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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Práticas populares contra raios e tempestades

E a devoção a São Jerônimo e Santa Bárbara


Nos meios populares, em várias regiões do Brasil, inclusive aqui na região das Vertentes, para se evitar acidentes elétricos por faíscas, tão logo começa a relampear, reza-se para São Jerônimo e Santa Bárbara, ou simplesmente se usa exclamar seus nomes. Acender velas é um complemento comum. 

Nas piores intempéries queima-se à guisa de um incenso, a palha benta do Domingo de Ramos, como meio de evitar que aquela casa seja atingida pelos raios e para abrandar a tempestade. Costume idêntico se observa em Portugal, conforme pesquisou Altimar de Alencar Pimentel, que escreveu que “na Península Ibérica, recorre-se a Santa Bárbara, São José e São Jerônimo para abrandar as precipitações atmosféricas (p.27)”. Câmara Cascudo também atesta a tradição ibérica que recebemos, acerca da proteção destes santos contra os extremos meteorológicos das tormentas.


Uma narrativa assaz conhecida conta que Santa Bárbara (280-317), natural da Nicomédia (atual Izmit), na Turquia, foi morta por degolamento pelo próprio pai, Dióscoro, inconformado com a fé cristã da filha, que ela não renegou mesmo após terríveis torturas em praça pública. Quando seu algoz cortou sua cabeça, imediatamente foi fulminado por um raio, seguido de estrondoso trovão. Está claro porque se tornou protetora contra raios e tempestades, tradição conhecida além-mar. Padroeira dos soldados artilheiros e dos mineiros, razão que possivelmente justifique sua imagem na igreja histórica de Nossa Senhora do Pilar em São João del-Rei, cidade nascida das minas do ciclo do ouro. Seu dia votivo é 04 de dezembro.

Já São Jerônimo (347-420) não aparenta uma ligação direta com a questão das descargas atmosféricas, sendo incógnita a razão de seu padroado sobre os raios. Nasceu na atual Eslovênia e tem por dia votivo o 30 de setembro. Doutor da Igreja, foi um religioso que legou à humanidade dentre outras obras importantes, a versão latina da Bíblia, conhecida como Vulgata, traduzida do hebraico. 

São venerados além da Igreja Católica Apostólica Romana, a exemplo da Igreja Ortodoxa. São Jerônimo também é considerado por anglicanos e luteranos. Os dois santos são muito prestigiados no Candomblé e na Umbanda, sincretizados com os orixás IansãXangô, ela, sua esposa espiritual, tendo o raio figurado como insígnia. 

Nos versos populares as invocações aos dois respeitadíssimos santos aparecem em algumas composições. No calango:

(...) 
Tô 'panhando água no poço,
tô esperando água limpá,
São Jerônimo, Santa Bárb'ra,
começou relampiá!
(...)
(São João del-Rei, 1996)*

No catupé:

_ Eu vi Santa Bárb'ra no ar,
tempestade no mar...   
_ Brandô!
(Santa Cruz de Minas, 2004)**

Outros versos contudo se valem dos sons da intempérie para auto-afirmações de poder, capacidades, coragem: 

“Não tenho medo da chuva
 nem também do turuvão; 
tomara que chova muito 
pra lavá meu coração!” 
(quadra popular, Barbacena, 1996) 

“Quem manda chuva é truvão, 
quem sigura cerca é môrão!” 
(Catupé, São João del-Rei, 2000)

"Subi na corda da chuva,
no estrondo do trovão;
desci na corda da chuva,
com dois coriscos na mão..."
(calango, Santa Cruz de Minas, 1997)

Ou com outro término: 

(...)
"quem nunca comeu corisco, 
não sabe se raio é bão!" (bom)

A física demonstra que o raio tanto sobe da terra às nuvens quanto desce daquelas ao chão, mas para o povo sempre cai.

Em São João del-Rei fala-se de uma árvore, o cedro de Santa Bárbara (cinamomo ou árvore de Santa Bárbara), que seria capaz de atrair raios de uma maneira especial. Não se deve tê-lo junto à casa mas um pouco mais afastado é útil, pois puxa a descarga elétrica, afastando-a da residência. Também lhe atribuem a irradiação de forças positivas para a propriedade. O banho com as folhas fervidas desta árvore é um descarrego espiritual na linha de Iansã. Qualquer objeto remanescente de uma benzeção posto junto a ela faz o efeito mais rápido. Assim, talos de mamona da benzeção de cobreiro depositados junto ao tronco desse cedro fazem o malefício secar mais rápido (Santa Cruz de Minas, 1999).
Cedro de Santa Bárbara (Melia azedarach, meliaceae)

O povo acredita (e é crença muito difundida), que quando o raio vem dos céus, traz na ponta uma pedra, que é enterrada sete metros no solo com a força da descarga. Então, como se fosse viva, a cada ano sobe um metro, até chegar à superfície, toda energizada. Se por acaso ao arar um terreno ou passar por um velho abrigo de povos autóctones, encontra-se um machado de pedra ou um virote, diz-se que é a "pedra de raio". É pois um artefato que tem a rocha como matéria-prima, feita por primitivos homens paleolíticos e neolíticos. A pedra de raio é conservada em casa para livrá-la das descargas atmosféricas e proteger seu dono contra malefícios variados. Nos congás e pejis tem caráter votivo aos orixás já citados nesta postagem, como seu símbolo e firmeza, presente e irradiante.


Pedra de raio 

Em Santa Cruz de Minas, anotei a curiosa simpatia de se jogar uma peneira de taquara no terreiro da casa, em plena chuva forte, devendo necessariamente cair emborcada, para prender a emissão de raios. A oração que antecede este ato é a seguinte***: 


Palavra santíssima,
contra raio e tempestade,
Deus foi feito homem,
velho foi feito carne.
Cristo Rei que vem em paz,
Cristo nasceu da Virgem Maria,
Cristo manda, Cristo reina!
De todo mal corisco e tempestade. 

Crê o povo que o espelho atrai o raio o que a ciência desmente. Mas ignorando isto, quando relampeia não se olha no espelho e até mais ao extremo, se lhe encobre com um pano. Este é o preceito popular, que inclui ainda não mexer com nada de metal, sobretudo de ponta, não abrir torneira nem tomar banho, cuidado já com um certo sentido pois metal e água são excelentes condutores de energia elétrica. Uma restrição tradicional é durante a tempestade que cai raios, suspender toda atividade, não ter relação sexual, não xingar, não discutir com ninguém, apenas rezar e aguardar. O raio tem de ser respeitado, pois representa a ira de Deus. 


Referências bibliográficas

PIMENTEL, Altimar de Alencar. Sol e chuva: ritos e tradições. Brasília: Thesaurus, [s.d.]. 
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: [s.d.], 930p.

Referências na web

Jerónimo. Wikipédia, acesso 01/09/2014, 08h.
Bárbara de Nicomédia. Wikipédia, acesso 01/09/2014, 08h.

Notas e Créditos 

* Informante: Pedro Reis da Silva 
** Capitão: Luís Pereira dos Santos
*** Informante: Elvira Andrade de Salles, 1997. Prece considerada muito forte, que não deve ser enunciada fora da ocasião propícia. Informou também os calangos. A expressão "Deus foi feito homem, velho foi feito carne" foi sem dúvidas inspirada no primeiro capítulo do Evangelho Segundo São João (Jo 1, 1-3; 14-15). A invocação direta a Jesus parece ser uma alusão ao episódio da tempestade acalmada, quando dentro de uma barca no Lago da Galiléia (Lc 8, 22-25; Mt 8, 18-27, Mc.4, 35-41). 
****Texto e foto-montagens: Ulisses Passarelli
*****Fotos: Iago C.S. Passarelli, 2014

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