Bem vindo!

Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sábado, 29 de abril de 2017

Pequeno glossário de alguns terreiros de São João del-Rei


Nesta postagem ousamos, muito respeitosamente, selecionar uma centena de palavras e expressões habitualmente usadas em algumas tendas e terreiros de São João del-Rei. É preciso inicialmente entender que elas fazem parte propriamente de uma linguagem popular, contudo típica do ambiente dos trabalhos espirituais. Isto não as torna exclusivamente ritualísticas. Se referem a elementos correlatos ao ritual, mas são parte da dinâmica coloquial da linguagem. 

Por isto, em momento algum houve preocupação de especificar o terreiro onde foi ouvida; tão pouco a doutrina específica daquela casa, pois há uma grande circularidade nestas gírias, termos, expressões e alcunhas entre diversos terreiros, carreados por participantes a elas afeitos, quando de visitas e participações. Assim sendo, elas ganham maior dimensão e são incorporadas por alguns umbandistas e quimbandeiros, e eventualmente candoblecistas e de uns e outros não raro passam a integrar o repertório dos consulentes. A própria influência mútua entre as várias religiões faz com que haja a citada circulação do palavreado. 

No mais há outro aspecto: se de fato faz parte da linguagem típica, por outro lado não lhe é exclusiva. Algumas destas palavras caem no uso comum fora da comunidade dos terreiros e passam a ter uso bem mais amplo. Contudo, a recíproca também é verdadeira. 

Por tudo isto não houve como diretriz da escolha das palavras deste pequeno glossário, a menor intensão de focar em um único terreiro, tão pouco em incluir palavras exclusivas do vocabulário ritualístico. Não interessa para os limites desta postagem o significado da palavra ebó, por exemplo, ou amalá, ou assentamento. Elas tem uso limitado à religião não à cultura popular associada. Da mesma sorte e por coerência de raciocínio, se fica esclarecido que “compadre” é alcunha de exu, isto basta para a proposta deste blog. Explicar quem é exu e seus atributos é coisa de um estudo religioso ou antropológico e isto já nos extrapola. 

Esteja claro também que esse uso comum de tal vocabulário não está a rigor cerceado pela corrente doutrinária desta ou daquela umbanda: não é limitada à umbanda tradicional ou à traçada ou à esotérica... Repetimos a palavra circularidade, sem rigor, embora possam haver tipicidades específicas. No mais, embora não tenhamos cotejado este vocabulário com o equivalente de outras regiões nacionais, é bom possível, pelo menos no campo hipotético, que muitas destas palavras tenham vasto uso em outras áreas nacionais e eventualmente significados distintos conforme a influência cultural de cada zona geográfica. Outrossim é preciso destacar que seu uso não se restringe a São João del-Rei no Campo das Vertentes, pois várias destas palavras e expressões já as ouvimos em municípios vizinhos, ainda que a coleta para efeito desta postagem tenha sido feita apenas em terra são-joanense.

É mister observar que a linguagem em questão se reveste de ricas figurações, alegorias, que a tornam especialmente interessante para o estudo. Assim, por exemplo, as designações temporais: tempo grande, tempo roxo, trinta tempos... (*) revelam uma forma de interpretação de fenômenos naturais à moda da cultura popular. Outras nitidamente são africanismos ou pelo menos tiveram sua influência: malungo, quizila, malême... Esta parcela denota a resistência cultural de nossa formação étnica. 

O intento é o mero registro cultural, etnográfico e linguístico. Repetimos que não tem finalidade religiosa e aliás, é mister destacar que não pode ser usado como parâmetro de evolução ou estado doutrinário da religião. Como a linguagem é algo muito dinâmico, mutável, esperamos com este humílimo registro deixar consignado para estudos futuros a pequena listagem que se segue.

*  *  *

1.     Agô – desculpas, perdão, misericórdia.
2.     Água forte – álcool, usado externamente em certos descarregos e trabalhos.
3.     Amaci – esfregaço de ervas próprias numa bacia com água para se lavar a cabeça e assim buscar sintonia com as entidades espirituais; “amanci”; banho de cheiro.
4.     Areia doce – açúcar.
5.     Areia salgada – sal de cozinha.
6.  Boca mole – negro velho, referência à fala custosa desses guias, de pronúncia geralmente lenta, cheia de palavras diferentes.
7.     Burro – aparelho espiritual, médium de incorporação, geralmente em linguagem de esquerda.
8.     Cafioto – criança.
9.     Calunga grande – oceano; local onde muita gente morreu afogada.
10. Calunga pequena – cemitério; campo santo.
11. Calunguinha – igreja (no passado havia enterramentos nas igrejas).
12. Cambureco – criança.
13. Canela – vela.
14. Cangira – gira; ingira; sessão; cerimônia. Cangira de baianos: trabalho dos guias baianos; cangira de boideiros: trabalhos dos guias boiadeiros.
15. Cavalo – aparelho espiritual; médium de incorporação, geralmente em linguagem de direita.
16. Cazuá – casa, habitação, construção. “Canzuá”.
17. Comida de Oxóssi – expressão figurada e poética, que não se refere propriamente ao alimento ofertado ao orixá, mas sim às chuvas que caem entre o Dia de Reis (06 de janeiro) e o Dia de São Sebastião (20 de janeiro), tida como especialmente abençoadas. Nesta última data muitos terreiros festejam Oxóssi, em razão do sincretismo com o santo católico.
18. Compadre – exú. Um tratamento intimista, nem por isto desrespeitoso; “meu compadre”.
19. Cortar – sacrificar um animal.
20.Criança – alcunha corriqueira aplicada aos erês, por terem esses guias comportamentos infantis quando incorporados. Habitualmente se diz “meninos” e “meninas”, conforme a roupagem espiritual que assumem em sua manifestação.
21. Cumba – feiticeiro; mandingueiro.
22. Cumbara – terra, no sentido de rincão, cidade. “Nesta cumbara”: nesta cidade; “cumbara distante”: outra cidade.
23. Curimba – canto sagrado ritualístico; ponto cantado; evocação.
24. Curuto – charuto.
25. Dendê – feitiço; mistério espiritual. É uma extensão alegórica absorvida do sentido típico da palavra, um coco africano, cujo óleo é usadíssimo na cozinha ritual. Muitas comidas oferendadas às entidades são regadas ou cozidas a azeite de dendê, que confere axé ao alimento. “Tem dendê...”: tem um mistério envolvido.
26. Derrubada – ação de derrotar um inimigo através da manipulação de forças espirituais. Derrubar através de trabalhos de terreiro.
27. Despacho – ato de despachar algo indesejado ao rito do terreiro; ação de por para fora do terreiro um objeto, velas, alimentos... com o objetivo de retirar do local ou do caminho de um consulente uma determinada entidade.
28. Direita – designação muito arraigada de uma divisão prática das linhas de trabalho da umbanda. Habitualmente formam o que se chama “povo da direita” ou “linha branca”, com características comportamentais, doutrinárias e campo de ação mais ou menos correlatos: negros velhos, caboclos, erês, baianos, marinheiros, boiadeiros, orientais.
29. Dongo - dinheiro. O mesmo que "zimba". 
30. Egum – derivação da palavra africana egungum, que tem hoje nos terreiros o sentido genérico de alma, os mortos, ou especificamente corresponde ao que a cultura popular chama de almas penadas. A conotação hodierna afastou-se um pouco da concepção original da palavra.
31. Entrega – como o nome indica é algo que se entrega a uma entidade: bebida, cigarro, alimento, objeto. O material entregado é a parte material de um pedido. “Arriar uma entrega”: coloca-la no ponto de força da entidade, na sua área de domínio: encruzilhada, estrada de terra,  montanha, etc. Diferencia-se do despacho por não ter o sentido de indesejável e da oferenda por ser esta propriamente um agrado, uma homenagem ou presente. A entrega tem um objetivo específico a ser alcançado, externado no pedido mental ou verbal a uma entidade e pode ser por ela pedido ou inspirado no subconsciente.
32. Escora – exu guardião.
33. Espumante – champanhe; vinho branco doce gaseificado.
34. Esquerdas – designação muito arraigada de uma divisão prática das linhas de trabalho da umbanda. Habitualmente formam o que se chama “povo da esquerda” ou “linha vermelha”, com características comportamentais, doutrinárias e campo de ação mais ou menos correlatos: exus, pombas-giras (bombogira), mirins (exu-mirim e pomba-gira mirim), malandros e conforme a doutrina específica, também ciganos e cangaceiros. São os guias da banda virada ou guias da esquerda.
35. Flor de Omulu – pipoca, usada em oferendas e descarregos.
36. Fundenga – pólvora.
37. Gafanhoto – criança, geralmente no linguajar de esquerda.
38. Guaraná – qualquer refrigerante, independente de ser exatamente de guaraná.
39. Homem – exu. “Homem da meia-noite”: expressão arquetípica, que induz ao pensamento um exu eivado de mistérios.
40. Homem da capa preta – juiz; promotor.
41. Homem da letra bonita – advogado.
42. Homem de saia – padre.
43. Homem do grito – caboclo.
44. Homem que grita alto – pastor.
45. Hora grande – momento da morte.
46. Índio – caboclo.
47. Ingira – trabalho ou sessão; corrente mediúnica em uma determinada linha: “ingira de marinheiros”; o mesmo que cangira ou simplesmente gira.
48. Ingoma – o local do terreiro onde ficam os médiuns da corrente, separados da assistência, onde ficam os consulentes e visitantes.
49. Labutar – trabalhar, tanto no sentido de estar em um serviço quanto em sessão espiritual, na cerimônia.
50. Lume – vela.
51. Macaco – policial, numa gíria arcaica.
52. Maleme – desculpas, perdão, misericórdia. "Malenga". 
53. Malungo – africanismo: companheiro, colega. Sofre corruptela para “marungo”.
54. Marafo (ou marafa) – cachaça. Palavra muito arraigada, seu uso por vezes extrapola o ambiente dos terreiros, onde é típica.
55. Marafo bravo - whisky
56. Marafo forte - conhaque
57. Marechal de Guerra – título aplicado ao orixá Ogum, que se acredita ter sido guerreiro invencível.
58. Matracar – falar, contar algo. Deriva de matraca, instrumento de madeira, barulhento. Bater a matraca, fazer barulho. “Matacar” é corruptela comum.
59. Menga – sangue.
60. Mironga – firmeza de mistério, que não se revela a ninguém. Ter mironga: trazer consigo um patuá ou amuleto; saber como fazê-lo; saber um rito que outros não sabem.
61. Moca – café.
62. Moça – expressão eufemística e carinhosa aplicada às pombas giras.
63. Mulher – pomba gira.
64. Oferenda – oferta de velas, objetos, alimentos, bebidas a um dado orixá ou guia, geralmente em ocasiões festivas ou como sinal de gratidão.
65. Pai Véio – negro velho.
66. Panado – qualquer pano; toalha de bater cabeça; cortina do gongá.
67. Pedra de raio – artefato lítico de origem indígena; machadinha indígena de pedra; meteorito.
68.Pemba – genericamente, qualquer giz; especificamente, um giz próprio, ritualístico, confeccionado de modo a atender com exatidão os preceitos necessários para riscar um ponto.
69. Penosa – galinha.
70. Perna de calça – homem, no sentido de pessoa do sexo masculino, não no sentido de exu.
71. Ponteiro – punhal.
72. Povo – no sentido material refere-se aos parentes, familiares; no sentido espiritual corresponde à egrégora de espíritos que acompanham o médium. Assim, a expressão “seu povo”, para ser corretamente entendida, deve ser contextualizada.
73. Povo da encruza – os espíritos que tem domínio ou ponto de força nas encruzilhadas. Por força de hábito e genericamente se refere aos exus e pombas giras, embora nem todos sejam esquerdas de encruzilhada.
74. Povo da Calunga - os espíritos que tem domínio ou ponto de força nos cemitérios. Por força de hábito e genericamente se refere aos exus e pombas giras, embora nem todos sejam esquerdas de campo santo.
75. Povo das campinas – os espíritos que tem domínio ou ponto de força nos campos, pradarias. Por força de hábito e genericamente se refere aos boiadeiros.
76. Povo das matas - os espíritos que tem domínio ou ponto de força nas florestas. Por força de hábito e genericamente se refere aos caboclos.
77. Povo de rua - os espíritos que tem domínio nas ruas e não propriamente nas encruzilhadas. Por força de hábito e genericamente se refere aos malandros.
78. Pula-pula – congado. "Mexe-mexe". 
79. Quiumba – casta temida de espíritos desprovidos de luz e doutrina, capazes de atos maléficos.
80. Quizila – ojeriza, desentendimento, desarmonia entre médiuns ou entre mediuns e guias, naturalmente por alguma imprudência tomada por desrespeito.
81. Rabo de saia – mulher, no sentido de pessoa do sexo feminino, não no sentido de pomba gira.
82. Rabudo – exu. Termo pejorativo eivado da equivocada concepção oriunda de antigos missionários, que equipararam indevidamente exu a satanás.
83. Rebanho – conjunto de pessoas sobre a proteção de um orixá, guia, dirigente espiritual ou templo.
84. Rei Chefe da Umbanda – título aplicado a São Miguel Arcanjo, considerado supervisor geral da umbanda.
85. Riscador – giz; caneta; lápis.
86. Risco – escrito.
87. Rodador de borracha – carro; veículo. Referência aos pneus.
88. Roncador –suíno. “Carne de roncador”: bife ou pedaço de carne de porco.
89. Roupa branca – médico. Por vezes se diz, “roupa branca da Terra”, médico encarnado, doutor terreno; “roupa branca do espiritual”, médico desencarnado com licença de intervir nas doenças de modo curativo; espírito da chamada corrente médica do espaço, que se atribui a chefia ao Dr. Bezerra de Meneses.
90. Sangue de Cristo – vinho tinto.
91. Sete tempos – uma semana.
92. Tempo curto – um dia.
93. Tempo grande – um ano.
94. Tempo roxo – período da quaresma e Semana Santa, que muitos médiuns se recolhem dos trabalhos espirituais ou trabalham de forma diferenciada.
95. Traçado – bebiba que consiste na mistura no mesmo recipiente de cachaça e cerveja.
96. Trinta tempos – um mês.
97. Vale – cidade; região habitada.
98. Virada – momento da meia-noite, que reconfigura os procedimentos da sessão que o ultrapassa.
99. Vovô / vovó – negro velho / negra velha como espíritos guias de sua prestigiada linha trabalho. 
100. Zóio vermelho – idem. Ter os olhos com esclera avermelhada indica na crença corriqueira dos terreiros em apreço elevada sintonia e sabedoria dos mistérios espirituais. Por extensão e pejorativamente se equivale a feiticeiro. 




Notas e Créditos


* Texto: Ulisses Passarelli
** Fotografia: Iago C.S. Passarelli
*** Sobre as relações do tempo com a cultura popular leia neste blog a postagem:

A LINGUAGEM DO TEMPO 

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Costumes populares na Paixão do Senhor

Nas cidades históricas existe uma atmosfera tão peculiar nesse dia, que não há palavras que a defina. Além dos ritos sagrados da Igreja, das celebrações, muitos costumes populares se observam neste dia.

Aqui em São João del-Rei e arredores, uma antiquíssima tradição leva muitos à serra, madrugadinha, famílias inteiras, até o alto dos montes pedregosos, onde o reencontro com o Deus acontece. Desafoga-se o peito... preces, entretenimento, apreciação da natureza, colheita de ervas medicinais _ que valem para o ano inteiro, tidas por bentas. Diz a crença que a colheita de arnicas, rosmaninhos, alecrins, congonhas e outras deve ser antes do sol secar o orvalho das folhas, pois esta umidade consideram sagrada. Uma senhora dizia-me que é como o suor de Jesus Cristo... sagrado. Neste dia tudo é assim.

Nas roças não se vende leite na Sexta-feira Santa. Nos currais os retireiros esgotam as vacas e doam o leite às pessoas. É costume fazer doce com este leite. Em São João del-Rei, muitas pessoas saem do Tijuco e vão pelo caminho das Águas Gerais até o Cunha, Brumado de Baixo, Chapada e São Gonçalo do Amarante, do outro lado da Serra do Lenheiro buscar leite, bem cedo. 

Por força de uma prescrição inquebrantável não se deve trabalhar na busca do lucro. É dia de preceito. Mexer com ferramentas de carpintaria nem pensar... martelo? De jeito nenhum! Não se bate um prego neste dia, não se imita o gesto ignóbil de pregar o Salvador.

Não xingar, não cuspir, não beber, não comer carne, não ouvir música por mero entretenimento, não assoviar nem cantarolar, não demonstrar alegria, não contar piadas, não caçar, não pescar, não jogar futebol, baralho ou qualquer outro jogo, etc... A tradição não recomenda. Não é tempo de mostrar alegria. Deve-se concentrar na memória da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Nem os sinos batem. Só as matracas nas portas das velhas igrejas: "_ para a cera do Santo Sepulcro!" _ clamam os meninos quando recolhem um óbolo, matraqueando estrepitosamente.

Três da tarde é hora do máximo respeito, 15 horas, quando o Messias fechou os olhos. Nos quintais, fura-se um buraco pequeno no chão e se cospe três vezes dentro e enterra-se (os males...). Depois se bebe um copo de chá (de congonha, de erva-cidreira ou outra). 

Junto aos templos algumas pessoas vendem arnicas, congonhas e rosmaninhos. Outros mais, milho verde cozido, cartuchos de amêndoas, beijo quente e maçã do amor. Alimentos de valor cultural. 

Enquanto isto, outros tantos manipulam areias e serragens tingidas e preparam os típicos tapetes de rua que logo mais, à noite, receberá a Procissão do Enterro. Arte efêmera, de construção coletiva, criatividade pura, dinâmica e de baixo custo, sacralizando as vias públicas. 





Aspectos da confecção dos tapetes de rua. 

Jovens na entrada da Igreja de São Francisco com matracas recolhem
donativos anunciando a característica frase:
 "_ Para a cera do Santo Sepulcro!"


Comércio de arnica e outras plantas medicamentosas e aromáticas.

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Fotografias: Iago C.S. Passarelli, 14/04/2017, São João del-Rei

domingo, 9 de abril de 2017

Semana Santa: a Procissão de Ramos

Um domingo antes da Festa da Ressurreição é Ramos. Domingo de Ramos, hoje. Das igrejas o povo em procissão carrega ramos verdes louvando a Cristo. 

As raízes estão na Bíblia Sagrada. O Evangelho de Mateus narra no capítulo 21 (versículos 1-11) como foi triunfal a entrada de Jesus em Jerusalém perto da Páscoa, montado numa jumenta como previra o profeta. Disse o evangelista: "Então a multidão estendia os mantos pelo caminho, cortava ramos de árvores e espalhava-os pela estrada. E toda aquela multidão, que o precedia e que o seguia clamava; 'Hosana ao Filho de Davi! Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor! Hosana no mais alto dos céus!"(*)

Em João, explicitamente, diz o evangelho: "Saíram eles ao seu encontro com ramos de palmas, exclamando: 'Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor, o rei de Israel!' "

A prática é extremamente difundida como festa litúrgica e assim um número incontável de capelas, igrejas, paróquias a executam: fieis acompanhando a imagem triunfal do Cristo ou a custódia; clero paramentado, canto entusiasmado de hinos, ramos acenando ao ar. Os próprios templos se ornam enramados neste dia. 

Sobre a antiguidade desta procissão servirá de testemunho o texto de Saint Hilaire, referindo-se à Procissão do Domingo de Ramos nas primeiras décadas do século XIX em Capitinga, próximo a Piunhi: 

"Encontrei muita gente que de lá voltava e levava grandes frondes de palmeira bentas. Estas verdadeiras palmas, em uso em todo o país lembram muito melhor a origem da festa do que os mesquinhos ramos de bucho ou loureiro que se distribuem nas nossas igrejas". (p.157)

Informou ainda que o bucho era distribuído nas igrejas do norte francês e o loureiro nas do sul da França. 

Estas festas em verdade tinham imenso valor no interior nacional. Ramos abre a Semana Santa, que culmina com a Festa da Páscoa. Disse o mesmo autor acerca das famílias rurais indo à missa: 

"No sertão, onde as fazendas são frequentemente bastante afastadas da paróquia, só os homens aí vão no decorrer do ano; mas nas duas grandes festas, Natal e Páscoa, a família inteira empreende a viagem; empilham-se as mulheres e crianças nos carros de boi; passam-se alguns dias na casa que se possui na vila, e, em seguida, volta-se à habitação." (p.165)

Pela mesma época, com pouca diferença, Debret também confirmava a popularidade da festa pascoal: 

"As festas de Natal e da Páscoa, sempre favorecidas no Brasil por um tempo magnífico, constituem épocas de divertimentos tanto mais generalizados quanto provocam mais de uma semana de interrupção no trabalho" (etc., p.144)

Essas palmas (Cycas), ramos de várias palmeiras (areca, aricanga, indaiá e outras), além de vegetais aromáticos (manjericão, rosmaninho, alecrim), usadas e abençoadas na procissão deste dia, o povo guarda em casa o ano todo crendo no seu poder de afugentar os males. Se é percebida uma presença estranha em casa, como um mal assombro, ou se uma forte tempestade ameaça estragos, basta queimar a palha benta de Ramos e sua fumaça, qual incenso sagrado, afugenta os malefícios. O poder desta palha vence no Domingo de Ramos do ano seguinte, quando ela deve ser substituída por outra. 







Fotografias 1 a 5 - Procissão de Ramos entre a Igreja de Nossa Senhora
do Rosário e a Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar, em São João del-Rei. 


Notas e Créditos

* Outros evangelhos também registraram esta passagem: Mc 11, 1-11; Lc 19, 29-40; Jo 12, 12-19
** Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotografias: Iago C.S. Passarelli, 09/04/2017

Referências Bibliográficas

Bíblia Sagrada. 6.ed. São Paulo: Ave Maria, 1965.

DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. 2.ed. São Paulo: Martins, 1972. v.3. 296p. Coleção Biblioteca Histórica Brasileira, n.2.

SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem às nascentes do Rio São Francisco e pela província de Goiás. Rio de Janeiro: Nacional, 1944. 343p. v.1, 157. Coleção Brasiliana, série 5ª, v.68. 

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Mascar fumo; cheirar rapé: outras formas de tabagismo

Além do hábito de fumar o tabagismo encontra outros desdobramentos menos comuns que costumam gerar curiosidade em muitos, por causa da estranheza que impõe: a prática de mascar fumo e de cheirar rapé, ambas em verdade caindo em ocaso ante a conscientização dos riscos à saúde que as campanhas veiculam e as próprias mudanças de costumes sociais. Ao uso do tabaco este blog dedicou uma postagem. (*)

No passado era comum, sobretudo nas áreas rurais, algumas pessoas carregarem consigo um pedaço (“lasca”) de fumo de rolo e dele cortarem uma pequena porção e lançarem-no à boca. Por longo tempo põe-se a mastigá-lo, lentamente. De tanto em tanto cospem um bocado de saliva saturada do caldo produzido. O hábito considerado repulsivo por muitos, aparenta origem indígena. Assim como o hábito de fumar, o de mascar também gera seu vício e os praticantes o fazem por muitos e muitos anos de sua vida. Estes garantem que traz benefícios aos dentes, afastando cáries, tanto mais ao intestino, por isentá-lo dos vermes. Portanto, sob este aspecto, é mais um remédio popular. A bem da verdade é um hábito em franco desaparecimento, que apenas sobrevive em lugares recônditos entre pessoas bastante idosas, conforme observação no Campo das Vertentes.

CASCUDO [s.d] dedicou um verbete ao assunto denotando sua origem tupi, difundida em formas e territórios diversos, mas apontou práticas semelhantes "pela Europa do norte, Inglaterra, Holanda". Fez sua aproximação desde a masca do fumo como outras folhas até nosso chiclete. Citando o relato de Antonil, atestou sua antiguidade entre nós: "homens há que parece não podem viver sem esse quinto elemento; cachimbando a qualquer hora em casa, e nos cachimbos, mascando as suas folhas, usando de torcidas, e enchendo os narizes deste pó." (in: Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas, 1711). 

Já o cheirar rapé ainda se encontra, na cidade e nas roças. Também rareou seu uso mas em relação ao marcar fumo é nitidamente mais usado. Rapé é basicamente tabaco torrado reduzido a pó. É acondicionado em pequeninas latas com tampa, para se trazer na algibeira, no bolso da calça, camisa ou paletó. Outrora, quando era um hábito muito arraigado, traziam-no também em pequenas bolsas de couro ou tecido de trama bem fechada, que chamavam “bocetas” (de bolseta, ou seja, pequena bolsa de guardar objetos, à semelhança de um porta-moedas ou porta-níquel).

O rapé se adquire pronto em tabacarias, mas onde as lojas especializadas em artigos para fumantes não existem, o consumidor produz o seu próprio. O modo artesanal é o seguinte: pica-se o fumo de rolo em pedaços bem pequenos, que são a seguir levados a uma frigideira não untada. Ao fogo o fumo deve ser mexido para não queimar. Deve ser torrado de maneira uniforme. Na sequência, o conteúdo da frigideira é despejado em superfície plana onde é moído por ação do movimento de vai-e-vem de uma garrafa deitada. A seguir o fumo já reduzido a pó é coado para remoção de grânulos maiores, que podem ser novamente submetido à moagem. A substância deve ser bem homogênea.

Cheira-se tomando um pequeno punhado entre a ponta dos dedos polegar e indicador e leva-se a uma narina, aspirando, depois igualmente na outra. Alguns usam tampar uma narina com um dedo enquanto se aspira com a outra. Cheiradores de rapé costumam compartilhar entre si provas de seu produto. Oferecem ao colega: “dá uma cheiradinha no meu rapé, compadre” ou “experimenta este rapé”. Faz parte, como um ritual de compartilhamento e muitos tem prazer nisto.

O rapé induz ao espirro. É muito comum que após cheirar o indivíduo se ponha a espirrar uma ou mais vezes; tanto mais, julga que é melhor o produto, pela qualidade do fumo empregado, mais forte ou mais fraco. Justamente ao espirro atribuem empiricamente o processo de limpeza corporal. Acreditam os usuários que o rapé desobstrui as vias respiratórias e contribui para expectoração.

São especialmente procurados os rapés que possuem acréscimo de certos pós adicionais, produzidos a partir de plantas de uso na medicina popular: umburana, cânfora, eucalipto. A estes dão maior valor como remédio, para combate a alergias respiratórias, rinite, sinusite. Eis a crença popular dos usuários. Para sinusite é especialmente procurado o rapé de girassol, que não leva tabaco. A semente do girassol deve ter a casca quebrada para extração do “miolo” (gérmen) e este é torrado e moído da mesma forma.

Nunca é demais afirmar que este blog não recomenda nenhuma destas práticas pelos efeitos maléficos que o tabaco gera sobre a saúde humana e o vício que produz. Não há comprovação científica da eficácia medicinal do hábito de fumar, mascar fumo ou cheirar rapé, tão pouco dosagem segura para uso. O registro nesta página é de natureza exclusivamente etnográfica, pelo valor folclórico que traz em si.

Um punhado de rapé na latinha e uma lasca de fumo de rolo.
São João del-Rei/MG, 03/04/2017. 

Notas e Créditos

* Leia a neste blog a respeito do fumo:
  FOLCLORE DO TABACO: as múltiplas faces do fumo na cultura popular

**Texto e fotografia: Ulisses Passarelli


Referência Bibliográfica

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. 930p.

sábado, 1 de abril de 2017

Dia da Mentira: desordem e ruptura

Primeiro de abril é conhecido por Dia da Mentira desde longa data, conforme um costume de origem europeia, que os colonizadores do velho mundo nos trouxeram. Neste dia é bastante comum se contar mentiras, fazer pilhérias, pregar peças de puro motejo, sempre simulando ser o fato narrado uma verdade, mas realmente é uma inverdade. 

As crianças são especialmente adeptas das brincadeiras deste dia, aprontando troças com muito bom humor sobre colegas. Alguns mais espertos, já desconfiados pela data, descobrem a farsa e desmascaram o brincalhão; outros mais são vitimados e sob assuada dos colegas tem que aguentar a onda de zombaria que se abate sobre ele. 

Nas escolas dizem a um que a diretora o chama e logo volta da diretoria sob apupos; a outro, que teve nota baixíssima numa certa prova e põe crédito, mas logo descobre a trapalhada que lhe armaram e assim vai. 

Adultos também embarcam na brincadeira, sobretudo entre amigos próximos, colegas de trabalho, gente da mesma empresa. É o cônjuge que descobriu a existência de um amante, é o patrão que viu na câmera de segurança uma brincadeira indevida; é o inimigo que simula reaproximação; é o convite para uma festa que não existe... tudo mentira de primeiro de abril. Na cultura popular ela tem licença livre nesse dia e corre solta, sem punições, sem censuras. 

Ainda nos anos setenta em São João del-Rei, quando um moleque caía numa destas ciladas, logo os demais punham-se ao motejo cantarolando: "É primeiro de abril! Sua calça caiu, seu pai não viu e sua mãe vestiu!!!" Era a revelação da trama deixando ora envergonhada ora enfurecida a criança vitimada. 

Sobre a origem do Dia da Mentira explica o mestre folclorista Luís da Câmara Cascudo sua procedência europeia, francesa, posteriormente difundida com grande amplitude: 


"até a segunda metade do séc. XVI o dia primeiro de abril começava o ano. Abril, aperire, abrir. O Rei Carlos IX, por uma ordonnance do Roussillon, Dauphiné, em 1564, determinou que o primeiro de janeiro iniciasse o ano na França, daí por diante. Com as consequências da transferência de festas e solenidades do Ano-Novo, muita gente ficou perturbada com o desaparecimento das datas tradicionais, retardando entendimento e uso."


Logo, primeiro de abril ficou sendo o falso dia de ano-novo, motivo para presentes irreais e festas simuladas. O costume de brincar com o assunto permaneceu, perdida a motivação inicial. O primeiro de abril é a data que rompe com a ordem reinante, derruba momentaneamente a regra social da verdade, como se fosse um protesto contra ela.  


Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli

Referências bibliográficas

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro; Ediouro, [s.d.]. 930p. Verbete: Primeiro de Abril.