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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Velhas medidas

Em sua interação com o ambiente e com os semelhantes, o homem criou a necessidade das medidas. Distâncias, demarcações, pesos, alturas... para obras, comércio, propriedade, arquitetura, quantidade.

Mundo afora existem ou existiram muitas medidas, algumas organizadas de forma sistemática, outras de nomes curiosos, desses que dá vontade de saber quanto é, ou quanto vale: côvado, arrátel, nó, balaio...

Algumas das velhas medidas não tinham a exatidão das atuais. Assim sendo exigia-se das autoridades ações regulamentares, exercidas pelos almotacéis. Eram membros do Senado da Câmara, como se chamava na terminologia colonial a atual Câmara Municipal, mas com a diferença de agregar os três poderes. O almotacel tinha a prerrogativa de fiscalizar o sistema de pesos e medidas e ainda de tabelar o preço dos alimentos e regular sua distribuição, com o direito a sair pela rua em correição munido da vara própria, como acontecia em São João del-Rei e o demonstrou GAIO SOBRINHO (2010): "Por vinte oitavas de ouro que deu por quatro varas de Almotacés ao Procurador João Pinto do Rego por um mandato de 18 de dezembro de 1720." (recibo 168, pg.29). Outro exemplo: (...) "nesta vila de São João del-Rei, Minas do Rio das Mortes, e sendo aí em as casas do Juiz Ordinário, pela ordenação José Martins Duarte, aonde foram vindos Francisco Carvalho da Silva e Simão de Oliveira Pereira, para haverem tomar posse das varas de Almotacés" (acórdão 01, pg.117, 01/09/1740).

No auto de correição de 13/03/1740, nesta cidade, segundo a mesma fonte, consta que todos os membros do dito senado "em Corpo de Camara sahirão compostos e alvorados com as varas da Camara e derão correyção Geral pellas Ruas publicas desta Villa em tudo que lhe pertencia" ... e é assim que, o procurador, o alcaide, o aferidor, o almotacel e mais vereadores, publicamente punham-se a fiscalizar os erros de posturas nas ruas, punindo com ordens de multas, prisões e açoites.

"Dois pesos, duas medidas" é uma expressão popular muito usada nesta região para se referir às pessoas que agem de uma forma com o pobre e de outra com o rico, ou, de uma maneira com o humilde e de outra com o poderoso, sendo rigorosas com o primeiro e complacentes com o segundo. É uma expressão de opróbrio, lançada sobre o indivíduo parcial em suas atitudes: "fulano é homem de dois pesos e duas medidas." (*) Virá esta expressão da época dos almotacéis? Será que na aferição das medidas eles tratavam em igualdade pequenos e grandes comerciantes?

Nestas correições que aconteciam de tempos em tempos, os almotacéis verificavam os pesos e medidas dos comerciantes, no ato de aferir para bem geral da população. Neste mesmo auto supracitado, consta que Luiz Alves da Costa foi condenado a pagar três oitavas de ouro por não ter balança de pesar pólvora. Noutro auto, de 18/07/1809, a correição olhou se os vendeiros da vila de São João del-Rei estavam "correntes de suas licenças para as mesmas negociaçoins assim como também marcos balansas pesos e medidas tudo com aquella certeza e aseio que tem de obrigação estarem e juntamente examinarem se tem almotaçado para venderem pelos preços que se lhes determinar nas ditas Almotacerias sem que possam exceder as mesmas". Todas as citações supra se referem à obra do Professor Antônio Gaio Sobrinho. 

Foram numerosas e muito variáveis as velhas medidas. A variação ia com o tempo, sistema e região e por isto a vemos hoje por aproximação. Antigos documentos as revelam e o povo do interior ainda conserva algumas. Possivelmente a que ainda permanece com mais força seja a arroba. A palavra tem procedência árabe e como medida de massa equivale à quarta parte do quintal, ou seja, 25 libras (cada libra tem pouco mais de 453 gramas). A arroba não tem uma medida única pois varia em regiões espanholas e em Portugal. Adotamos a medida de 14,688kg (= 32 arrateis), na prática da pecuária arredondado para 15kg. "Boi de .... (tantas) arrobas"; "banda de porco de ... arrobas" (**). São expressões ainda muito comuns. 

A légua diminuiu seu uso mais ainda não perdeu de todo o prestígio. Medida predileta de distância, variando entre 6 e 7 km, tornou-se sinônimo de longínquo nas narrativas lendárias e nos contos populares: "o cavaleiro viajou léguas e léguas..." Nos primórdios das vilas do ciclo do ouro, a medição do próprio território jurisdicional se dava por légua. Assim, São João del-Rei foi estabelecida em vila no ano de 1713 com território demarcado no ano seguinte, de 2 léguas em quadra; a vizinha Tiradentes, então chamada São José del-Rei, em 1718, com meia légua em quadra, logo depois alterada para meia em circunferência, ensinou Canabrava Barreiros. A mudança foi motivo de longas discussões territoriais entre as duas câmaras devido à geração de uma sobreposição de área, gerando conflitos na área do Córrego.

O pião de ordinário se fazia a partir do pelourinho, símbolo da autoridade constituída. As terras concedidas pelo rei a fazendeiros que iam colonizar os ermos inóspitos eram verdadeiros latifúndios, também medidos em léguas, tantas de frente (testada) e tantas de fundo, para desenhar uma poligonal. Esses grandes lotes eram as sesmarias e quando se referiam a terrenos de mineração (bem menores) eram chamados "datas": uma data de terra. Cabia ao guarda-mor regular esta função, tal como o nosso pioneiro, fundador e patrono, Tomé Portes del-Rei.  

O alqueire é uma medida de terra que o hectare tende a derrubar por completo. Mas teimosamente o homem do campo ainda se refere às propriedades em alqueires, sobretudo na referência às fazendas maiores que sobrevivem ao fatiamento em sítios. Fala-se alhures em alqueire do norte, alqueire goiano (alqueirão), alqueire baiano, alqueire paulista e para nós interessa o alqueire mineiro, de 48.400m2

No serviço rural de capina de um terreno agrícola, mede-se de ordinário uma área chamada "tarefa", que no mínimo deve ser cumprida num dia. Bons capinadores conseguem cumpri-la e mais um tanto, talvez até outra tarefa. A tarefa de roça é medida com varas de bambu, que por sua vez são medidas em palmos (cerca de 20-22cm). Vara de 12 palmos, vara de 10 palmos. A tarefa é marcada no chão estendo a vara em alinhamento para formação de um quadrado de terreno: assim, uma tarefa de 12 varas tem a extensão de um quadro com 12 varas em cada face.

A dúzia era medida muito popular nos mercados para aquisição de frutas, tais como bananas e outras, substituída pelo peso, ante reclamações, que alegam a carestia que a mudança trouxe. A dúzia persiste em voga para a compra de ovos.

O pão era na unidade: tantos centavos um pão de sal, tantos um pão doce. Hoje é no peso. Diz o povo que aquilo que passa na balança traz miséria, referindo-se à fartura de outrora, quando os produtos vinham em sacas e balaios.

No tempo da safra de jabuticaba ainda vemos vendedores as oferecerem aos litros, medidos em latas de óleo de soja, aos fregueses, de porta em porta, ou estacionados nalgum logradouro público. Aqui em São João del-Rei ainda é comum, como em criança o via igualmente com a gabiroba, na entrada do verão e hoje a acerola. Fruta a litro!

Existem, por outro lado, medidas intangíveis, que se prendem ao simbolismo da linguagem: "vamos bater um dedo de prosa"... "me dá dois dedos de café"... "volto num minutinho"...

A título de mera curiosidade eis algumas medidas:

- Alqueire:dividi-se em duas modalidades mais conhecidas - alqueire mineiro: 48.400 m2 de terra e alqueire paulista: 24.200m2 de terra, embora existam outros tipos.
- Onça: como medida de líquidos equivale a aproximadamente 28 a 29 ml; como medida de massa varia de 28 a 31 gramas, aproximadamente.
- Jarda:medida de comprimento equivalente a 36 polegadas.
- Pé: medida de comprimento equivalente a 12 polegadas.
- Braça: 2,22 metros
- Quilate: como medida de massa equivale a 200 miligramas; no caso do ouro é medida de pureza, sendo que o puro tem 24 quilates.
- Légua: medida de distância equivalente a 3.000 braças, o que dá 6.600 m. Na prática o homem do campo considera a légua por arredondamento para 6 km.
- Litro: 1/40 do alqueire (terra). 
- Quarta: 10 litros de terra (quarta parte do alqueire)
- Dúzia: 12 unidades.
- Saca/saco: equivale a 40kg. 
- Polegada: 2,54 centímetros
- Milha: medida de distância aproximada em 1.609,344 metros.

Em São João del-Rei, segundo Antônio Gaio Sobrinho, na ata da sessão 35 da Câmara, de 26/06/1865, consta a leitura de uma circular ministerial que determinava a implantação do Sistema Métrico Francês em substituição ao sistema de pesos e medidas então vigente no império. A lei que impunha a mudança era a 1.157, exatamente de três anos antes.

Muitas gerações eram arraigadas ao sistema antigo de pesos e medidas. A mudança trouxe descontentamentos. No Nordeste do Brasil houve mesmo em alguns estados fortes manifestações populares contra a implantação do sistema métrico, que encarecera o produto final nas feiras e diminuíra o ganho dos comerciantes. Revoltosos promoviam ataques destruindo editais, quebrando as medidas e jogando fora os pesos. Ficou conhecida como a Revolta do Quebra-quilos. Aconteceu entre 1874-5 e foi sufocada pela repressão imperial.

Antigos pesos de balança. Acervo do autor. 

Referências Bibliográficas

BARREIROS, Eduardo Canabrava. As vilas del-Rei e a cidadania de Tiradentes. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1976.
GAIO SOBRINHO, Antônio. São João del-Rei através de documentos. São João del-Rei: UFSJ, 2010, 260p. p.36, 60, 138, 160-2.

Referências na Internet

Wikipédia. Acesso em 20/11/2014.

Notas e Créditos


* No lastro deste pensamento existe um provérbio nas Vertentes que prescreve: "pau que dá em Chico, dá em Francisco", ou seja, a punição pelo erro deve ser igual, indiferente de quem seja o culpado... Lembrando que, "Chico" é apelido derivado imediatamente de Francisco. 
** Banda: no sentido exposto indica a metade: uma banda - meio porco, cortado no sentido longitudinal. Termo muito usual na região. 
***Texto: Ulisses Passarelli
**** Fotografia: Iago C.S. Passarelli, 2014
***** Informante: José Cândido de Salles, 23/01/1999, Santa Cruz de Minas 

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