Bem vindo!

Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




segunda-feira, 26 de março de 2018

Adeus, Mestre João Matias... Sua bênção!

São João del-Rei está bem mais triste hoje... perdemos o Mestre João Matias (João Batista do Nascimento), decano de nossas folias de Reis. Falecido no Domingo de Ramos, aos 94 anos, foi sepultado no Cemitério do Rosário, na tarde da Segunda-feira Santa, 26 de março de 2018, após a celebração de corpo presente na Catedral do Pilar.  

1- Mestre João Matias na Procissão do Imperador Perpétuo,
durante a Festa do Divino. 03/06/2017. 

Filho de Pedro Matias (Pedro Nolasco do Nascimento)que nomina uma rua do Bairro Guarda-Mor, onde morava João Matias) e Dona Zezé (Maria José de Oliveira). Era natural de Conceição da Barra de Minas. Deixou família numerosa e honrada e uma vastidão de amigos e admiradores. Homem trabalhador, no sentido profundo da palavra, depois de múltiplas experiências na vida do campo e em serviços urbanos, ainda agora, em avançada idade, mas pleno de saúde e consciência, cuidava de seu sítio com muita dedicação, no ato de plantar e criar. 

2- Apresentação no Coreto Municipal Maestro João Cavalcante. 11/12/2013. 

A fé lhe movia, indubitavelmente. Membro da Confraria de Nossa Senhora do Rosário, não perdia as celebrações e procissões, sempre esbanjando disposição e simpatia. 

3- Apresentação no Memorial Dom Lucas. 10/12/2013. 

Não era apenas mais um folião ou mais um mestre da cultura popular. Matias foi uma referência neste campo da cultura, um baluarte. Começou jovem nas folias, no distrito de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, em 1947, onde tocou por vários anos. Em 1980 fundou sua própria folia no Bairro Guarda-mor em São João del-Rei. 

4- Ulisses Passarelli, João Matias e Affonso Furtado com as bandeiras do mestre. 27/01/2014. 

Tocando um violão, cantava com voz inconfundível entre nossas folias. Improvisava com facilidade. Sempre muito cortês, fazia versos de homenagem às pessoas assim, de repente. Não enjeitava apresentação ou encontro de folias de Reis, sempre muito ativo. Saía também com a folia de São Sebastião e então se notabilizou pelos longos anos que participou com seu grupo na festa deste taumaturgo na Catedral do Pilar, conquistando admiração dos sacerdotes, como o memorável Monsenhor Sebastião Raimundo de Paiva, que certa vez lhe ofertou um estandarte com a estampa deste santo. Matias gostava muito deste presente e fazia questão de frisar quem lhe havia dado. Igualmente saía com a folia do Divino e neste sentido, desde 1998, nunca faltou a uma festa do Espírito Santo no Santuário de Matosinhos. 

5- Folião Luthero Castorino coloca a faixa de mestre em João Matias. 18/02/2014. 

Outras vezes, quando era possível e oportuno, João Matias se fardava de bastião ou marungo, mascarado cômico que acompanha as folias de Reis, denotando sua versatilidade. 

Ao completar noventa anos de idade, recebeu homenagem pela Comissão do Divino, em Matosinhos, conforme já descrevemos em outra postagem (*). Naquela oportunidade recebeu também a condecoração de Mestre, ofertada pela instituição Casa de Santos Reis, graças ao iminente folclorista e estudioso das tradições reiseiras, Affonso Furtado. 

6- Durante homenagem aos foliões, no Encontro de Folias de Reis do Largo de São Francisco,
ao lado do violeiro Chico Lobo e da organizadora Alzira Haddad. 28/12/2013. 

Em certa ocasião, alguns anos passados, acompanhamos Mestre Matias à vila de Paraíso (Piedade do Rio Grande), com a folia em viagem através do sul do município. Costumava ir lá e levava dentro da van muito alimento: arroz, feijão, carne, verduras, refrigerantes, etc. Lá deixava com uma senhora que de costume já os recebia. Ela fazia farto almoço. A folia visitou as casas dos lugar e foi absolutamente admirável a popularidade do Mestre em apreço. Parada para o almoço e retorno à atividade. Missão árdua mas compensadora em sua graça. Todo o alimento que sobrava e era muito, deixava por lá. 

7- Momentos antes da saída da Procissão do Imperador Perpétuo,
junto ao folieiro Marcos Antônio. 23/05/2015. 

Hoje, seu sepultamento foi algo muito tocante. No Velório do Rosário, lotado, apareceram seus folieiros além de membros das outras folias da cidade, inclusive vários outros mestres para render-lhe a homenagem. Se irmanaram todos numa folia só e cantaram sua despedida muito emocionante. Os foliões Luís Rosa e Luthéro Castorino puxaram a cantoria, com muita habilidade. 

A partida do Sr. João Matias deixa um vazio... Já se preparava para a presença no Encontro da Cultura Popular no distrito do Caquende em abril e a para a Festa do Divino em maio. Como será difícil sem ele! Perda humana inestimável. 

Ao fim da encomendação de sua alma, o celebrante, Padre Álisson Sacramento, deixou o recado bem claro: "Não deixem a folia parar! É muito bonito e importante. Ele gostava demais!"

8- Adeus, Mestre João Matias... Sua bênção!  (**)

Notas e Créditos

* Para saber mais a respeito leia a seguinte postagem clicando neste link:
NOVENTA ANOS DE UM GRANDE FOLIÃO
** Fotografia durante a Festa de Nossa Senhora da Boa Morte, 15/08/2014. 
***Texto: Ulisses Passarelli
**** Fotografias: 2 e 3 - Ulisses Passarelli; demais fotografias - Iago C.S. Passarelli
Revisão em 11/03/2024

segunda-feira, 19 de março de 2018

Sacolinha de São José

O dia 19 de março é reservado no calendário católico aos festejos ou memória em honra a São José, o Carpinteiro, esposo de Maria de Nazaré, Mãe de Jesus. Ao largo das comemorações oficiais o povo por si mesmo difunde crenças e formas próprias de recorrer ao prestigiado santo. Assim é que no nordeste brasileiro, este é o dia de observar de maneira especial o clima: se chove no dia deste santo ou o clima fica fresco, é sinal positivo de um bom inverno, presságio de mais chuvas próximas amenizando a seca atroz. 

A fotografia que compõe a presente postagem revela uma forma inusitada de corrente, com o objetivo de trazer fartura, rendimento do salário, em nome da devoção ao venerável santo: o Saquinho ou Sacolinha de São José. O exemplar aqui fotografado pertence a uma senhora de São João del-Rei, cuja identidade reservamos. 

Consiste em uma pequena bolsa de tecido, na cor amarela, tramada em crochê, destinada a conservar o dinheiro recebido. No interior vai uma tira de papel com o escrito da corrente, que segue transcrito:

"Neste saquinho da sorte guardarás tuas economias e terás a proteção de São José em situações financeiras. Nunca te faltará nada. Daqui um ano, no dia 19 de março, farás 19 saquinhos e os distribuirás após ter assistido a missa de São José. Basta fazer uma vez. Guarde sempre contigo este saquinho com esta mensagem e a moeda que deve ser colocada junto. São José te abençoará."

Tal papel é enrolado em torno de uma moeda e posto no interior do saquinho onde permanece sempre. O restante do dinheiro é posto e tirado conforme a necessidade. Contém também outro papel de corrente, de forma ovalada, tendo a estampa de São José por marca d'água, sobre a qual vem o seguinte texto, muito parecido ao anterior: 

"Esta é a sacolinha de São José. Todo o dinheiro que receber, coloque dentro dela, mesmo que seja por um minuto. Nesta sacolinha guardarás as tuas economias e terás a proteção de São José. Daqui a um ano, 19 de março de 2015, farás 19 sacolinhas e distribuirás, com uma moeda dentro de cada uma. Não gaste a moeda que estou lhe enviando. Assim nunca lhe faltarás nada. Obrigada São José. São Paulo 19 de março de 2015."

A pessoa que a recebeu em São João del-Rei atualizou o exemplar à caneta esferográfica, fazendo uma rasura, que alterou a data 2015 para 2016 e "Paulo" para "João". 

Completa o conjunto um laço de fita amarela de cetim, para atar a abertura da sacolinha ou saquinho e uma medalha com a efígie do santo afixada por costura. 

Daí o saquinho é guardado em segurança no fundo de bolsa, guarda-roupa, baú, gaveta, algibeira... longe das vistas de possíveis ladrões. Mesmo vindo de outra cidade distante a corrente se aclimatou em São João del-Rei e em 2017 já se esparramou; com novos adeptos, em 2018 seguirá se multiplicando. A fórmula também atende aos preceitos da folk-comunicação, como outras correntes típicas. 

Sacolinha de São José: sacola de crochê com medalha e papéis da corrente.
A régua com escala em centímetros posta ao lado oferece a proporção do tamanho.
São João del-Rei. 10/03/2018. 

Notas e Créditos

* Texto e fotografia: Ulisses Passarelli
** Revisão: 15/03/2024

sábado, 10 de março de 2018

Divisas de antigamente (e a honestidade!)

As divisas de terrenos ou meras separações internas de piquetes ou de hortas guardam um interesse especial e poucas vezes evidente para os estudos. Em si reside o método, a técnica de se levantar uma demarcação; mas além disso passa pelo comportamento da honestidade, que tem muito peso para o homem do campo de modo especial. 

A palavra parece em tudo fora de moda. Num mundo louco, de escândalos inimagináveis, a honestidade tornou-se para os ímpios um princípio ultrapassado, dispensável, incompatível com a modernidade. Infelizmente essa cancerização ética é generalizada e corrompeu o país.

Sempre houve desonestidade, é fato. Contudo no passado a honestidade era preceito básico de uma pessoa e seus conceitos ainda mantidos por alguns, marcaram a formação cultural do cidadão de antanho, com reflexos ainda hoje. Honestidade era e ainda é para alguns um ponto de honra. 

A honra do homem se pautava na clareza de suas finanças e o conceito de época também se estendia à fidelidade da esposa. 

No primeiro caso, é relatado oralmente que um fiapo de barba ou do bigode do homem, guardado num envelope, tinha o valor de uma promissória na transação comercial, devolvido ao seu dono tão logo paga a dívida comprometida oralmente. Pagar antes da data marcada era um esforço natural, prova ainda maior de hombridade e melhoria da condição de crédito. Ao se mudar de uma cidade havia o cuidado de se deixar claro que não ficavam dívidas para trás: 


“O abaixo assignado, ao retirar-se para o Estado do Ceará, declara nada ficar devendo á praça desta cidade. S.João d’El-Rey, 3 de Julho de 1895. Ten. Francisco A. d’Albuquerque, do 8º Regimento” (Jornal O Resistente, n.16, 03/07/1895, São João del-Rei). 


A expressão popular “fulano... é homem com H” refere-se também a este aspecto: enfatizando o "H" pretendia-se afirmar a honra do indivíduo, o cumprimento das obrigações domésticas e profissionais, a reputação ilibada, o caráter inflexível, a postura firme na resolução das injustiças e equívocos. 

Outra marca da honestidade era o respeito às divisas. Fiel ao preceito bíblico _ "não passes além dos marcos antigos que puseram teus pais" (Provérbios, 22:28) _ o homem de bem não se arvorava em alterar posição de cercas e muros, respeitando-as tal como as herdara ou comprara. Se algum vizinho se atrevia a não cumprir a mesma premissa, era rechaçado à bala de carabina. O conceito comum que valia então nos meados do século XX era que se tratava tal ato de defesa da honra, da honestidade e dos direitos; não se encarava como gesto agressivo ou de violência, segundo os conceitos daquela época. Antigas propriedades coloniais tinham sua marcação a partir de uma coluna de pedra, o marco de sesmaria, a partir do qual como um pião, se definia os limites. Já os terrenos de mineração eram divididos em lotes, chamados datas: uma data de terra; uma data mineral. 

As Câmaras coloniais de São João del-Rei e São José del-Rei (atual Tiradentes) se degladiaram em queixumes na primeira metade dos setecentos porque os então vereadores josefenses não exitaram em estender sua jurisdição gradativamente muito além da área de seu termo, demarcado em 1719. Agindo arbitrariamente em direção oeste, invadiram a área são-joanense provocando a ira dos edis da vila de São João, que repetidas vezes reclamaram da invasão, inutilmente aliás. A contenda política, jurídica e administrativa perdurou pelo menos até 1755, quando o Ouvidor Geral e Corregedor da Comarca, Dr. Francisco José Pinto de Mendonça, em ato de correição, estabeleceu as divisas pelo Rio das Mortes e seu afluente, o Elvas, ficando as terras da margem esquerda com São João del-Rei e as da direita com São José del-Rei.

A nível mais focal as divisas além dos fluxos d'água e das culminâncias montanhosas, se fazia por valos e muros de pedras. 

Os valos eram cavidades lineares rasgadas na terra, como uma longa canaleta, de relativa profundidade, estabelecendo pela dificuldade de transposição o limite entre duas antigas propriedades. Em muitos lugares os valos desapareceram à força de trator, sendo aterrados e terraplenados para expansão de área agropecuária. Os remanescentes são de elevado interesse da arqueologia histórica, representando uma técnica de estabelecimento de divisas feita sob a força braçal de ferramentas empunhadas pelos escravos. Como em geral a água pluvial corre em seu interior, a umidade prevalece. Com isto a vegetação cresce bastante e os valos se tornam corredores de fauna. Tanto mais, as condições específicas de sombra e umidade em seu interior propiciam um microclima adequado ao surgimento de uma flora específica e por conseguinte da presença de invertebrados e pássaros. 

Os muros de pedras também foram em passado remoto erguidos pelos homens escravizados. Separavam terrenos de sesmeiros, pastagem, encostas. Definindo áreas de propriedades, alinhavam-se por vezes campo afora, outras vezes serra acima, se valendo da oferta de pedras do próprio terreno ou obrigando a trazê-las de longe em carros de bois. 

A técnica aparentemente simples de sua feitura se mostrava contudo eficiente, pelos cuidados na escolha correta da forma das pedras a serem empilhadas, o embasamento nas pedras-mestras (que seguram a estrutura nos pontos mais irregulares do terreno), os travamentos, os pontos de passagem de água. Com o passar dos anos uma camada de lodo e líquens se acumula sobre as pedras e as ambientam ao local, passando a ser morada da fauna. Os muros de pedras se integram à paisagem e dão-lhe uma nota de bucolismo.

Diz-se em São João del-Rei que a construção dos muros se dava no período de entressafra e nas secas, quando rareava a água dos mundéus de mineração. Ao homem escravizado, em vez do descanso, se sobrepunha a carregação de pedras para composição dos muros. Essa seria a possível origem do ditado "enquanto descanso, carrego pedras..."

A nível das pequenas roças e hortas se via comumente o cercamento por bambu. A medida previne a entrada de animais domésticos que destruiriam as plantações. As lascas se sucedem em trançamento vertical, entre arames esticados, moirão a moirão. Via de regra o corte do bambu se dá na seca, quando sabidamente o mesmo tem pouca umidade. Para exatidão da época do corte, se definiu que deve ser durante a lua minguante, nos meses sem "R" em seu nome: maio, junho, julho e agosto. Isto seria uma garantia de durabilidade, contra podridão e ataque de insetos xilófagos, por corresponder ao momento da madeira estar mais enxuta. O bambu se corta a facão ou foice. 

Hoje ainda vislumbramos algumas dessas antigas divisas, por vezes vestigiais, em segmentos de valos, fragmentos de muros e restos de cerca. Mas ainda assim tem elas um especial interesse para os estudos etnográficos e históricos e merecem preservação. 

1- Cerca de bambu. 02/07/2013.
Emboabas (São João del-Rei/MG)

2- O autor observando um valo. 10/07/2017.
Serra do Lenheiro (São João del-Rei/MG)

3- Muro de pedras. 01/10/2017.
Ritápolis/MG.  

4- Detalhe dos sistema construtivo do muro da foto 3. 

5- Muro de pedras com passagem de antiga estrada boiadeira.
24/07/2009. Brumado de Cima (São João del-Rei/MG).

6- Muro de adobe sobre baldrame de pedras; cobertura de telha curva colonial,
na função de pingadeiras. 16/10/2022. Ritápolis/MG. 

Notas e Créditos

* Texto e desenho: Ulisses Passarelli
** Fotografias: 1, 3, 4 , 5 e 6 - Ulisses Passarelli; 2: Luiz Antônio Sacramento Miranda
*** Revisão: 15/03/2024, com acréscimo da foto nº6.
**** Obs.: vimos no agreste potiguar em 1992 várias pequenas residências rurais em diversos municípios com uso disseminado de cercas feitas com paus roliços cortados da vegetação nativa. Uma das mais comuns eram as formadas pelo cruzamento de paus, tomando a forma de tesouras. No litoral tanto do Rio Grande do Norte quanto do Ceará igualmente as notamos, além de outros modelos, que à época esboçamos num desenho à lápis, abaixo reproduzido:



Referência Bibliográfica

BARREIROS, Eduardo Canabrava. As Vilas del-Rei e a Cidadania de Tiradentes. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1976. 128p.