Junto com a primavera, chega o tempo das Mercês...
Nossa Senhora das Mercês é uma das muitas invocações marianas que se enraizaram na Minas Colonial, sobretudo como uma devoção dos escravos forros e crioulos, como se dizia na terminologia separatista daquela época. Seus devotos se reuniram em confraria que tinha entre outros atributos o de libertar cativos pela compra da alforria. Na fachada de sua igreja em São João del-Rei, um símbolo de corrente com algemas abertas é bem representativo de sua primitiva função.
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Entre uma moldura de rocalhas no frontispício, grilhões revelam a função libertadora dos mercedários. Igreja das Mercês, São João del-Rei. |
Nesta cidade, a imagem da santa querida naturalmente despertou interesse de muitos adeptos de seu título, vestida em cores suavíssimas, de braços abertos, sempre acolhedores, como se esperasse mais filhos para envolver em seu manto protetor; olhar terno, bem maternal, sereno e dulcíssimo, mas também, paradoxalmente, um pouco tristonho, como se estivesse com pena de seus filhos sofredores; cabeça levemente inclinada para um lado, pendente e complacente... Buquê na mão, coroa que resplandece à cabeça. Mãe e Rainha, Protetora e Libertadora. O ícone perfeito, o modelo de cristandade e o símbolo da esperança, a fomentar uma fé inabalável.
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Imagem de Nossa Senhora das Mercês da igreja desta invocação em São João del-Rei. Acervo da Venerável Arquiconfraria de Nossa Senhora das Mercês.
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A Igreja das Mercês de São João del-Rei, como a vemos hoje, é bem diferente da primitiva, de 1751, que tinha forma de panteão romano. Sofreu profundas remodelações em 1808 e 1853, quando ganhou a atual fachada, a mais graciosa da cidade, com sua torre separada do corpo, tendo à direita (se vislumbrada de frente) uma pitoresca alameda ajardinada e com fontes e à esquerda o cemitério da ordem. Pela dianteira um cruzeiro do século XIX fica fronteiro à escadaria de acesso, calçada de pedras.
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Igreja das Mercês, São João del-Rei. |
Algumas intervenções vieram mais tarde às grandes mudanças, como no ano de 1900, conforme revelou O Combate:
"Estão terminadas as obras de decoração da Igreja das Mercês, desta cidade. Ficou realmente muito linda a pintura do forro e do resto da igreja, exceção feita do figurado que podia ter ficado mais perfeito. O resto da pintura faz honra ao pincel do hábil artista João Faccini, que teve real gosto na realização do serviço a seu cargo. A igreja está muito melhorada pelo que merece encômios a atual mesa administrativa, composta dos irmãos abaixo, cujos nomes damos para conhecimento dos confrades todos: Juiz Joaquim Paulino, Secretário Eduardo Barreto, Tesoureiro Capitão Carlos da Cunha (farmacêutico), Procurador Olympio Pio."
Outro jornal da cidade, A Nota, em 1917, noticiava novos melhoramentos na igreja, quando o sodalício conclamava os confrades para ajuda em socorro do telhado:
"A mesa administrativa desta arquiconfraria faz um apelo aos seus inúmeros confrades no sentido de ser auxiliada na reconstrução do telhado da Igreja das Mercês. Esta reconstrução que se impõe com a maior urgência, tinha sido resolvida levar efeito sem mais ônus para os senhores confrades, dentro dos próprios recursos financeiros do cofre da arquiconfraria. Aconteceu, porém, que iniciado o serviço de retelhamento, verificou-se a absoluta e urgente necessidade de reforma de todo o madeiramento superior, do reboco externo, e, ainda mais, de um ... (ilegível) da frente em iminente estado de perigo. Assim, a arquiconfraria recorre aos bons confrades, esperando que um ... (ilegível) concorrer com qualquer auxílio para o empreendimento desta obra de extrema necessidade."
Quanto às festividades, foram sempre célebres. Em 1935 A Tribuna noticiava a chegada da festa, já deixando claro a importância da música nas celebrações e destacando nomes de compositores da terra:
"Com toda a pompa iniciam-se hoje as festividades de honra e louvor de N.S. das Mercês. Pelo programa profusamente distribuído, pode-se avaliar que os festejos deste ano serão imponentíssimos e não sofrerão solução de continuidade as tradicionais festas mercedárias. As novenas serão precedidas de belíssimas ouvertures pela Orquestra Lira Sanjoanense, que executará ainda partituras apropriadas dos eméritos musicistas Pe. José Maria, Presciliano Silva e outros. Abrilhantará as missas das 5 1/2 e 7 1/2, com acompanhamento ao harmônio, o sr. prof. Bento Ernesto Júnior, ilustre belestrista e nosso companheiro de redação."
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Notícias jornalísticas de São João del-Rei sobre a igreja e festa das Mercês. Acervo digital da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida.
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Bento Ernesto Júnior é uma figura humana ímpar no cenário cultural da cidade que está ainda a merecer estudos biográficos. Quando da supressão da Festa do Divino de Matosinhos em 1924, ele foi o mais relevante com seus argumentos na luta junto à autoridade eclesiástica em prol do retorno da festividade. É autor das letras dos hinos de São João del-Rei e do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, dentre tantas composições poéticas.
A música até hoje tem sua real importância na festa. Nos esclarece o utilíssimo livro Piedosas e Solenes Tradições de Nossa Terra que desde sua fundação, a Orquestra Lira Sanjoanense cuida da parte musical no festejo executando:
"Obras de Presciliano Silva (Veni e Domine), Padre José Maria Xavier (Hino e Antífona), Luiz Baptista Lopes (Jaculatórias), Pe. João Batista Lehmann (Hino de Entrada); João Feliciano de Souza e Luiz Baptista Lopes - coros processionais (Ave Maria Stella). Luiz Baptista Lopes, João Feliciano de Souza, Carlos dos Passos Andrade, Alberto Wilson de Castro, compuseram Missas e as dedicaram a Nossa Senhora das Mercês." (p.140)
A novena é concorrida. Do alto da colina ecoam os violinos e preces, que culminam em tocante cerimônia no dia maior, 24 de setembro, com uma procissão muito tradicional na qual comparecem diversas irmandades com os hábitos de praxe, além das bandas de música Municipal Santa Cecília e Theodoro de Faria. As festas de largo com sonorização e suas barraquinhas de víspora e de comes e bebes são muito típicas e agregam bastante gente. Ponto querido de entretenimento, desde longa data, elas propiciam um momento de confraternização, onde se conheceram muitos casais da cidade, que, por vezes, se mantiveram juntos até o matrimônio.
Por derradeiro é mister lembrar que finda a comemoração de Nossa Senhora das Mercês, as festividades prosseguem por mais um dia, 25 de setembro, consagrado a Nossa Senhora do Parto, com missa às 19 horas, seguida de rasoura, e, por fim, bênção para as gestantes e crianças. Rasoura esta que por força da tradição o andor é carregado por mulheres grávidas.
Referências Bibliográficas
GAIO SOBRINHO, Antônio.
Sanjoanidades. São João del-Rei: A Voz do Lenheiro, 1996. 104p.
Piedosas e Solenes Tradições de Nossa Terra. São João del-Rei: Paróquia da Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar, 1997. v.2: novenas, tríduo, setenário, quinquena e meses.
Referências Hemerográficas
(jornais publicados em São João del-Rei)
O Combate, n.16, 14/10/1900
A Nota, n.70, 21/07/1917
A Tribuna, n.1.290, 15/09/1935
Notas e Créditos
*Texto e fotos (2014): Ulisses Passarelli
** Foto da imagem de Nossa Senhora: Iago C.S. Passarelli, 17/04/2014
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Salve o Dia das Mercês!
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