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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




terça-feira, 29 de julho de 2014

Tabus Alimentares

Um campo curioso das tradições populares é o da restrição a certos tipos de alimentos em situações específicas. Para aqueles que acreditam, estes tabus tem uma força extraordinária de proibição, qual fosse uma lei rigorosa. Só que não vem em decreto. Não está datada nem assinada. Mas segue-se por respeito e temor.

O povo curiosamente separa os alimentos mais temidos em frios e quentes, nomenclatura que num paradoxal contexto, nada tem a ver em si, com a temperatura do prato; refere-se antes à caloria para o corpo, pouca ou muita, respectivamente. Mas este conceito de caloria é muito mais abstrato que o dado pelos nutricionistas. Não pode ser medida em kcal/mg. Não é a caloria energética para as células; é a caloria digestiva. A digestão é tão mais custosa de se concluir quanto mais "quente" é o alimento. Mas comidas frias também atrapalham. Frutas em geral são "frias", como todas as bananas. Se comer tarde, pára no estômago, não digere, porque esfria as vísceras. Daí o ditado corriqueiro: "banana cedo é ouro, de tarde é prata, de noite mata." Ainda sobre as bananas o povo considera "pesadas" para a digestão as do grupo das caturras (nanica, nanicão ou saquarema, d'água, santo antônio) e as de panela (marmelo e chifre de boi ou da terra - a primeira de fritar, a segunda de cozinhar), prescrevendo ingerir com parcimônia no horário adequado. As demais variedades de banana são "leves" e pode-se comer um pouco mais: ouro, pão (= ouro da mata), prata, pacovã (= pacova), são tomé (= figo, rosa ou crioula) e maçã. 

Ainda sobre o caso da caloria, veja-se o exemplo da pimenta, alimento "quente". Quando o povo compara a variedade malagueta com a cumarim, diz que esta última é muito quente, até perigosa para os rins. Porém no paladar, a primeira arde muito mais. Eis que não há correlação entre "temperatura" e ardência e o conceito folclórico de caloria. A pimenta puta-que-pariu também é muito calórica. As pimentas em pó outrossim tem sua classificação: a pimenta do reino é mais quente que a pimenta de macaco (= pimenta de pau), esta, um tempero comum na zona rural para carnes e feijões.

Exite ainda o conceito de reimoso, isto é, o alimento que tem muita "reima" (reuma). É algo ainda mais intangível, como se fosse uma caloria exacerbada, não em quantidade, mas em qualidade. "Uma caloria muito calórica", capaz de propiciar o desenvolvimento de afecções cutâneas tais como petéquias (manchas), prurido (coceira), eritema (vermelhão, rubor) e erupções (brotoejas, empolados, perebas), sugerindo um processo de alergia alimentar. A digestão é muito lenta e cheia de efeitos colaterais. Entre os alimentos reimosos estão a carne suína (toicinhos), o chocolate, o amendoim e a gordurosa carne do jaú (peixe siluriforme, pimelodídeo de grande porte, Zungaro zungaro).

Outro aspecto correlato é engulir sol ou engulir lua. A pessoa quando está se alimentando deve se resguardar de ficar exposta diretamente a estes astros, pois neste momento, fica vulnerável à sua influência. Então, se ficar olhando demais para estes astros no instante da alimentação, ou se olhar para seu reflexo dentro de um prato (comer ao ar livre...), seu encanto entra pela boca da pessoa e ela fica lerda, idiota, abobada, prisioneira da magia do astro. A digestão fica difícil, com sintomas desagradáveis. Uma vez diagnosticado o mal, a solução é benzer a pessoa três dias seguidos com uma toalha virgem e água de mina, contida numa garrafa branca ou transparente. 

As restrições que cercam o alimento prendem-se por vezes a questões religiosas. Alguns adeptos dos terreiros de matriz africana tem restrições ditadas pelos guias e orixás em conformidade aos alimentos votivos. Daí dizer-se: "não como carne de frango porque meu santo não permite". Se o sujeito teima, passa mal, adoece, cai em fraqueza. A Bíblia prescrevia desde longas datas suas limitações para a carne vermelha não sangrada: "não comereis nada que contenha sangue" (Lev. 19: 26). O Alcorão prescreve uma proibição: "Ele vos proíbe somente o animal morto, o sangue e  carne de porco e tudo que tenha sido sacrificado sob a invocação de um nome que não o Seu. Aquele, contudo, que for forçado pela necessidade sem desejar transgredir ou se rebelar, não pecará. Deus é clemente e misericordioso" (2: 173). O catolicismo recomenda aos fiéis o jejum da carne vermelha na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira da Paixão, mas tem fiel que livremente estende a recomendação a todo o período da quaresma ou ainda a toda a sexta-feira do ano, sem comer carne, a não ser um peixe, ou na falta deste, ovos. 

Pelo campo religioso se enveredaria a perder de vista no tempo e na etnografia de antigos povos, na busca de influências primevas, que alcançaram pela mescla cultural, de uma forma ou outra, o campo do nosso folclore alimentar. Mas esta postagem não foi programada para andar por estes caminhos. 

O assunto pincelado se ilustra por arremate por uma lista de um pequeno punhado de tabus alimentares difundidos nos Campos das Vertentes, mas em especial anotados em São João del-Rei. 


Caju do campo, cajuzinho ou cajuí: Capela do Saco (Carrancas/MG). 09/07/2013.

Banana-pão. São João del-Rei. 21/03/2016. 

Cruá ou melão-caboclo, também chamado maracotão, por confusão com outra fruta.
Conceição da Barra de Minas. 07/12/2014.  

Labaça, uma variedade de almeirão. São João del-Rei. 04/01/2015. 

Pimenta puta-que-pariu. São João del-Rei. 11/03/2015.  

Pé de porco. Santa Cruz de Minas. 09/06/2016.  

- não pode comer banana e tomar café em seguida, pois a pessoa "dá acesso " (crise de epilepsia);
- não pode almoçar e chupar lima em seguida, pois sendo uma fruta bastante fria faz a comida parar no estômago;
- não comer banana à noite: é indigesta;
- não misturar manga ou jabuticaba com leite: dá congestã e pode até matar;
- não comer carne branca e vermelha ao mesmo tempo, pois dá "doença de pele branca" (vitiligo);
- pepino é indigesto, frio. Tirando-se sua casca faz menos mal;
- não se come pepino maduro;
- ao preparar o pepino, corta-se e se descarta suas duas pontas. Os lados cortados devem ser esfregados para sair seu veneno;
- alimentos cortados à faca fazem mal porque ficam impregnados pela ferrugem do metal, no caso de uma manga cortada aos pedaços em vez de ser chupada, ou da couve, picada, em vez de rasgada;
- comer couve durante o período menstrual provoca mal cheiro do fluxo sanguíneo;
- mulher de resguardo não pode comer torresmo, porque é quente, afeta o bebê e atrasa a recuperação da mãe.
- verduras favorecem a digestão, dando leveza e fluidez ao bolo alimentar. Acredita-se que se colhidas na lua nova tem a tendência ao amargor, sobretudo as do grupo dos almeirões. Combinadas com alimentos mais pesados como as carnes de porco favorecem sua digestão.

É o que o povo diz e pratica. 


Notas e Créditos

* Texto e fotografias: Ulisses Passarelli

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