Na Mesorregião Campo das Vertentes, é conhecido pelo nome de cabaça [1] o fruto seco de algumas abóboras, que são plantas trepadeiras da família Cucurbitacea, gênero Lagenaria (seis espécies) e a espécie Benincasa hispida (abóbora d'água). Em algumas regiões a cabaça é chamada de porungo. A voz do povo distingue e nomina algumas variedades de forma, dentre as quais:
- “cabaça de pescoço”: com uma parte bojuda e outra com intensa constrição, muito procurada para fazer recipientes para líquidos, à guisa de um cantil;
- “marimba”: cabaça longa e estreita, por vezes curva, de largo uso ornamental (envernizada ou pintada). Por sua forma representam uma serpente com ela. Uma única referência oral apontou para seu uso na confecção de uma espécie de instrumento de sopro primitivo, com perfurações para interpor os dedos na vedação e liberação do ar como numa flauta doce. Teria sido usada há aproximadamente um século, em um extinto grupo de congo na cidade de São Tiago, cuja liderança era conhecido por "Rafaelzinho" [2];
- “cabeça de negro”: designação muito antiga da cabaça arredondada. Serrada ao meio é preferida para confecção de recipiente utilitários, semelhantes a tigelas. Além do uso doméstico tem largo emprego nos terreiros de religiões de matriz africana para acondicionar oferendas e bebidas ofertadas às entidades espirituais, dentre outros usos [3];
- "cabacinha": pequeninas cabaças ideais para ter as metades serradas, usadas como recipientes; medida para tomar cachaça.
Serradas ao meio em linha reta formam como que duas tigelas, chamadas “cuias” (do linguajar indígena, ku'ia); se são serradas ao meio não em linha reta mas em zigue-zague, formam uma “cumbuca”, onde as duas metades se fecham pelos encaixes denteados, intertravando-se. Cuias e cumbucas tem largo uso na cozinha caipira, como medida ou vasilhame, para o fubá, o arroz, o feijão, a canjiquinha, a verdura picada para ser refogada.
As cabaças no artesanato servem para compor, quando inteiras, o corpo de bonecos e galinhas e, quando serradas, formam fundo para as peças de uma lapinha ou presépio. Santa Cruz de Minas é um grande polo produtor desse artesanato. Exemplares de maior dimensão se prestam a caixa de ressonância para instrumentos musicais de cunho artesanal.
As cabaças tem largo emprego na confecção de amuletos e guias. Seu recipiente fechado simboliza o segredo guardado da profanização; indica a circunscrição da magia, o seu isolamento de influências negativas exteriores. As mirongas (firmezas) que guardam em seu interior são inconfessáveis: sejam pequenos objetos, orações escritas, sementes, pós, etc. Também é muito usada no culto de Exu. Alguns pontos de firmeza, cantados em São João del-Rei, revelam o ato de serrar para produzir cuias:
Ai, eu serrei coco,
pra cuia fazê,
pra lavá garapa
pro vovô bebê.
(Congado: Catupé)
Eu tava serrando coco,
olhando pra baianinha,
a serra saiu do prumo,
o coco saiu da linha.
(Terreiro: Linha dos Cangaceiros)
Por fim é bom lembrar que as queijarias produzem o queijo-cavalo, algo semelhante à muçarela, mas disposto em forma de uma cabaça de pescoço, conservado pendente pela constrição. Por isto mesmo, seu nome mais popular é "queijo-cabacinha".
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1- Galinha pintada, com corpo feito de cabaça e detalhes de biscuit.
Artesanato figurativo de Santa Cruz de Minas. Déc.2000.
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2- Detalhe de um réu-réu, instrumento usado nas encomendações de almas rurais:
uma peça denteada ao centro, em forma estrelada, é recortada de um pedaço de cabaça
e produz o som ao girar, passando pela lasca de taquara. Ponte Nova (Bias Fortes/MG).
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3- Cuia, vista pela face côncava (esquerda) e convexa (direita).
Exemplar envernizado externamente. São João del-Rei.
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4- Pequenas cuias de tomar cachaça,
feitas de cabacinhas. São João del-Rei.
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5- Recipiente para líquidos:
cantil feito de cabaça. São João del-Rei.
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6- Amuleto feito com cabacinha, acrescida
de palha da costa e búzios. São João del-Rei.
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7- Cabacinha, arrematando uma guia, feita com
sementes de olho de boi. São João del-Rei.
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8- Cabaça usada como cortiço, para acondicionar uma colmeia de abelhas-jataí, pendente no beiral de um telhado. A abertura lateral, amarrada por arame, funciona como portinhola para coleta do mel. Curralinho dos Paula (Resende Costa/MG). |
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9- Cabaça perfurada para aninhamento de pássaros, instalada no beiral de uma casa no povoado da Canela, São João del-Rei. |
Créditos
- Texto: Ulisses Passarelli.
- Fotografias: Iago C.S. Passarelli, novembro/2014 (1 a 7) e 08/07/2018 (8); Ulisses Passarelli, 10/11/2013 (9).
Notas
[1] Na Mesorregião Campo das Vertentes o nome desse fruto seco é sempre no feminino: cabaça. No masculino é sinônimo chulo e muito popular de hímen, símbolo da virgindade feminina. “Tirar o cabaço”: perder a virgindade. Cabaço é também um termo pejorativo aplicado a uma pessoa inexperiente, em qualquer setor que seja, da vida ou do trabalho. Exemplo: "ele é cabaço na marcenaria" (principiante).
[2] Informante: José Camilo da Silva, Bairro São Dimas, São João del-Rei, 1993.
[3] Além das cucurbitáceas, também o próprio fruto seco do coco da baía (arecaceae) e do cuité ou cuieté (Crescentia cujete, bignoniaceae), são usados para fazer dessas vasilhas.
- Revisão: 26/08/2025.
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