Bem vindo!

Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Marujos de terra firme


O mineiro é alvo de muita anedota por causa de sua vida interiorana, distante do mar. A primeira vez que o natural de Minas Gerais vê o mar e nele entra para um banho é motivo de piadas. Em nosso grande estado, o quarto em dimensão territorial, o único "mar" conhecido é "o de morros": montanhas e mais montanhas, ondulando a linha do horizonte a perder de vistas. 

O que dizer então da tradição mineira em torno dos marujos no interior continental? 

Fato é que nos meios folclóricos, talvez um tanto pelo desejo do mar, outro tanto pela influência dos colonos portugueses, que deixaram aqui fortíssima marca cultural (e eram grandes povos navegadores), várias tradições se construíram sobre a figura dos marinheiros. 

Assim, a cultura popular enumera entre as modalidades de congado, uma, que se liga pela temática às lides marítimas. Chamam-lhe conforme a região e a variante de marujos, marujos do rosário, marinheiros e ainda marujada. O congadeiro participante deste tipo de guarda é via de regra chamado "marujeiro". 

A extensão territorial de sua presença é vasta no Brasil e longe deste texto está a pretensão de historiá-los no país, pois desde autos quinhentistas de Portugal e vilancicos espanhóis de séculos atrás é possível rastrear suas origens. As matrizes temáticas e textuais trazidas ao Brasil sofreram aqui influências regionais, sobretudo pela força do elemento cultural afro-brasileiro, que adequou o costume das danças de marinheiros ao ciclo festivo do rosário e dos reis negros. 

No Pará é típico e tradicionalíssimo o grupo de marujada da região de Bragança; pelo imenso Nordeste do país, marujadas e suas versões mais desenvoltas, os fandangos e cheganças, estes mantendo mais fortemente o elemento ibérico, foram conhecidos desde o Piauí à Bahia, sobretudo ao longo da costa, já em franco ocaso. Em alguns estados sua força adentrou pelo seco sertão, a exemplo de Sergipe. Pelas terras são-franciscanas da Bahia, ao longo do vale do grande Rio da Integração Nacional, as marujadas são ainda vivas e vivazes, com sua rítmica característica e chapéus multicores. 

Daí para baixo, Minas é o grande celeiro, desde o norte do estado, da zona de Montes Claros, e mais além até Itamarandiba, daí ao vale do São Francisco e deste rumo sul às cabeceiras, posto que no sudoeste é frequente para as bandas de Passos, Itaú de Minas e Guaxupé. No centro-oeste também é conhecido, como se depreende de vários grupos a partir da área de Itapecerica. No centro do estado até o meio-norte também é muito difundido, de Congonhas do Norte, São Gonçalo do Rio Preto, Diamantina, Serro para a área metropolitana (Roça Grande, General Carneiro, Vespasiano, etc.), onde se emenda com os numerosos grupos do Quadrilátero Ferrífero até bem abaixo, esbarrando no limite leste dos Campos das Vertentes, em Carandaí, Caranaíba e Barbacena. Conselheiro Lafaiete é um grande centro das guardas de marujos. Pelo interior das Vertentes o destaque é o grupo de Dores de Campos

Este congado, ora com e ora sem entrecho dramático com cenas de lutas de espadas e disputas de poder entre personagens de nomes militarizados, varia de indumentária à marinheiro, de branquinho, quépis, casquetes, caxangás, palas com debruns azuis e pequenas âncoras aplicadas, até uma farda distinta, como prevalece no citado Quadrilátero Ferrífero até as Vertentes: de quépi, muito enfeitado em belos padrões de desenhos de lantejoulas e outros bordados de vidrilhos, com um longo jogo de fitas caindo pela nuca quase até os pés, cujo balançar confere um belo efeito visual; roupa branca em geral, mas não obrigatoriamente; longas faixas de crochê de cores variegadas trespassadas do ombro ao peito, presa na cintura do lado oposto e de pontas soltas e pendentes, terminadas com pompons ou franjas quase rente ao solo. 

Por aqui nas Vertentes os marujos tem a percussão por base musical, com muitos tambores. São três filas de dançantes que trabalham com várias coreografias ensaiadas e mormente balançam o corpo em sincronia como se imitassem o movimento de um navio ao sabor das ondas. 

A temática dos versos alude como todo congado aos santos protetores, Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia e Nossa Senhora Aparecida, aos reis e rainhas, como também a assuntos que evocam o oceano. É comum ouvir cantos que falam em remar, areia, sereia, mar, embarcações ...


"A sereia,
ela mora d'outro lado do mar;
para ver a sereia,
marinheiro tem que remar..."
(marujos "N.S.da Guia", Carandaí, 2010)

"Tem chorado, marinheiro ...
Chora com muita razão!
Marinheiro que vai para a guerra,
ai... não sabe se volta ou não!"
(marujos "N.S.Aparecida", Conselheiro Lafaiete, 1997)


Fato é que mesmo nos grupos de congados que não são marujos os temas correlatos se apresentam eventualmente: 

"Marinheiro do mar,
que brinca bem,
puxa fieira, 
reinado en'vém!"
(congo, Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno (São João del-Rei), 2014)

"Ôh, marinheiro, 
que leva nessa canoa?
Leva ouro, leva prata,
leva muita coisa boa!"
(moçambique, Passa Tempo, 2011)

"Ôh, marinheiro!
Marinheiro na beira do mar..."
(catupé, Coronel Xavier Chaves, 1998)


A presença dos marujos no conjunto dos congados é entendida e justificada pelos congadeiros em geral, em razão das tenebrosas histórias dos navios negreiros, mas localmente surgem outras explicações.

Além do significado supra, o tema dos marinheiros também aparece noutro campo: nos trabalhos religiosos dos terreiros de matriz africana. Uma das sete linhas da umbanda é a de Iemanjá e sob seu comando uma das sete falanges é a dos marinheiros, conjunto de espíritos de antigos marinheiros (de fato!). São guias da direita, que quando incorporam no médium se manifestam com gritos e gírias próprios. Gostam de dançar passos de marujada e de danças antigas, em voga nas tabernas portuárias de antanho. Fumam charuto ou cigarro comum, de papel, tomam cerveja ou vinho, tendo a toalha branca de trabalho enrolada na garrafa. A oferenda inclui um peixe frito num prato branco, sem tempero algum. É frito sem sal, que só se põe na hora da entrega sob a forma de um delicado filete, salpicado sobre o peixe na longitudinal, desde a cabeça ao rabo. O chefe da falange dos marinheiros é Tarimá (ordenança de Iemanjá), coordenando as ações de vários outros marinheiros: Zé da Proa, Martim Pescador, Maresia, etc. Um ponto de abertura de sua linha: 

"Vou por meu barco n'água,
para navegar,
vou pedir licença a Zambi,
proteção de Iemanjá!

Iemanjá! 
Ôh, Iemanjá!
Rainha das Ondas, 
Sereia do Mar!"
(São João del-Rei, 1999)

Por fim, embora o assunto dos marinheiros seja vasto e contemple muito mais considerações e conteúdo, aqui apenas passado em breve revista, resta dizer que aqui em São João del-Rei o termo "marinheiro" tem ainda um emprego inusitado, no âmbito do linguajar popular: chama-se assim aos grãos escuros de arroz, destoando de imediato do visual dos grãos típicos, alvos, quando se vai escolher no processo de limpeza, antes de lavar para o cozimento. Diz-se: "achei um marinheiro..." Existe ainda a palavra "amarujo", uma referência ao sabor amargo não intenso. Assim, em referência à conhecida fruta cítrica: "a lima tem um amarujo..."

1- Marujos "Santa Efigênia" de Barbacena/MG, 18/08/1996.
Festa de N.S.do Rosário, Bairro São Geraldo, São João del-Rei/MG. 

2- Marujos "Sereia do Mar" de Congonhas/MG, 11/06/2011.
Festa do Divino, Bairro Matosinhos, São João del-Rei/MG. 

3- Marujada de São Brás do Suaçuí/MG, 30/05/2004.
Festa do Divino, Bairro Matosinhos, São João del-Rei/MG. 

4- "Guarda de Marinheiro de São Jorge", de Vespasiano/MG, 30/06/2013.
Festa do Rosário, Ibituruna/MG.

5- "Guarda de Marujos São Sebastião", General Carneiro (Sabará/MG), 09/01/2010.
Festa do Rosário, Padre Faria (Ouro Preto/MG).

6- "Banda de Congado São Francisco de Assis e Nossa Senhora Aparecida", Ouro Branco/MG, 09/01/2010.
Festa do Rosário, Padre Faria (Ouro Preto/MG).

7- Marujos, Santana dos Montes/MG, julho/1992.
Festival de Congado de Conselheiro Lafaiete/MG.

8- Marujos, Alto Rio Doce/MG, julho/1992.
Festival de Congado de Conselheiro Lafaiete/MG. 

9- Marujos, Gajé (Conselheiro Lafaiete/MG), julho/1992.
Festival de Congado de Conselheiro Lafaiete/MG. 

10- Marujos, Caranaíba/MG, julho/1992.
Festival de Congado de Conselheiro Lafaiete/MG. 

11- Marujos, Barra do Itaberaba/MG, julho/1992.
Festival de Congado de Conselheiro Lafaiete/MG. 

12- Marujos, Catas Altas da Noruega/MG, julho/1992.
Festival de Congado de Conselheiro Lafaiete/MG. 

13- Marujos, Miguel Burnier (Ouro Preto/MG), julho/1992.
Festival de Congado de Conselheiro Lafaiete/MG. 

14- Marujos, Senhora de Oliveira/MG, julho/1992.
Festival de Congado de Conselheiro Lafaiete/MG. 

15- "Banda de Congada N.S. do Rosário", Dores de Campos/MG,23/10/2010.
Festa do Rosário em Dores de Campos/MG. 

16- "Guarda Nossa Senhora da Guia", Carandaí/MG, 23/10/2010.
Festa do Rosário em Dores de Campos/MG. 

Notas e Créditos

* Texto e foto: Ulisses Passarelli
** Fotografias: 3- David Passarelli; 2- Maria Aparecida de Salles Passarelli; demais fotografias - Ulisses Passarelli
*** Assista aos vídeos abaixo:

Marujos, Conselheiro Lafaiete

Marujos, Carandaí

Nenhum comentário:

Postar um comentário