouco escasso em relação ao passado, mas está aí vivo, ora grotesco ora gracioso.

Pai João era também o nome de outro mascarado burlesco que participava em algumas localidades rurais da queima do judas. Portanto outra atividade, totalmente diferente das folias. Era uma espécie de guardião do boneco e de sua chácara, para que não fosse tomada de assalto pela molecada e o estafermo malhado antes da hora. Pai João então afugentava as crianças ameaçando-lhes com um relho.

Fora a sua materialização em personagem humano de folias e queimas de judas, Pai João já bem mais abstrato, é personagem frequente da literatura popular, figurando como protótipo do escravo idoso nos contos e no fabulário. Tem então em sua personalidade um misto de preguiça e esperteza, sabedoria e dissimulação. De tal forma é significativo neste aspecto que alguns folcloristas falam em "Ciclo do Pai João" para se referirem a esta temática de narrativa de estórias da escravidão no Brasil.

Em termos de folclorística há notável abundância de material publicado sobre as folias e acerca dos palhaços os livros tem uma abordagem significativa. Mas por mais que se vasculhe a literatura especializada é extremamente raro achar menção à Catirina em folias. Um trabalho clássico é o legado por Alceu Maynard Araújo, que na década de 1940 documentou criteriosamente a folia de reis de caixa, na zona rural de Cunha/SP, que tinha os três mascarados. Seu estudo é de suma importância, incluindo documentário fotográfico e é sem dúvidas a referência mais importante que temos sobre o assunto em folias.

Quando de minhas pesquisas no sudoeste mineiro (julho/1997), em Passos, ouvi do Mestre Manoel Teodoro do Nascimento a existência destes mascarados nas folias daquela zona nas primeiras décadas do século XX, conforme me relatou de memória.

Informação idêntica já havia obtido da oralidade em relação ao sul de Minas.

O folclorista Affonso Furtado relatou-me pessoalmente o mesma presença, quanto à região limítrofe de Minas e Rio, em Porto das Flores (Belmiro Braga/MG) e Manuel Duarte (Rio das Flores/RJ) - Palhaço, Nêgo Véio e Catirina, alegrando as folias.

Aqui nas Vertentes um registro importante foi feito José Antônio de Ávila Sacramento, que em 1970, em fazenda no distrito são-joanense de São Miguel do Cajuru, presenciou a chegada de uma folia com Palhaço e Catirina e descreveu o ritual e a interação com os anfitriões, momento de alegria e devoção. 

Mas se no Sudeste brasileiro a Catirina é personagem das folias de Reis, pelo imenso Nordeste é figurante do bumba-meu-boi e de alguns reisados. Então é parceira de Mateus e Birico _ os vaqueiros bufões _ ou outros mascarados ou personagens de face encarvoada (Cravo Branco, Sebastião, Fidélis...). Encarvoada sim, tisnada de preto de fuligem de fogão à lenha e gordura de panela (tisna). Se borram com essa mistura. A Catirina ou Catarina, como também se diz em toda sua área geográfica de ocorrência, é também chamada no Nordeste de Lica, Catita, Nanã e Rosa (*). 

Luís da Câmara Cascudo informou que nos mais velhos bumba-meu-boi a personagem não aparecia: "posteriormente incluíram elementos femininos (homens vestidos de mulher), Catirina ou Rosa." (p.61). O mesmo autor afirmou: "A Rosa é Catirina, a mesma Velha dos 'bois' paraibanos" (p.66). 

Em vários locais existem personagens mascarados ou de face maquiada chamados Velho e Velha. É habitual dançarem com dificuldade, cambaleantes, como se as pernas estivessem enfraquecidas. Mas quando a música irrompe um ritmo vivo, dançam com vigor inesperado, com energia plena no sapateado. Na prática, a atuação do Velho e da Velha é muito similar à da dupla Palhaço e Catirina. Pode-se até mesmo arriscar que proporcionalmente são equivalentes.

António Pinelo Tiza demonstrou de forma eloquente e abundante de exemplos como é comum entre as festas natalinas e reiseiras do nordeste português (Trás-os-Montes) a presença de mascarados, não raro um masculino e outro feminino, inclusive o Velho e a Velha. Analisando sua ancestralidade e sentido mágico, ligado a antigos rituais pagãos de propiciação de fertilidade e fartura, escreveu sobre a "Festa dos Rapazes" comentando com coerência:

"a presença dos mascarados, que constituem as figuras centrais em torno dos quais toda a acção festiva se desenrola a desempenharem os mais variados papéis, os quais são essenciais na animação e conferem uma significação específica à própria festa; o misticismo das cerimónias de certas sociedades secretas exige o uso de máscaras, o que confere às festas dos rapazes um exoterismo iniciático que está muito para além da compreensão de qualquer profano." (p.37)

Cascudo ensinou que ... "numas versões norte-rio-grandenses, paraibanas e maranhenses, Catirina pede que o negro Mateus mate o 'boi' porque está 'desejando' comer-lhe o fígado. Mateus, responsável pelo 'boi', sacrifica-o pelo amor da namorada." (**) Já em seu Dicionário inclui o mesmo núcleo dramático para o boi-bumbá do norte do país, quando o vaqueiro Pai Francisco mata o boi para satisfazer ao desejo de Mãe Catirina. A ideia de que são velhos escravos é a mesma. 

Eis que a tal Catirina ou Catarina tem ampla distribuição geográfica. Norte, Nordeste e Sudeste. Lá em bumbas, aqui em folias. Cabe nesse momento uma indagação: como foi isto? Correntes migratórias carregando consigo seus elementos culturais transportaram a Catirina ao setentrião ou de lá é que veio para nós? Talvez a resposta não seja esta, que a princípio se arvora como hipótese de trabalho. Demanda pesquisa maior das influências ibéricas (***).

O nome Catirina ou Catarina, seja como for, nos meios folclóricos, parece se revestir de evocação de antiguidade e idealizar a mulher negra e em alguns casos o imaginário coletivo a desenha como escrava. Assim, estes nomes parecem invocar na cultura popular o arquétipo servil tão cantado e decantado nos versos do povo. A título de exemplo, eis um canto dos congos do Rio Grande do Norte (nos quais não existe a personagem humana "Catirina" _ é tão somente uma referência simbólica); em Ponta Negra (Natal):

"_ Catarina, minha negra,
_ Teu senhor te quer vender!
_ Lá pro Rio de Janeiro,
_ Para mais nunca te ver...

_ Catarina, minha negra,
_ um senhor te quer comprar!
_ Lá do Rio de Janeiro,
_ para nunca mais voltar..."

A cada verso solista o coro responde incisivo e intercalado: "_ Oi, marobambirá!"

Além do sentido de personagem até aqui exposto a nome comporta outras acepções. Na Bahia de outros tempos, registrou Hildegardes Vianna, catarina era qualquer menina negra vinda da mais humilde camada popular doada a uma família de brancos para servir. A família a criava, mas as catarinas eram obrigadas a fazer toda sorte de serviço doméstico a troco de ter comida, roupa minguada e moradia. Sem dúvidas, um novo formato da escravidão após a abolição. Para a autora, o nome dessas domésticas "que circulavam como como arremedo de criada nos lares de baixa classe média, poderia ter vindo do bumba-meu-boi, que fez as delícias da gente daquele tempo. Fica à suposição".

A mesma autora diz ainda: "Também as bruxas de pano, inclusive as feitas no estilo de corda de xangó, eram conhecidas por catarinas." E eis outra notável similitude porque nos anos noventa, 1995, salvo engano, tivemos oportunidade de ver no Córrego, em Santa Cruz de Minas, a saudosa sra. Mariana Figueiredo, que carinhosamente conhecíamos por "Dona Mariinha", cuidadosamente costurando uma grande boneca negra, toda de tecido. Trabalho manual, cuidadoso, típico da cultura popular. A grande boneca era vestida de noiva. O fato nos chamou a atenção e quando indagada, disse que era uma catarina, assim mesmo, com este nome, catarina, que todos os anos (desde longa data), costurava e doava como prenda ao leilão do Gritador (Festa de São Sebastião) e do Bichinho - atual Vitoriano Veloso (Festa de Nossa Senhora da Penha de França), ambos, distritos de Prados. Dizia que não podia faltar uma catarina no leilão, sempre muito disputada nos lances, dando boa renda aos festejos. 

1- Catarina: boneca de pano, Santa Cruz de Minas, 1995.  

2- Palhaço (esquerda) e Catirina (direita), da Folia de Reis "Estrela Guia",
de Santo Antônio do Monte/MG. 17/01/2015.  
3- Palhaço (esquerda) e Catirina (direita), da Folia de Reis 
de Santo Antônio de Goiás/GO. 22/10/2004.  


4- Velha (esquerda) e Velho (direita), da Folia de Reis
de Azurita/MG. 
5- O Velho e a Velha, do Boi de Reis do povoado de Bocas,
distrito de Cuité, Pedro Velho/RN - 1997.  

6- As novas catirinas, com estilização da indumentária. Juiz de Fora/MG. 

7 e 8- Conjunto de mascarados da Folia de Reis "Estrela de Belém",
do Bairro Teixeiras, Juiz de Fora em visita a São João del-Rei.
No recorte extraído dentre os palhaços, detalhe da Catirina. 25/12/2014. 

9 e 10 - Conjunto de artesanato em cerâmica figurando um grupo de
reis de congo (reisado), procedente de Juazeiro do Norte/CE. Em
detalhe o personagem Catirina. Observar que representa um homem
travestido, simulando uma grávida. 

Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Alceu Maynard. Folia de Reis de Cunha. Revista do Museu Paulista, Nova Série, v.3 (separata) (****)

CASCUDO, Luís da Câmara. Tradições Populares da Pecuária Nordestina. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura / Serviço de Informação Agrícola, 1956. Documentário da Vida Rural, n.9. 90p. Bumba-meu-boi: p.61-73. 

SACRAMENTO, José Antônio de Ávila. Uma Folia de Reis em São Miguel do Cajuru. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, v.10, 2002. 180p. p.75-82. 

TIZA, António Pinelo. Inverno Mágico: ritos e mistérios transmontanos. Lisboa: Ésquilo, 2004. 287p.

VIANNA, Hildegardes. Antigamente era assim. Rio de Janeiro: Record; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1994. 283p. As Catarinas: p.169-172.


Notas e Créditos


* No povoado do Elvas (Tiradentes/MG), dizia o afamado e saudoso folião Sr. Aquino (em 24/12/1993) que o Palhaço é o capeta que quer desencaminhar os foliões pela tentação e que a Catirina, sua mulher é também chamada de "Palhaça" e "Bastiana." Na folia de Reis de Santo Antônio de Goiás os sinônimos de Catirina são "Palhaça" e "Boneca", já que o Palhaço tem por sinônimo "Boneco". 
** Cascudo aponta a existência de uma estória egípcia de mais de três milênios cujo teor é o da morte do boi para atender a um desejo da querida do faraó, desejosa de comer fígado (p.72). Mateus é o vaqueiro principal do auto do bumba-meu-boi. O autor diz ainda que em Bebedouro _ Maceió, Alagoas, no auto não existe Catirina, mas o personagem Mateus carrega preso ao pulso uma chibata feita de uma réstia de cebolas a que chamam "catrina" (p.66).
*** É que o já citado Affonso Furtado, doutor em assuntos reiseiros, teve a gentileza de nos ceder cópia de textos do acervo do Projeto Reisados Brasileiros, sobre a "Festa do Boi en Allariz desde 1317", uma preciosidade espanhola do Dia de Corpus Christi, ligada ao desfile procissional. Allariz é município galego da província de Ourense, próximo a Portugal.  Em tão remota data, surge a figura de Xan de Arzúa montado sobre um boi, munido de vara de ferrão, artifício para espantar judeus que zombavam do cortejo religioso. Tudo isto figurado nos personagens São Jorge (San Xurxo) e no dragão (Tarasca) _ este, o mal, figuração da ameaça religiosa. Pois bem. O mais interessante é que, num dos textos, "A Paso de Boi", de Delfin Caseiro, falando sobre o boi, aparece a figura de "Lucía ou Catarina", e, em outro, "Oda ao Boi", Xián Bobillo cita expressamente no refrão "Bumbá-meu-boi / Bumbá-bumbá". O assunto merece ser cuidadosamente cotejado antes de qualquer conclusão prévia. 
**** A pesquisa desse autor data dos anos quarenta (1949). Posteriormente foi publicado também em seu excelente "Documentário Folclórico Paulista" (São Paulo: Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 1952) e no monumental "Folclore Nacional" (São Paulo: Melhoramentos, 1964).
**** Fotografias: 1, 2, 7 e 8 - Iago C.S. Passarelli; 3 - Hudson Mendes; 4 e 6 - Affonso Furtado; 5, 9 e 10 - Ulisses Passarelli.
***** Agradecimentos: a Affonso Furtado, pela sessão de material bibliográfico e fotografias 3, 4 e 6.

sábado, 16 de julho de 2016

Folia de Reis, Bairro Bom Pastor, São João del-Rei

A folia alvo desta postagem é a do Mestre "Didinho" (Geraldo Domingos Resende"), do Bairro Bom Pastor, no Grande Matosinhos, São João del-Rei. Foi fundada em 1999, a partir da fragmentação da folia do Bairro Pio XII, também em Matosinhos, então do Mestre "Juquinha" (Otávio José Gatti), com a incorporação de outros folieiros, inclusive gente afeita às folias da área do Elvas. Tanto que a música apresentada neste vídeo lincado é a mesma tocada nas folias do Elvas, com resposta dividida e alternada entre duplas, enquanto os outros folieiros não cantam. 

A Folia do Didinho porém executa também sua função em outras toadas. E sob sua voz dá provas de experiência e sabedoria, com versificação muito bem elaborada, capaz de materializar os fundamentos da folia. 

O grupo prossegue em plena atividade anualmente cumprindo a visita às residências na zona urbana e na rural, e participando de encontros, em São João del-Rei e região em três jornadas anuais: Santos Reis, São Sebastião e Divino Espírito Santo, cada qual com sua bandeira e sua música, embora que com os mesmos folieiros.




Participação no Encontro de Folias de Capelinha - atual Mercês de Água Limpa
(São Tiago/MG). O vídeo mostra o agradecimento pelo almoço. 


Notas e Créditos

* Fotografias: Iago C.S. Passarelli, 26/01/2014
** Vídeo, edição e acervo: Ulisses Passarelli, 31/01/2016

domingo, 10 de julho de 2016

Festa inaugural na Capela do Monte Verde

Nove de julho de 2016; fim de tarde, começo de noite... no Condomínio Monte Verde a movimentação de devotos convergiu pelo interesse comum de conclusão da Capela de Santa Bárbara, condomínio na zona rural de São João del-Rei, distrito da sede. Naquela comunidade, após a missa festiva celebrada com bastante zelo pelo Padre Ademir Longatti, os fiéis acorreram atrás do cruciferário e das lanternas na condução do andor do Rosário.

Na retaguarda, congadeiros faziam a parte musical, intercalando com paradas para a reza das dezenas de um terço. Pelas ruas poeirentas, desprovidas ainda de pavimentação e iluminação, sob o tênue brilho da lua nova, já quase crescente, seguiu o Moçambique Santa Efigênia batendo jombas e carijós sob o comando do Capitão Tadeu.

A chegada, como de costume foi marcada por fogos de artifício em abundância e variedade, até mesmo um "coqueirinho".

Todos entraram e entre vivas, bênçãos, palmas e cantorias deram por encerradas as preces. Ao fundos da capela, uma tenda improvisada servia de barracão de festas. Entre comes e bebes todos se confraternizavam. Aos dançantes foi ofertado farto e delicioso prato de feijoada.

Surge assim mais um festejo, mais um lugar de encontro devoto-cultural. São João del-Rei não para.








Notas e Créditos

* Fotografias, acervo e texto: Ulisses Passarelli

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Moçambique, Piedade do Rio Grande, 2016

Nesta postagem assista ao vídeo da guarda piedense no momento que deixam a matriz paroquial após a celebração e diante dela clamam ao sacerdote pela bênção da água benta, rito tradicional e que atrai a atenção dos moradores, que prestigiam o evento. 

Na sequência começam a dança dos bastões, percutindo as manguaras e a seguir descem em agitados movimentos rumo à Igreja do Rosário. 

Moçambique de Piedade do Rio Grande durante a Festa do Rosário em sua própria cidade. 




Notas e Créditos

* Texto, edição e acervo: Ulisses Passarelli
** Vídeo e fotografia: Iago C.S. Passarelli, 29/05/2016

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Notas sobre o uso das arnicas na cultura popular

O nome arnica refere-se a algumas espécies vegetais da família asteraceae e "significa pele de cordeiro, aludindo ao tato de suas folhas, suaves e peludas" (*). Mas como as asteráceas são muitas, a arnica em questão é outra: no hemisfério setentrional (América do Norte, Europa e Ásia) existe o gênero Arnica, com flores semelhantes à margarida, a que se refere literalmente este nome. São plantas de áreas muito frias e altas ("gênero circumboreal e montanhoso", informa a mesma fonte). Para o hemisfério sul tivemos o nome emprestado para outras asteráceas, em verdade bem diferentes daquelas, especificamente as do gênero Lychnophora, que ultrapassam a três dezenas de espécies. 

Seu aspecto morfológico é muito diverso, o uso curativo ou em tratamento fitoterápico pode talvez dar a pista do motivo do aproveitamento do nome. Possivelmente o paralelo de usos veio via colonização portuguesa. 

Na Mesorregião Campos das Vertentes as arnicas são usadas sob a forma de solução alcoólica. Os ramos colhidos são partidos em pequenos pedaços, frescos ou desidratados, e inseridos em um frasco contendo álcool etílico líquido. É deixado a "curtir", ou seja, em descanso para extrair a química desejada. 

As espécies usadas podem variar com o costume da região e a disponibilidade. Na Serra de São José ALVES & KOLBEK (2009) apontaram a existência das seguintes espécies: Lychnophora blanchetii, Lychnophora columnaris, Lychnophora passerina e Lychnophora uniflora. Na prática observa-se que em São João del-Rei e cidades vizinhas a arnica mais usada é a passerina. 

O uso é externo: o líquido é habitualmente esfregado sobre áreas que sofreram contusão e torção; em locais com dores internas supostamente ligadas às articulações; sobre cortes e feridas - apesar da ardência que gera momentaneamente - com o intuito de assepsia; em locais que sofreram picadas e sapecados de insetos (marimbondo, abelha, taturana, mosquitos, carrapatos); arranhado ou mordida de animais; ferimento por espinhos e estacas; após extrair farpas, cacos de vidro ou bichos de pé; para diminuir coceira (prurido). A regra é esfregar a arnica com as palmas das mãos, massageando firme até sentir um aquecimento pela fricção, repetindo-se algumas vezes a operação com novas porções de arnica. Acreditam que o calor citado faz a arnica entrar na pele e não exatamente secar. Isto garantiria sua eficácia. Por vezes, quando o dolorimento é grande, usa o povo o estratagema de fazer uma compressa com arnica sobre a área afetada. 

O uso interno até o povo desaconselha por considerar a arnica "muito quente", isto é, tóxica, produzindo efeitos colaterais indesejáveis e prejudiciais. Contudo existem exceções muito parcimoniosas de que a cultura popular se vale: quando de um tombo forte, que se bateu o peito no chão, deixando persistente dor nas costelas, usam pingar três gotas de arnica num miolo de pão e ingerir, ou numa colher cheia de açúcar, molhando-o. Isto se mantém por alguns dias até o alívio. 

Mais que um simples uso homeopático nos meios populares, a arnica tem um caráter de erva sagrada ou votiva. É costume na região colher a arnica na Semana Santa, ocasião de prepará-la para servir ao ano todo, só substituída por outro preparo nas endoenças do ano subsequente. Já por isto, sobem as pessoas às encostas serranas e junto às altas pedreiras a colhem em ramos para uso próprio ou para venda. Diante das igrejas históricas vemos os vendedores de arnica nessa ocasião, expondo-as em balaios, carriolas, sacos estendidos e bancas, enfeixadas em pequenos molhos. De ordinário, além da arnica, surgem então à venda outras plantas específicas como congonhas, alecrins, manjericão. 

Até mesmo os altares são ornados com arnica; e, não bastasse, os andores do Senhor Bom Jesus dos Passos e de Nossa Senhora das Dores. Após as cerimônias, o povo acorre a pegar um raminho desses, tido como bento, sagrado, curativo poderoso. 

Entre os médiuns dos terreiros a arnica é considerada uma erva de Oxalá. O roxo de suas flores se evidencia sobretudo na época da Semana Santa e esta é a cor da quaresma, da penitência, do Senhor dos Passos e da Senhora das Dores. Assim as religiões de matriz africana se somaram na contribuição de elementos culturais em torno da arnica. Por conseguinte, o banho com arnica é recomendado para descarrego e firmeza na linha de Oxalá (**). 

E tudo isto é algo muito arraigado ao costume popular. Passa de geração em geração como sabedoria do povo. Pois, desde pequena, a criança é levada pelos pais à igreja para as cerimônias tradicionais e na volta tem seu contato com esta cultura; aprende a usar; ensina, transmite. O pescador leva no embornal uma garrafinha com arnica porque pode precisar no mato; as senhoras a tem num canto do armário, sempre de prontidão para acudir a necessidade de um filho traquina ou de um neto serelepe. O umbandista se sintoniza com o sagrado ao banhar-se com uma infusão aquosa de arnica, ou tendo-a seca, a põe sob brasas gerando um incenso significativo. O humilde raizeiro ganha seu trocado extra graças a esta cultura. 

A arnica por seu valor etnográfico merece uma atenção especial, tanto em termos de proteção enquanto espécie, quanto em termos de estudo das propriedades medicinais. E quando citamos proteção não é mera força de expressão. A lista da flora mineira ameaçada inclui várias espécies de Lychnophora, dentre as quais a nossa arnica, Lychnophora passerina, que por ter área de ocorrência restrita e habitat degradado é considerada espécie vulnerável, segundo critério de classificação da IUCN (União Internacional para Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais). Pelas razões expostas, os habitats regionais merecem toda atenção, seja na Serra de São José seja na do Lenheiro, considerados todos os seus contrafortes. No Lenheiro pode ser encontrada na área oficial de seu Parque Municipal e mesmo fora dele, sugerindo ampliação de sua área para garantir proteção a esta espécie.

Por fim, como sempre este blog assim procede, é o valor folclórico da medicina popular que interessa a esta página eletrônica. Não recomendamos qualquer forma de uso pelos eventuais riscos à saúde que pode gerar. 

1- Arnica: flor roxa típica na mão comparada a uma rara, de flor branca.
Serra de São José (Tiradentes/MG).  08/03/2016. 

2- Arnica, Lychnophora passerina.
Serra de São José (Tiradentes/MG).  18/03/2015. 

3- Arnica de outra espécie na Serra do Lenheiro.
(São João del-Rei/MG). 01/08/2015. 

4- Arnica de uma terceira espécie.
Serra de São José (Tiradentes/MG). 18/03/2015. 
5- Lychnophora uniflora.
Areão, Serra do Lenheiro (São João del-Rei/MG). 09/07/2013. 

Notas e Créditos

* Segundo a Wikipedia. 
** Também são consideradas nesta região como ervas de Oxalá: boldo comum, boldo do Chile ("tapete de Oxalá"), rosmaninho, alecrim de horta, quaresmeira. Todos tem flores roxas. Leia neste blog: ROXO, A COR DA PENITÊNCIA.
*** Texto e fotografias: Ulisses Passarelli
**** Agradecimentos ao companheiro de jornada nas serras, Luís Antônio Sacramento Miranda, a quem ofereço esta postagem. 

Referências na Internet

Arnica. In Wikipedia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Arnica) - acesso em 06/07/2016, 07:56h
Lychnophora. In: Wikipedia (https://en.wikipedia.org/wiki/Lychnophora) - acesso em 06/07/2016, 07:56 h
ALVES, Ruy José Válka, KOLBEK, Jirí. Summit vascular flora of Serra de São José, Minas Gerais, Brazil. 2009. In: Check List: Journal of species lists and distribuition (http://www.checklist.org.br/getpdf?SL112-08) - acesso em 06/07/2016, 08:01 h
Lista das Espécies Ameaçadas de Extinção da Flora do Estado de Minas Gerais. Deliberação COPAM 085/97. (http://www.biodiversitas.org.br/florabr/mg-especies-ameacadas.pdf) - acesso em 07/07/2016, 08:12h
Listas Vermelhas das Espécies da Flora e da Fauna Ameaçadas de Extinção em Minas Gerais (2008). Fundação Biodiversitas (http://www.biodiversitas.org.br/publicacoes/) - acesso em 07/07/2016, 08:22h 

sábado, 2 de julho de 2016

Coração Ferido

Nesta septingentésima postagem, expomos um conto religioso colhido em Santa Cruz de Minas, pelo final da década de 1990 (*), cujo roteiro versa sobre ciúme, crime e milagre. Na simplicidade e objetividade da narrativa, uma série de valores do ideário cristão são expostos, em linguagem acessível ao plano catequético não oficial. Em outras palavras, através da narrativa, o narrador transmite o horror à violência, o peso do machismo, a doença do ciúme, a cegueira da imaginação patológica e por fim, coroando tudo, o milagre, em cuja reticência deixa antever a possibilidade da conversão e do arrependimento, que em similitude à redenção dada pelo próprio Cristo, vem a preço de sangue. 

Interessante observar que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus é relativamente nova na cultura popular; mas bem o vemos, através deste exemplar da literatura oral, que já deixa seus reflexos na folclore da região. 

Os contos religiosos são profundamente arraigados ao cotidiano do povo, como parte de seu universo de saberes e como elemento simbólico de transmissão da moral cristã, como modelo necessário de vida em sociedade, contra o qual, tudo que se insurge, cai por terra, de uma forma ou de outra. Através do conto popular, nos intervalos do trabalho doméstico, ou no campo, ou na oficina, ou na noitinha, hora de tranquilidade, à beira do fogão à lenha, ou da fogueira no rancho de boiadeiros e tropeiros, o mais velho transmitia ao mais novo, o pai ao filho, a mãe à filha, a madrinha ao afilhado e assim por diante, dentro deste código de linguagem, o saber inerente ao comportamento padrão, que agrada a Deus e que por conseguinte é premiado com o poder sobre-humano da graça e do milagre, quando tudo parece perdido e insolúvel. 

Sem dúvidas, o conto contrapõe humildade/lealdade de um lado e violência/domínio de outro, tendo a devoção como fulcro e fator decisivo para o desfecho da estória, que, em suma, tem um objetivo catequético e educador, quando analisada no contexto familiar e comunitário em que ocorrem estes tipos de narrativas. 

* * *

Havia uma mulher devota, dotada de espírito de bondade, direita, corretíssima, piedosa, benevolente, de fé inabalável, que vivia muito bem com seu marido, na paz do matrimônio consagrado, mas este, secretamente, desconfiava que a esposa o traía. 

Certa vez o homem disse que ia viajar e despediu-se da mulher; mas era mentira. Tinha uma plano para provar a si mesmo que a esposa era infiel. Escondeu-se no quintal e ficou observando se algum homem entrava em sua casa. 

E ficou o dia todo oculto e nada viu. A noite decidiu entrar em casa. Seu coração maldoso o impulsionava... sua mente doentia imaginou um amante em sua cama. Quem sabe, talvez, algum homem teria entrado na casa pelo lado oposto e estava deitado com ela? 

Pegou uma faca, entrou pé ante pé, em absoluto silêncio, levantou rápido o lençol e fincou a arma no coração da mulher. Mas ela estava sozinha na cama... Não havia mais ninguém e o peso de seu crime hediondo sacrificou-lhe imensamente a consciência. Aturdido, saiu desesperado a chorar, sem rumo, para longe dali. 

No dia seguinte voltou cabisbaixo. Qual não foi sua surpresa quando viu a esposa viva, normal, sem qualquer marca do golpe que dera e o fato milagroso e inexplicável o deixou ainda mais apalermado quando viu a faca do crime cravada na imagem do Sagrado Coração de Jesus que estava sobre a cômoda do quarto, bem em seu peito, do qual escorria sangue vivo... 

Detalhe da bandeira da Folia do Sagrado Coração de Jesus.
Colônia José Teodoro (São João del-Rei/MG), junho/2012. 

Notas e Créditos

* Informante: Elvira Andrade de Salles, Santa Cruz de Minas, 1996
** Texto, fotografia e acervo: Ulisses Passarelli