Pastorinhas
da Vargem de Baixo [I]
Ulisses Passarelli
Consta
por tradição oral que as pastorinhas em Tiradentes-MG vem de longa data, que
porém, não sabe-se qual é. Não descobri o nome de sua primeira organizadora,
nem tão pouco de qual modelo se valeu para introduzir este folguedo natalino no
histórico lugar, ou ainda, quando foi desativado.
Fato
é que, na década de 1980, depois de muitos anos de paradeiro, com base no grupo
antigo, foi reativada esta manifestação folclórica pela senhora Alice Lima
Barbosa, no centro da cidade. Nova paralisação seguiu-se.
Em
1990 formou-se novo grupo, pelos esforços da sra. Ana de Meneses (enfermeira de
profissão; atualmente vereadora), natural de Dores de Ganhães-MG. Pessoa de boa
vontade, trabalhadora, muito tem se dedicado a serviços comunitários, com mães
e crianças, desde religião a futebol, passando por quadrilha e pastorinhas.
Explica que aprendeu o folguedo com Dona Inácia, do Bairro Cascalho, que
participara do primeiro grupo e a ensinou tal e qual como ainda se conserva
(ano 2000), no Bairro Vargem de Baixo. Tal bairro foi bem humilde mas já
apresenta vários melhoramentos, embora algumas crianças participantes sejam
carentes. Fica à margem esquerda do Rio das Mortes, tendo ao lado a linha
férrea da velha e tradicional Maria-fumaça, a nossa querida “Bitolinha”.
O
número médio de participantes é de 25 crianças ou pouco mais com idade em torno
de 7 a 12 anos, divididas entre os seguintes papéis: os masculinos – quatro
Pastores (meninos), trajados de calça e colete marrons, camisa branca; três
garotos como Reis Magos vestidos de túnica nas cores branca, bege e púrpura,
com manto amarronzado, cingidos de turbante ou de coroa de papelão coberta de
papel dourado. Calçam sandálias. Na mão trazem os presentes: uma caixinha
dourada ou baúzinho (ouro), uma naveta de igreja (incenso) e um ramo (mirra).
Os femininos – quatro Ciganas com vestidos longos, rodados e plissados, mangas
curtas, cheias, com elástico a altura do antebraço; pala e cabeção no vestido;
lenço à cabeça. Tudo em tecido de estampa vivaz, bem colorida de bolinhas.
Brincos de argola. Tamancos. Laçarote na cintura. Medalhinhas douradas na
fronte. Na mão pandeiros enfeitados de fitas multicores. Uma Libertina, com
longa túnica, calçada de sandália e a cabeça guarnecida por um pano longo que
lhe cai sobre o busto. Cores sempre claras, tons pastéis. Sua figura lembra a
mulher do Oriente Médio. Um número variável de Pastoras, com roupas de saia a
altura dos joelhos, de pano com estampado miúdo – verde, azul ou vermelho – e,
do mesmo tecido, um lenço à cabeça. Blusa e aventais brancos, manga curta, meio
bufante, gola aberta em “U”. Calçam tamanquinhos de madeira com correia de
couro e carregam cestinhos de papelão cheios de flores e revestidos da mesma
fazenda da saia.
O
texto é simples, desenvolvido em cerca de quinze minutos ou pouco mais, com
limitados pontos coincidentes com outras pastorinhas do Sudeste conforme a
bibliografia consultada, senão nalgumas passagens muito generalizadas em outros
grupos, conforme está indicado.
Apresentam-se
no período natalino, em visita a casas, igrejas e presépios. Em Tiradentes é
possível ver pastorinhas e folias de Reis cantando pelo Natal, dando-lhe um
cunho tão tradicional, com o apoio do pároco, Revº. Padre
Ademir Sebastião Longatti. Chegando o grupo ao lugar onde cantarão, adiantam-se
dois Pastores e virados para a assistência, declamam:
Jesus nasceu quando o galo na terra
cantou!
Noite de
paz, noite de amor, noite de luz!
Venham
todos cantar!
É Natal do
Menino Jesus!
Pode
haver mais declamação, de fundo religioso e espírito natalino. Então, entra
cantando todo o grupo, em fila dupla paralela, na seguinte ordem: Pastores,
Pastoras, Libertina, Ciganas e Magos. A organizadora procura colocar as
crianças nas alas em ordem crescente de altura corporal. O canto de entrada é o
seguinte [II] :
Natal, Natal!
|
Estou
indo
|
Nasceu
Jesus!
|
para
Belém,
|
Nasceu a
vida,
|
nasceu
Jesus
|
|
p’ra
nosso bem!
|
Entram em marcha ao som deste canto
na igreja ou casa visitada. Vale notar que não há acompanhamento de
instrumentos. A música é apenas vocal.
Nova
posição: colunas – três ou quatro – ficando as crianças maiores nas colunas de
trás e as menores na frente. Duas pastoras se adiantam e declamam olhando para
o altar, presépio ou imagem:
Quero o
céu hoje inteiro se abrindo,
|
Quero
ouvir esta noite os arcanjos
|
Toda luz
que vem lá do céu.
|
De
harmonia que só Deus escuta;
|
Que venha
a nós a vossa luz!
|
Quero
ouvir os anjos falando com anjos
|
Deus
possa ser o céu mais lindo
|
Pois
nasceu nosso Deus numa gruta!
|
Que
nasceu Jesus em Belém.
|
|
Pode-se
acrescer mais declamação. As pastorinhas então cantam louvando:
Vinte e quatro
de dezembro
|
Os
anjinhos lá do céu
|
Salve, oh
Maria,
|
Meia-noite,
deu sinal,
|
Em um
coro angelical
|
Virgem de
Nazaré!
|
Rompe
agora a primavera
|
Estão
cantando mais alegres
|
É Santa
Mãe de Cristo,
|
|
Nesta noite de Natal!
|
Esposa de
São José.
|
|
|
|
Vamos,
pastorinhas, vamos,
|
Viva,
Jesus!
|
Viva, etc.
|
Vamos
adorar!
|
Viva, Jesus!
|
|
As boas
novas anunciar!
|
Em sua
lapinha
|
|
|
|
|
Quando
se visita uma casa há este canto específico para chegar:
Senhora
dona da casa
|
Meu Jesus
por mim nascido
|
Dê
licença para entrar;
|
Na
lapinha de Belém,
|
Viemos de
longes terras
|
Foi
nascer tão pobrezinho
|
O
presépio visitar.
|
Para nos
enriquecer.
|
|
|
Somos
pobres pastorinhas
|
Na cidade
de Belém
|
Nada
temos para dar;
|
Ainda
temos que chegar
|
Damos
flores a Jesus
|
E por
isso não podemos,
|
Paz
pedimos para este lar.
|
Não
podemos demorar.
|
(Refrão:)
|
Gloria in excelsis Deo!
|
Gloria in excelsis Deo!
|
Os
cantos são acompanhados de expressiva gesticulação das pastoras, reforçando a
mensagem dos versos. Exemplos: em “os anjinhos lá do céu”, apontam para cima;
“viva, Jesus!”, acenam as mãos, sacudindo-as; “salve, oh Maria!”, correm o
braço do peito à direita, numa reverência; “somos pobres pastorinhas”, mãos no
peito, girando o tronco; “nada temos para dar”, fazem sinal de negação com o
indicador; “damos flores a Jesus”, indicam as cestinhas de flores de carregam.
Não dançam. Só gesticulam.
Feita
a louvação apresentam-se as Ciganas, que se destacam do grupo. Cantam à parte,
paradas:
Daí uma esmola
|
A pobre cigana,
|
Pois vós bem sabes BIS
|
Que ela não engana!
|
Então
entra o refrão cantado pelas Pastoras e Ciganas, enquanto estas batem os
pandeiros, acompanhando com passos sincronizados à direita e esquerda:
Nos causa gosto,
|
Nos causa alegria,
|
Ver que é nascido BIS
|
O Filho de Maria!
|
Param
de cantar e tocar os pandeiros. Segue no mesmo esquema alternando estrofe e
refrão, este sempre com toque dos pandeiros e dança:
Eu peço
uma esmola
|
Eu peço
ao senhor
|
Eu peço
ao senhor
|
Pelo amor
de Deus
|
Que dê-me
um vintém,
|
Que dê-me
um tostão,
|
Que a
pobre cigana
|
Que a
pobre cigana
|
Que a
pobre cigana
|
|
Chegou de
Belém.
|
Hoje não
tem pão.
|
Recolhem
no pandeiro as esmolas acaso ganhas. Voltam às colunas.
Sai a
Libertina do meio das crianças e em posição de destaque, canta com uma
entonação muito marcante, dramática, virando-se lentamente para um e outro lado
com expressiva movimentação dos braços. Canta sozinha mas no refrão é ajudada
pelas pastoras que batem os pés em marcação de passo. Seus tamancos geram um
efeito de percussão:
Eu sou
uma libertina,
|
Ando aqui
peregrinando,
|
Perdoai-me,
oh Cristo!
|
Venho de
Jerusalém,
|
Guiada
por uma luz,
|
Dai-me
vosso perdão;
|
Mas quero
emendar-me
|
Por um
astro cintilante,
|
Que eu
vos dou em troca BIS
|
Daqui
para Belém!
|
Que me
mostrou Jesus!
|
O meu
coroação!
|
(Refrão:)
|
Daí-me oh Cristo!
|
Daí-me vosso perdão;
|
Que eu vos dou em troca BIS
|
O meu coração!
|
A
parte da Libertina é conhecida noutras pastorinhas, conquanto não ocorra nos
grupos das vizinhanças de Tiradentes. Está nitidamente fragmentada pois noutras
versões existe uma cena anterior onde as Pastoras ao seguirem para Belém para
louvar o Menino Jesus, perdem uma companheira, que entrega-se à libertinagem
por influência de Satanás, que chega a figurar na dramatização. Só depois de
outras passagens é que ela percebe seu erro pecaminoso e pede perdão,
arrependida, querendo seguir o mesmo caminho das companheiras. Nítido fim
educativo, catequizador. Na Vargem de Baixo apresenta-se apenas a parte final
deste entremez, desconhecendo-se a forma completa. Sempre foi assim em
Tiradentes ou a teatralização inteira perdeu-se (ou foi abolida) na transmissão
desta manifestação folclórica?
Encerra-se
com o número dos Três Reis. Também se adiantam para cantar e havendo presépio,
vão até ele onde depositam seus presentes.
Os Reis
Magos do Oriente
|
Lá das
bandas do oriente,
|
Esta
mirra perfumosa
|
Guiados
por uma luz,
|
Uma
estrela nos guiou.
|
Em vossos
pés depositar,
|
Vem
curvar-se reverentes
|
Ofertar
ao Deus-Menino
|
Como prova de amizade
|
Ao seu
rei, o Bom Jesus.
|
Este ouro
que vos dou.
|
Vossas
glórias incensar.
|
Retiram-se
para cantar noutra paragem, podendo então cantar uma música de igreja na saída.
As
pastorinhas, por vezes prefixadas com as designações “cordão”, “reis” e “folia”
de pastorinhas, é manifestação típica do Sudeste do Brasil e se diferencia das
versões de outras áreas. A do Norte é a que mais se lhe assemelha. Os nomes
mudam: pastoral, pastoril, baile-pastoril, lapinha. A forma do Sudeste é hoje
rara. Reduziu-se muito nos quatro estados desta região, sendo as terras
mineiras seu maior reduto na atualidade... E causa alegria saber que as
Vertentes contribuem nesta lista de sobreviventes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRANDÃO, Théo. O
Reisado Alagoano.
LAMAS, Dulce Martins. Pastorinhas, pastoris, presépios e lapinhas. Rio de Janeiro:
Olímpica, 1978. 173p.
PASCOAL, Ednéa do Marco. As pastorinhas: estudo do folclore angrense. Rio de Janeiro:
Olímpica, 1975. 93p.
PASSARELLI, Ulisses. Pastorinhas do Menino Jesus. In: Carranca.
Belo Horizonte, Comissão Mineira de Folclore, n.23, jul.1997, p.8.
_______ . Pastorinhas de Dona Glorinha. In: Boletim
da Comissão Mineira de Folclore, Belo Horizonte, n.18, nov.1997, p.184-200.
PAZ, Ermelinda Azevedo. As pastorinhas de Realengo. Rio de Janeiro: UFRJ/FUNARTE, 1987.
137p.
REZENDE, Angélica de. Lembrando o Natal e suas tradições. Belo Horizonte: Sion, [s.d.].
110p.
[I] - In: Tradição. São João del-Rei, Subcomissão
Vertentes de Folclore, n. 4, jan. / 2000.
[II] - O folclorista Américo Pellegrini Filho em “Turismo
Cultural em Tiradentes: estudo de metodologia aplicada”, livro publicado em São
Paulo pela Editora Manole, em 2000,
incluiu no seu livro um tópico dedicado às pastorinhas, citando este texto
de minha autoria. Consta em sua aprimorada pesquisa o registro musical em pauta
dos cantos deste grupo folclórico.
Os Três Reis Magos, personagens das Pastorinhas da Vargem de Baixo.
Foto: João Hipólito, 1999. Recorte: Ulisses Passarelli, 2012.
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