Bem vindo!

Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




quarta-feira, 29 de agosto de 2012

História dos Congados de São João del-Rei

Congados e Festas do Rosário de São João del-Rei: esboço histórico

(ofereço com gratidão ao prof. Nelson Antunes de Carvalho e à memória do músico Antônio Geraldo do Reis e do capitão de congado Luís Santana)


            Historiar os congados é tarefa quase infrutífera. O pesquisador recorre a muitas fontes escrita mas quase somente nas orais encontra algo que lhe possa valer. Os registros antigos em documentos e jornais são raríssimos. Não que os congados fossem raros; pelo contrário, supõe-se. Ocorre que a imprensa e os escritores em geral, ainda eivados de uma ótica colonialista, não lhes davam a devida importância no cenário cultural. Não o achavam digno de figurar em qualquer página.
            A mentalidade geral considerava que as manifestações folclóricas eram um atestado de atraso, um indício de subdesenvolvimento. Por isso mesmo eram repelidas. Se então tivessem em sua composição uma nítida marca cultural africana, como no caso dos congados, no passado uma dança dos escravos, aí então o desprezo era ainda maior, pois somava-se o racismo e a discriminação e elas ganhavam o carimbo de costume bárbaro.
Os escravos em São João del-Rei se congregaram na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos, fundada em 1708. Em 1719 os irmãos do Rosário começaram a erigir sua igreja, benta pelo Vigário da Vara, Padre Manoel Cabral Camelo.
            Pouco se sabe em verdade do teor dos festejos pretéritos, haja vista as dificuldades de pesquisa.
Antônio Gaio Sobrinho noticiou acerca da “Nobre Nação Banguela”, do fim do século XVIII e começo do seguinte. Era uma associação de negros, que possuía casa própria, chamada palácio e que reunindo associados sob cargos tais como rei, capitão, duque, marquês, mestre de campo e vassalos, tinha finalidade assistencial e possivelmente festiva, talvez ligada aos então chamados "Folguedos da Praia", raiz de nossos congados atuais.
            O termo banguela ou benguela tinha dois significados:

1)                  étnico: referia-se a um grupo de africanos que tinha desde a infância o hábito de limar os dentes, um pouco a cada época, de tal sorte que com os anos o dente já estava bem curto, o que era um diferencial estético em sua cultura. Daí ficou na expressão popular o termo banguela no sentido pejorativo, usado para designar qualquer pessoa desdentada, no todo ou em parte;
2)                  aduaneiro: benguela era qualquer escravo embarcado no porto de São Felipe de Benguela (Angola), sob o domínio português, independente de sua etnia.

               O historiador Cintra informa que em 02/04/1866 “a Irmandade paga a Joaquim Francisco de Assis Pereira seis mil réis pela pintura da bandeira para o mastro. Todos os anos, por ocasião dos festejos do Natal, a Irmandade requeria à Câmara licença para o levantamento do mastro.”
              O primeiro número do jornal “Arauto de Minas” informa que o Rei de 1877 foi Domingos F. de Sampaio e o Provedor o Padre J. G. Barbosa. É sintomático o estreito controle eclesiástico pela presença de um sacerdote ocupando o mais importante cargo administrativo da confraria.
            Neste município, a norma oitocentista não consentia apresentações livres (como são as dos congados). Eram impostas condições pelo Código de Posturas e previa-se multa de 30$000 para a transgressão e 8 dias de cadeia em caso de reincidência:

Todos que quiserem representar comédias e fazer outros divertimentos para seu interesse (á exceção de presépios), que ficam absolutamente prohibidos e poderão fazer nos lugares publicos ou casas particulares, contanto que não offendam a moral e aos costumes, precedendo licença da camara e consentimento da autoridade policial, a quem será previamente apresentado o programa, mediante o imposto que para esse fim estiver estabelecido.

Fica claro a falta de liberdade para que dançassem rua afora como vemos hoje, exceto sob expressa autorização da edilidade.
O jornal “O Resistente” publicou esta interessante notícia no fim do século XIX:

Em vista da proposta da Mesa Administrativa do SS. do Rosário desta cidade, o Exmo. e Revdm. Sr. Bispo, Vigario Capitular, mudou o nome de Rei e Rainha, com que se designavam as primeiras dignidades d’aquella corporação para o de Prior e de Prioriza, passando consequentemente a Sub-prior e Sub-prioriza o Provedor e Provedora. Foi um dia o proprio Rei do Rosario!... O que dirá a isto o revdm. Poeta Corrêa de Almeida? O notavel é que o irmão de cujas mãos cahiu o ceptro, nosso amigo Severiano de Rezende, em quem extinguiu-se o Reinado, está constituindo o primeiro que goza do titulo de prior da confraria. Pelo que não se pode dizer que foi Rei desthronado. É um redivivo! ... Seja como for, approvamos a reforma; porquanto tal dignidade religiosa, que em tempos idos se justificava pela existencia do Reinado ou Congado - hoje uma excrescencia de significação intoleravel.

          Este texto tem especial importância por revelar um momento de mudança na estrutura folclórica da Festa do Rosário, em que, abolida a escravidão, os cargos honorários reais perderam o sentido pretendido pela Igreja. Havia nesse tempo uma espécie de repulsa às manifestações folclóricas, consideradas então indicadoras atraso de uma cidade. Além disto, parece que há um quê de racismo e discriminação nesta mudança. Notar a expressão de intolerância ao congado, que se não fora desativado, ao menos se afastara desta igreja.
            Informações orais dão conta que a mudança de termos não foi acatada na prática, pois continuaram a se chamar os personagens sob os nomes antigos.
           Mais tarde, nas décadas de 1930-40 houve o grupo de Congo do Capitão João Lopes, sediado na Rua Maestro Batista Lopes (a tradicional Rua das Flores), disputando a primazia com outro Congo coetâneo, este do Capitão José Francisco, da Rua São João, Bairro Tijuco. A festa deles era na primitiva Capela da Conceição, hoje Matriz de São José Operário, mas vinham cantar no Rosário em dia de festa, conquanto sem o esquema festivo do passado, informou-me o alfaiate, tenor e violinista, o saudoso sr. Antônio Geraldo dos Reis. Ele se lembrava de um significativo hino ao Rosário, cantado por João Lopes: 

Nós estamos pedindo ao terço
Nossa Senhora do Rosário
O terço de Maria
O terço é nossa alegria
É a nossa proteção.
Derrubou o inferno no chão
Pedindo a Nossa Senhora
Feliz de todo homem
Nós rezamos o terço
Para ser a nossa guia.
Que vive com o terço na mão.
Temos a sua proteção.



Senhora do Rosário
Infeliz do pobre homem,
Virgem do Rosário,
É a nossa proteção.
Que o demônio perseguia,
Chamamos com fervor;
Valei-me nesta hora
Por não trazer consigo
Com o vosso rosário
De tão grande aflição.
O Rosário de Maria.
Nós seremos vencedor.


             Outro conhecedor da vivência desses dois grupos foi o funcionário publico estadual, Capitão de Congado (Catupé) nesta cidade, Luís Santana. Sr. Luís aproveitou no seu grupo pelo menos três cantigas do João Lopes: 


1-
Oi, Nossa senhora!

Oi, Santa Maria!

Adoro essa santa,

Porque ela é nossa guia.


2-
Lá no céu Adão,

Ao romper do dia,

Quero ir lá no céu,

Nos pés da Virgem Maria.


3-
Oi, quem manda no mundo é Deus!

Oi, quem manda no mundo é Deus...

Ai, Nossa Senhora!

Ai, Nossa Senhora...


Luís narrava-me com muita admiração os feitos desses dois capitães do passado mas dizia-me que José Francisco não podia com o João Lopes. Este, no dizer de meu informante era um negro já idoso, baixo, magro, muito gentil, educado, airoso para dançar, munido de uma bengalinha fina. Seu grupo era bem trajado de branco, com saiotes e fitas do capacete azuis. Conhecia muito bem os mistérios da capitania do congado e certa feita, sentindo-se desafiado por José Francisco pela primazia de tocar em frente à Igreja do Rosário, chegou primeiro com seu grupo, pois era sediado ali perto e fazendo rezas fortes que conhecia na entrada das ruas que dão acesso ao templo, espiritualmente cercou o caminho ao Congo "rival". Quando José Francisco veio subindo pela Biquinha batendo as caixas e ia tomar a Ponte do Rosário, foi de súbito atacado por um enxame de ferozes marimbondos (vespas) e espavorido foi obrigado a se retirar com sua turma.

Catupé do sr.Luís Santana (com saiotes!) dançando em frente à Capela de São Dimas em foto de autor e data não identificados, gentilmente cedida para reprodução pelo referido capitão. 

Narrações deste tipo são em verdade comuns no universo mítico do congado.

Ainda Luís Santana costumava cantar com seu catupé como presenciei num a festa em seu bairro, invocando as almas dos velhos capitães falecidos ("Capitães de Areia"), para ajudá-lo em sua tarefa, acreditando quer suas almas durante a Festa do Rosário gozavam de licença espiritual para acompanhar os grupos, ajudando o bom andamento daqueles que deles se lembravam:

Êh, João Lopes!
Êh, João Lopes!
João Lopes, Zé Francisco!
João Lopes, Zé Francisco!

Êh, Barnabé!
Êh, Barnabé!
Carioca, Capitão!
Carioca, Capitão!

            Ora, mas, voltando aos fatos, extintos estes velhos congos tijucanos não se tem notícia de mais congados na Igreja do Rosário. 


Catupé do Capitão Luís Santana em setembro de 1982 ao lado da Igreja de São José Operário, no Tijuco. 
Foto de autor não identificado cedida pelo referido capitão para reprodução. 

           Outra informação oral, pelo sr. Nelson Antunes, dá conta de que num passado anterior à década de 1950, quando já não estavam ativos os congos supra-citados, os congados que vinham àquela igreja em dia de festa tocavam apenas de fora, sem entrar. Porém, um grupo por vezes deixando de fora os instrumentos, ia em vigília para o interior, se alternando na reza do terço. Da procissão participavam sem tocar.
        Constatei que os grupos atuais festejam noutros locais. A Festa do Rosário do centro da cidade não tem mais características folclóricas e se distanciou totalmente da cultura afro-brasileira, muito embora a recíproca seja verdadeira. Persistem os cargos Rei e Rainha Perpétuos, Rei e Rainha de Honra. Estes últimos saem na procissão levando a coroa na mão.


Reinado na Festa do Rosário de 1960 no Bairro São Geraldo, São João del-Rei/MG, vendo-se além do casal real a Juíza de Vara (sentada ao do Rei), e dois Capitães de Congado: entre os coroados, Altamiro Ponciano (com tamborim na mão) e à direita, "João Jacaré" (com a bandeira), de um terno de catupé visitante, de Resende Costa/MG. 
Foto de autor não identificado, gentilmente cedida para reprodução por Altamiro Ponciano. 

Fora da cidade, a única notícia antiga escrita que localizei, foi sobre o festejo na vila do Rio das Mortes: um texto intitulado “Festa de Congado”, assinado por Tancredo Braga, no jornal “O Correio”, n.602, de 23/04/1938. No Rio das Mortes, distrito de São João del-Rei, o congo ainda hoje persiste bem preservado. Atualmente apenas este grupo participa da festa, mas o texto prova que outrora eram vários congados. Por suas palavras se fica sabendo da tentativa eclesiástica de acabar com essa tradição: “Dom Helvecio, nosso respeitavel arcebispo, há tempos, em pastoral collectiva, recommendou aos sacerdotes de Minas Geraes, para que empreguem esforços no sentido de extinguir-se a Festa do Reinado.”
          Dom Helvécio Gomes de Oliveira foi o mesmo arcebispo que suspendeu a Festa do Divino nesta cidade, em 1924. Estava profundamente arraigado ao ideal romanizador da Igreja e não poderia conceber o valor do folclore para o processo da evangelização e da formação social.
            Assim sendo poucos registros escritos ficaram da existência dos congados e suas festas de outrora. É de fato pela memória dos congadeiros, que há possibilidade de obter alguma informação. Diante deste fato, é fácil constatar que o congado sobreviveu como fator de resistência, teimosamente, contra todos os reveses, qual uma bandeira de luta contra a extinção da cultura popular, sobretudo da afro-brasileira.
           

Referências bibliográficas

CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. 2.ed. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1982.

Código de Posturas da Câmara Municipal da cidade de São João del-Rei, 1887.

GAIO SOBRINHO, Antônio. São João del-Rei: 300 anos de histórias. 2006. P.160.

Referências hemerográficas

Arauto de Minas, n.1, 08/03/1877
O Correio, n.602, 23/04/1938.
O Resistente, n.63, 04/09/1896

Referências orais (informantes)

- Antônio Geraldo dos Reis, 1993, Águas Férrea, Bairro Tijuco, São João del-Rei / MG.
- Nelson Antunes de Carvalho, 2008, Centro, São João del-Rei / MG.
- Luís Santana, 1995, Bairro São Dimas, São João del-Rei/MG. 

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Sobre este tema ver também: Lista de Congados desativados em São João del-Rei

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Folia de Reis de Ibertioga




Folia de Reis de Ibertioga / MG, em apresentação durante o 
Festival de Carros de Boi naquela cidade, em julho de 1991.  

Notas e Créditos

* Texto e fotografia (1991): Ulisses Passarelli.

sábado, 25 de agosto de 2012

Festa do Rosário na Restinga

A comunidade da Restinga, distrito de Ritápolis se agita todo o ano em setembro e recebe muitos visitantes das comunidades vizinhas por ocasião dos festejos em honra ao Rosário de Maria, sediado na Capela de São Sebastião. 

O tradicional congado do lugar tem o comando do respeitado Capitão Sebastião Ezequiel, evidenciado nas fotografias abaixo. Este grupo como anfitrião recebe as guardas visitantes vindas de vários lugares. Por sua vez o congado da Restinga retribui a gentileza da visita e com frequência é visto nas festas na sede do município, em Resende Costa, no Ramos, em São João del-Rei e outros locais. 

A Restinga também é tradicional no costume das folias de Reis, contando com animado festejo em janeiro. 



Notas e Créditos

* Fotografias (1996), acervo e texto: Ulisses Passarelli




quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Marujos de Dores de Campos

Dores de Campos, primitivo Arraial do Patusca, é município da Mesorregião Campos das Vertentes, Microrregião de São João del-Rei, terra que tem extenso domínio sobre o trabalho em couro, selaria, artesanato, produção de renomados calçados. 

Além das folias de Reis tem também esta "Banda de Congado Nossa Senhora do Rosário", a única guarda de marujos desta microrregião. Os marujos são mais típicos da área a leste, a partir da Microrregião de Barbacena para a Zona da Mata e área metropolitana. 

As festas do Rosário nessa cidade acontecem em outubro. 

"Banda de Congada Nossa Senhora do Rosário", guarda de marujos
de Dores de Campos/MG, durante a Festa do Rosário nessa cidade.

Notas e Créditos

* Texto e fotografia (23/10/2010): Ulisses Passarelli.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Dia do Folclore

Dia do Folclore



Foi num remoto 22 de agosto que o inglês Willian John Thoms, sob o pseudônimo de Ambrose Merton, publicou no jornal londrino O Ateneu, um artigo acerca das tradições populares usando para designá-las o neologismo FOLK-LORE, que se tem traduzido por sabedoria popular ou conhecimento do povo. 

Corria o remoto ano de 1846. 

Até então não havia uma palavra unificadora como esta e daí em diante, pouco a pouco os estudos das tradições ganharam força, sobretudo nos primeiros anos do século XX, com importantes nomes. No Brasil, dentre tantos, lembro com admiração de Sílvio Romero (o Pai da Folclorística Nacional), Melo Morais Filho, Amadeu Amaral, Mário de Andrade, Luís da Câmara Cascudo, Renato Andrade, Edison Carneiro, José Sant'Anna, dentre tantos outros abnegados folcloristas, do passado e do presente, que de forma missionária vem se dedicando à causa de conhecer, estudar, passar ao público a importância preservacionista, na contínua busca de melhorias para as condições de sobrevivências das formas tradicionais de cultura popular. 

Fica consignado nestas modestas observações minha grata homenagem a quantos se identificam e irmanam no folclore, como portadores, estudiosos, defensores e admiradores. O esforço coletivo dessas pessoas, cada um da sua forma e dentro de seus limites é que possibilitou que chegasse até o dia atual toda a imensa riqueza de técnicas populares, uma vastidão de saberes, o encanto dos ritmos e danças, as formas e possibilidades do artesanato, os sabores da culinária regional típica, o universo das narrativas populares, o linguajar característico de cada região. 

Que o folclore porém não seja lembrado apenas nesta data comemorativa. Que seja vivenciado no dia a dia e oxalá, possam nossos professores aproveitá-lo melhor no processo didático e os gestores da cultura se sensibilizem para voltar ao folclore maior atenção e valor.

* Texto, fotos e montagem: Ulisses Passarelli.
** Para se informar mais sobre a abrangência do folclore ler neste blog a postagem abaixo lincada: 

 FUNDAMENTOS DO FOLCLORE

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Cartaz da Festa do Divino em São Gonçalo do Amarante

No ano de 2006 na vila de São Gonçalo do Amarante (ex Caburu), São João del-Rei, aconteceu uma festa em honra ao Espírito Santo promovida pelos foliões do lugar, sobretudo sob a direção de Sininho e Vavá, com alvorada, celebração da santa missa, leilão de bezerros e prendas, encontro de Folias do Divino, procissão e bênção do Santíssimo Sacramento, se encerrando com típico foguetório. 

O encontro das folias foi bastante significativo. A folia local, chefiada pelo Mestre Lourival Amâncio de Paula, recepcionava às visitantes que vieram da sede do município e a seguir, recebido o café de costume, partiam em visita às residências levando alegria e bênçãos. 

A apresentação geral se deu no coreto ao centro do largo, transcorrendo pacificamente em espírito de união e irmandade. 

Infelizmente, contudo, esta festa não voltou a acontecer. 


Cartaz de Festa do Espírito Santo,com apresentação de folias do Divino.
São Gonçalo do Amarante, ex Caburu (São João del-Rei / MG). 

Notas e Créditos

* Texto e foto: Ulisses Passarelli

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Congado de Coronel Xavier Chaves


1- Participação na Festa do Divino na Igreja de Matosinhos em São João del-Rei.
A fotografia mostra o momento da saída da procissão, puxando o imperador. 31/05/1998. 
2- Ao centro da foto, com o pandeiro, o 1º Capitão José do Rosário Anacleto; à sua direita o
2º Capitão, Tarcísio Balbino da Silva; à esquerda o Capitão Meirinho Abílio Loc.
Festa do Rosário, Bairro São Geraldo, São João del-Rei, 1995.
3- Dança dos caixeiros.
Festa do Rosário no Ramos (Ritápolis), 1996.  

4- Dança dos caixeiros. 
Festa do Rosário no Ramos (Ritápolis), 1996.
Notas e Créditos

* Texto e fotografias 2, 3 e 4: Ulisses Passarelli.
** Fotografia 1: autor não identificado

sábado, 18 de agosto de 2012

Pastorinhas inspiram trabalho com folclore em Santa Cruz de Minas

As informações sobre o assunto do título procedem de 1998 e me foram passadas por "Cida Salles" (Maria Aparecida de Salles Passarelli), minha esposa, conforme assistiu em sua infância, com o reforço de informações gentilmente prestadas pela organizadora. As informações levantadas, mesmo fragmentárias, indicam que este trabalho tinha objetivo didático, a nível de ensino pré-primário, no âmbito da Escola Estadual Amélia Passos, organizado pela professora Carmem Lúcia, aproximadamente em 1982-3.

Por oras só é possível informar sobre duas personagens. A Florista era representada por uma menina com vestido rodado, de aspecto singelo, tecido estampado de flores miúdas, tipo “Mamãe Dolores”, coberto de avental. Carregava um cesto cheio de flores. De andar faceiro, de um lado a outro, balançava-o, fingindo caminhar pela rua a vender flores. Um menino de calça, camisa e suspensório, com ela contracenava, enlevado ingenuamente. Cantavam em idílio:

- Eu sou a Florista,
- Se tu queres flores,
flores estou vendendo!
passa-me um tostão!
- Venha cá menina,
- Não quero flor nenhuma,
que por ti estou morrendo...
quero é teu coração...

Em “se tu queres”, acenava com o indicador com ar de aviso e em “passa-me” abria a mão pedindo o dinheiro. O menino na negação indicava com o dedo e depois punha a mão no peito, no coração. A música era idêntica à dos mesmos personagens que exitiam no grupo São João del-Rei, do Conjunto IAPI (Bairro das Fábricas), organizadas por “Dona Glorinha” (Maria da Glória Viegas da Silva). Porém neste, a parte do garoto era feita pelas Pastoras em coro, quebrando um pouco a sugestiva espontaneidade da cena. Portanto, em Santa Cruz, a dramatização deste episódio era mais natural.


As Borboletas tinham cores identificadoras nos trajes: colã e saiote, este de papel-crepon, antenas e asas postiças, de material translúcido. Eram quatro, cada uma de uma cor: amarela, verde, azul e branca. As crianças formavam um círculo, com as Borboletas ao centro. Durante o refrão (primeira quadra abaixo), dançavam abanando as mãos como que imitando o bater de asas. Nas quadras solistas, conforme a cor especificada, a respectiva Borboleta se destacava das demais para cantá-la, voltando depois ao refrão. Por fim uma estrofe coletiva.
        
Borboleta bonitinha,
Eu sou a Borboleta,
saia fora do jardim,
azul da cor do céu,
vem cantar para as crianças
eu vivo entre as flores
nesse dia tão feliz!
procurando doce mel!


Eu sou a Borboleta,
Eu sou a Borboleta,
amarela da cor do ouro,
branca na cor da paz,
eu vivo entre as flores,
eu vivo entre as flores
procurando meu tesouro!
procurando brisa leve!


Eu sou a Borboleta
Nós somos Borboletas,
verde da cor da mata,
Borboletas multicores,
eu vivo entre as flores,
saudando a primavera
procurando mil sabores!



É importante frisar que trabalhos como este são altamente louváveis e dignos de aplausos, e que sejam feitos por muitos professores, porquanto, a riqueza cultural encontrada no folclore, nas tradições do povo, na cultura popular enfim, fornece rico material não só para pesquisa mas também para ação didática, que sem dúvidas contribui para a formação do saber.


                    Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli

primavera do Brasil!  



sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Pastorinhas das Águas Férreas

As fotografias a seguir, de janeiro de 2001, flagram um momento tradicional do ciclo natalino são-joanense: a visita das pastorinhas. O grupo em questão vinha das Águas Férreas, no Bairro Tijuco, para cantar diante da Igreja do Carmo. Dali, como de costume, seguia para o Mercado Municipal onde eram sempre bem recebidas, cantando de banca em banca; por fim, visitavam as casas das imediações, até na área do Cassoco. 

Sob a coordenação da Mestra "Dona Júlia" e inestimável ajuda de seu esposo Geraldo Elói, este grupo marcou época em São João del-Rei desde os anos setenta. Ainda se apresentou na Festa do Divino de 2009, mas desde então, infelizmente, encontra-se desativado. 






Notas e Créditos


* Texto, acervo e fotografias: Ulisses Passarelli

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Folia Embaixada Santa



Folia de São Sebastião "Embaixada Santa". Folião e Embaixador: Luís Carlos Rosa.
Bairro Araçá, São João del-Rei / MG. Cantoria antes de sair à rua para o começo de um giro.


Notas e Créditos

* Texto, edição e acervo: Ulisses Passarelli
** Vídeo: Cida Salles, 10/01/2011.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

A Nova Encomendação de Almas

(Ofereço a Francisco José de Rezende Frazão) [1]  

         Era costume na vila de São Gonçalo do Amarante, distrito de São João del-Rei, o rito da encomendação pela quadra quaresmal, emitindo a altas horas cantos lúgubres em sufrágio das almas do purgatório. Ao som da matraca o clima era tenebroso, eivado de medos de toda sorte, de assombrações variadas, pelo que ninguém se atrevia a espiá-los pelas frestas da janela.

         Desse grupo antigo nada sobrou senão os cantos memorizados por antigos moradores. Os velhos praticantes morreram ou se mudaram para a cidade. A falta de renovação aliada às mudanças sociais sacrificou esta tradição. Notícias a respeito já foram publicadas como parte de minhas pesquisas sobre este distrito.

         Contudo, na quaresma de 2008, o leiteiro Ednei Sebastião de Oliveira, Ministro da Comunhão, auxiliado por abnegados companheiros, atendendo aos pedidos dos moradores, restituiu o ritual com os mesmos cantos mas com nova fisionomia. No ano seguinte fui acompanhar a Encomendação e desta observação procedem as presentes informações.

         O grupo se reuniu dentro da igreja pelas 19 horas. Vários moradores vieram acompanhar. A Irmandade do Santíssimo Sacramento esteve presente com suas opas vermelhas e lanternas de prata, ladeando o irmão cruciferário. O organizador deu abertura com uma prece e a seguir leu uma passagem bíblica e dela fez breve explanação. A seguir convidou todos a acompanhar com espírito de recolhimento e ressaltou que ninguém fosse com superstição pois assombrações atrás da encomendação não existiam, isso era crendice do passado.

         Saíram à rua com o barulho seco da matraca. Os dedos nas contas do terço rezaram primeiro uma via-sacra, fazendo estações diante de casas pré-estabelecidas, que já abertas, com os moradores à dianteira assistindo tudo, dispunham imagens na fachada e alpendre, quadros de santos, toalhas de qualidade, jarras floridas. Entre os mistérios cantos católicos assaz conhecidos.

         Vencida a via-sacra, chegaram ao portão do cemitério e diante dele, começaram a encomendação propriamente dita, com os mesmos cantos antigos e seguindo o ritual à semelhança, que só não se completou porque a chuva desabou com vigor obrigando o retorno antecipado à igreja, onde se concluiu o ritual com a reza do fim e a entrega, todos ajoelhados muito respeitosamente.

         Sob o olhar puritano ou apenas preservacionista, a balança do julgamento iria considerar descaracterizada a nova encomendação. Contudo é preciso entender que os tempos mudaram e ninguém o fará voltar. A encomendação à moda colonial se foi, porque os assombros que a ambientavam foram banidos pela modernidade. No novo contexto social ela não acha espaço nem função. Sua pequena dinâmica foi incapaz de sustentá-la.

         Ora a nova encomendação veio com os cantos originais, a matraca inseparável, um respeito irrepreensível, repleta de devoção e fé nas almas, ofertando-lhes preces, enfim, seu objetivo central, porém revelando a ausência de superstições, como convém a um Ministro da Comunhão e aliada à via-sacra, que lhe serve de sustentáculo. É de se pensar se teria êxito hoje aquela encomendação do passado num tempo moderno. O segredo da vivência do folclore é o seu poder de adaptação e não a capacidade de se manter intocável. Ednei enxergou isto e eis aí seu fruto, digno de louvor, repetido aliás em 2010.
           
Grupo de via-sacra e encomendação na vila de São Gonçalo do Amarante, 2009.

Notas e Créditos

(*) Texto e foto: Ulisses Passarelli




[1] - Neste dia de observações, Frazão me acompanhou a São Gonçalo, numa visita que teve seu lado pitoresco por ter sido realizada de bicicleta, com parada na travessia do Ribeirão do Brumado. Voltamos tarde, debaixo de chuva, estrada de terra, muito precária e escura. 

terça-feira, 14 de agosto de 2012

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Moçambique de Ibertioga

Todos os anos em Ibertioga/MG, durante o mês de julho, acontece concorrido festival de carros de bois, que congrega muitos elementos típicos da vida rural e sem dúvidas valoriza a cultura rural. Outras atrações se juntam para abrilhantar a festa, tal como a folia de Reis e o moçambique de varas (bate-paus) do lugar, grupo tradicionalíssimo que se retrata nas fotografias abaixo, de julho de 1991. 

1- Moçambique de Ibertioga, sob a bandeira de Nossa Senhora do Rosário.

2- Moçambique de Ibertioga , sob o toque da caixa de guerra. 


Notas e Créditos

* Texto, acervo e fotografia 2: Ulisses Passarelli.
** Fotografia 1: David Passarelli.

domingo, 12 de agosto de 2012

Vida Rural


Crônica da vida na roça


Até meados do século XX, o meio de vida no distrito de São Gonçalo do Amarante (ex-Caburu), em São João del-Rei/MG, não se distanciava muito daquele dos tempos coloniais, exceção feita ao sistema produtivo que já não era escravista. Mas, por assim dizer, após a abolição e as transformações que se seguiram como conseqüência, ajustadas as novas condições de produção, com trabalhadores empregados nas fazendas e pelejando nos serviços “de meia”, além dos sitiantes, a economia local como que se estagnou, ou, em palavras mais otimistas, evoluiu muito lentamente.

Está óbvio que desta forma, se de um lado não havia um futuro de grandes expectativas para os moradores de São Gonçalo do Amarante àquela época, por outro, a estruturação social em comunidade estava bem preservada, longe da covardia capitalista, de tal sorte que possibilitava aos naturais daquele lugar manter à plena suas manifestações culturais, religiosas, relações sociais (de compadrio, de família, de amizade), relações de trabalho e transmissão de saberes.

O filho seguia ao pai. “Filho de peixe, peixinho é” ou “já nasce nadando...”, diz o provérbio popular.

Desta maneira, as crianças naquele ambiente de luta contínua pela garantia do sustento, do sem-fim de afazeres da roça, habituavam-se desde muito cedo ao trabalho pesado, ajudando aos pais em todas as tarefas e por conseguinte aprendendo-as. Tinham ao seu alcance o ensino fundamental do grupo escolar local. As menos afortunadas caíam na teia do analfabetismo.

Tinham nesse ensino e naquele que recebiam dos pais, bem como no exemplo dos avós, dos padrinhos, “dos mais velhos”, o mais rigoroso aprendizado moral, cívico, religioso, cultural e social. É neste aspecto que o trabalho dignifica o homem e não pelo irrisório valor da remuneração em si, frente ao contrapeso da carga horária, insalubridade, etc. Muitas vezes essas pessoas eram sofridas, devido às muitas necessidades; privadas de tantos direitos, mas sabiam como ninguém de seus deveres. Daquela geração não sairiam os bandidos e sacripantas que hoje infestam o país em pestilenta epidemia, mas sim homens de bem e mulheres de muito respeito, uns e outros, trilhando a vida em favor da família, para o trabalho e pela fé.

Essa hombridade, qual ponto de honra e moral, passou por gerações como sustentáculo da estrutura social. 

A comunidade tinha vida de subsistência. O roçado dos sítios e fazendas, a horta e o pomar dos quintais, o mel dos ocos das árvores, as pequenas criações domésticas, garantiam tudo que precisavam para viver. Na cidade só iam comprar o sal e o querosene. Lá vez por outra buscavam algum bem que o comércio de São João del-Rei dispunha e o dinheiro alcançava.

O excedente da produção era vendido para garantir algum dinheiro vivo. Mas não eram produções de fins plenamente comerciais. Os cargueiros (burros com balaios às costas), tropas e carros-de-boi carregavam até a cidade aquilo que sobrava na roça e voltavam trazendo algum trocado e o que por ventura faltava na zona rural. 

“Todo mundo” era católico. Servir a uma instituição ligada à Igreja era uma honra suprema, uma dignidade à mostra, uma prova de fé e obra cristã, mesmo que muitas vezes o retorno que os padres davam à população fosse quase nulo, numa nítida relação de exploração da boa vontade alheia, sob a égide do temor ao fogo do inferno, impresso por contínuos sermões acusativos, fazendo os pecados pesarem como rocha e para aliviá-los, nada melhor que o trabalho para a Igreja... A palavra eclesiástica era bastante emblemática neste sentido, sobretudo num período de ideologia romanizadora. 

A quaresma era o tempo de respeito maior. Todo abuso era evitado; as caçadas suspensas, bem como bailes e foguetórios. Não havia festa nessa época; só reza, em casa e na igreja. Vias-sacras e encomendações de almas ecoavam no largo gramado, ao som da matraca em detrimento do sino. Participar delas era um dos poucos pretextos para sair ao sereno na noite quaresmal. Era o tempo das tentações surgirem. Fantasmas andavam à solta para fisgar os incautos. Na Semana Santa então, o respeito era dobrado, sobretudo na Paixão do Senhor. Quem ousava trabalhar neste dia? Ir ao boteco... nem pensar. Bater um prego em casa? Jamais! Mas na Páscoa a alegria voltava à plena, com o judas explodindo na sua forca na árvore de embaúba e o boi-malhado correndo atrás da gurizada na praça, sob a música dos tocadores.

Em tempos bem remotos os enterramentos eram dentro da capela. Mais tarde veio o cemitério do adro, bem na sua frente. Por volta de 1946 foi construído um cemitério, apartando-se de vez os mortos para um campo santo reservado. Ainda assim, mesmo com sua ermida central, essas trocas de endereço indicam a crescente dessacralização. Por essa época o velho campanário externo e lateral foi demolido. O sino veio ocupar um lugar inadequado, pendente no vão de uma janela frontal esquerda. A velha construção de taipa trincou graças ao peso e movimento do sino, pois sem colunas ou vigas, não tinha estrutura para suportá-lo. A recente reforma consertou este equívoco.

Uma vez por mês o capelão vinha celebrar. A missa congregava os rurícolas com a melhor roupa que cada um tinha. A família vinha completa, a pé ou a cavalo, mas quase ninguém faltava. Finda a cerimônia, onde imperava o mais absoluto respeito, no largo da capela, o povo em burburinho aproveitava o ensejo para a conversa salutar, a confraternização, para traçar negócios de barganha (a troca de produtos era importantíssima), obter notícias, comentar a política.

Esta aliás, como sói acontecer no velho interior brasileiro, seguia pelo regime do coronelismo, que sempre houve por aí afora e em certa medida sobrevive algures mais ou menos disfarçado. 

Poucos entretenimentos tinha aquela gente. Pescar e caçar eram dos mais queridos e garantiam algo comestível para casa. Para alguns era o baralho eventual à noite dos fins de semana, uma rodada do barulhento truco; ou, quem sabe, uma talagada de pinga, recostado ao balcão da venda. 

O cardápio cotidiano era simples. Consistia na famosa “comida de roça”, tão decantada na cidade, cuja singeleza costumeira, elevou a fama da cozinha mineira ante o cenário nacional. Arroz, feijão, angu e uma verdura, ovo frito, torresmo ou carne, conservada na lata de gordura. Eis o prato genérico. Não havia luxo, mas, bom tempero. Não faltava o ponto certo do cozimento, segredo de outrora. Ah, e é claro, o “fogão-de-lenha”. Quitandas assadas nos fornos de barro eram das melhores. Com café, substituíam muito bem os balofos e caros pães bromatados das padarias modernas. Os horários para alimentação eram sempre muito mais cedo que na zona urbana, pois era premente madrugar para o roçado ou para o retiro. Serviço pesado, a fome aflige logo. 

A saúde se regia pela boa alimentação. A gordura de porco, que a medicina condena, era a sua saúde, bem como o ovo caipira e a manteiga gordurosa. Não ingeriam essa atual carga infindável de produtos artificiais, cheios de conservantes e outras químicas terríveis, estas muito mais maléficas. No mais, a enxada era o melhor exercício físico para queimar os excessos. Quem poderia suportar (a apenas...) meio dia de verdadeiro serviço de roça com um prato magro recomendado pela ciência? Óleo, saladas, carne branca ... “Angu é que cria”, diziam, revelando que a comida há de ter “sustança” (ser encorpada, com poder nutritivo, intensidade, capacidade de satisfazer).

Os remédios vinham muito mais do mato que da farmácia. Cascas, folhas, raízes, sementes eram os ingredientes de mil e uma fórmulas medicamentosas para todos os incômodos. Da geração velha, já que faltava a assistência, muita gente passou quase a vida toda sem consultar um médico. No mais a fé completava a terapêutica na prece diária, elevando a auto-estima, a positividade psicológica, a auto-imunização e ainda a ajuda dos benzedores, que por toda parte houve, cruzando seu rosário e recitando palavras ligeiras e engroladas, mas espantando com elas as moléstias e assombros. Rezadores famosos deixaram seu nome na memória popular, e a fé do povo em suas ações era imensa. Curavam doenças estranhas para as pessoas da cidade, tais como quebranto, espinhela caída, vento virado, simioto; tiravam aguamento, davam receitas para friagem de estômago e bichas (lombrigas), além de benzer os acometidos de peçonha.

Depois da janta, ao redor da sapata do fogão à lenha, no calor das brasas, no lusco-fusco bruxuleante da lamparina, os mais velhos contavam causos, estórias de assombrações, de tesouros enterrados, de cavas medonhas, de porteiras que rangiam e batiam sem que ninguém (vivo) mexesse nelas, de princesas em castelos encantados, de animais que falavam e tinham virtudes e defeitos como gente. Tinha-se paciência e gosto para ouvir o fabulário, pois o império avassalador da televisão ainda não tinha se formado. O bom contador de estórias não tinha pressa. Esticava as narrativas acrescendo sons e gestos, tão teatrais que dava para se enxergar a cena na mente. 

As festas populares eram a ocasião maior de quebra da labuta cotidiana e sobretudo de recuperação das energias através das orações. Mais que isso, de afirmação e confirmação da identidade. Os moradores eram agora os atores. Retireiros, capinadores, conservas de estrada, lenhadores, carreiros transformavam-se em congadeiros e folieiros. Um deles puxando o fole da “cabeça de égua” varava a noite cercado pela companheirada cantando horas a fio na sua “oito baixos”, o calango desafiador. Nos bailes regidos pela sanfona, viola, pandeiro, dançava-se ordeiramente numa condição inimaginável na urbe. A diversão só era consentida como tal num ambiente de pleno respeito. 

A solidariedade era como uma instituição inquebrantável, manifesta no auxílio na hora do parto, graças às parteiras; no trabalho dos mutirões com vasta cantoria chamada “ronda”; na morte, confeccionando-se a padiola e trazendo condolências à família, num tempo de respeito ao luto, fosse o próprio ou o alheio. 

A vida na roça era polarizada: muito trabalho e pouco descanso, muita fartura alimentar e pouco dinheiro vivo, muito sossego e pouco conforto, muita fé e pouca mudança. O campesino era um homem inteligente, honesto e perspicaz, nada semelhante à caricatura do caipira imaginada na cidade. Aquele bobo de calças remendadas só vive na mente urbana, dançando desengonçado nas quadrilhas juninas. O roceiro é airoso para dançar. Aliás, tanto já zombaram, que chamar alguém de roceiro ou caipira tornou-se ofensa, quando deveria ser motivo de orgulho.

Assim era a roça. Esse o mundo rural observado na pequena São Gonçalo do Amarante, em parte mantido, em parte alterado, mas certamente extensivo a muitos outros rincões mineiros.


Residência em São Gonçalo do Amarante, 08/10/2011.

* Texto: Ulisses Passarelli
** Foto: Iago C.S. Passarelli
*** A fotografia escolhida para este post tem caráter meramente ilustrativo da arquitetura rural típica.