A cultura popular, vasta e complexa, é como uma colcha de retalhos. O folclore de um tema se constrói com pedacinhos de história, com impressões de interpretação livre de fatos, com reminiscências de ritos antiquíssimos, com novos elementos de cores regionais vivenciados na comunidade. Destrinchar os componentes dessa fórmula não é tarefa fácil.
O costume quaresmal de queimar ou malhar a porrete um boneco chamado Judas é bastante arraigado na Península Ibérica, de onde foi transposto para a América Latina. Ocorre em boa parte do Brasil e a Mesorregião Campos das Vertentes o conhece desde longa data e ainda o pratica. A aparência imediata evoca o apóstolo traidor de Cristo, o Iscariotes, que o entregou por trinta moedas de prata (Mt 26, 14-16), mas a queima de bonecos ou manequins é em verdade um ritual pagão difundido na Europa, típico da entrada da primavera e sofreu ao longo dos anos cristianização resultante na queima do Judas.
O contexto de primeiro plano revela por detrás toda uma concepção popular de rancor contra o judeu. Séculos de catequese cristã repisaram a oposição dos fariseus a Jesus, a perseguição a profetas, aos precursores na pregação como São João Batista, ou a sucessores, como Santo Estevão e tantos outros. Na alma do povo foi criado como que um opróbio à palavra: "judeu" se tornou símbolo de ruindade, usurário. "Judiar" é fazer mal a um bicho ou pessoa, um verbo criado em cima desta concepção; donde provém "judiação", "judiaria" _ maldade, injustiça. Se o sujeito se configura como traidor, infiel, desleal, logo é alcunhado com desdém: "judeu!" , "Judas!".
“Quem quiser comprar eu vendo
um amor que já foi meu:
é bonito como cravo
é falso como judeu”
A quadrinha acima, colhida em Santa Cruz de Minas é reveladora dessa impressão de falsidade atribuída no folclore ao judeu.
Autores tem revelado o valor do judeu para a composição de nossa cultura popular. MARTINS, perscrutando os componentes culturais do folclore mineiro, não se esqueceu deles: "outra fonte notável em Minas Gerais refere-se aos cristãos-novos ou judeus renegados, que transmitiram ao mineiro notáveis experiências, também sincréticas, pois chegaram a nós via Portugal." MEGALE também revelou sua influência no capítulo "Influências Estrangeiras no Folclore Brasileiro", dizendo: "Muitos israelitas chegaram ao Brasil no período da Invasão Holandesa, fugindo dos tribunais da Inquisição (...) As maiores influências judaicas que tivemos são: o conformismo com o destino, o saudosismo messiânico e o "pão-durismo" do mineiro". (p.27 e 28) Ainda LIMA JR. nos fornece importantes subsídios para a compreensão dessas influências. Seu trabalho nos dá conta, dentre outros, dos rituais mortuários, do hábito da sangria e de costumes em torno do recém-nascido que dos cristãos-novos passou ao folclore mineiro.
No final dos anos setenta, aqui mesmo em São João del-Rei, ouvia minhas tias falarem de um homem muito velho, taciturno, barbudo, vestes tristonhas, que por ter ofendido Nosso Senhor andava pelo mundo sem rumo e sem paradeiro. Era o Judeu Errante.
É uma lenda das mais conhecidas que a tivemos da Europa. A leitura do verbete correspondente na obra de CASCUDO é fundamental pela erudição do resumo que apresenta. Seria um homem da época de Cristo, Ahasverus, sapateiro de Jerusalém, que teria humilhado o Salvador no momento que carregava a cruz: "vai andando!", motejou. Recebeu então o castigo e ir andando até a volta de Jesus, sem morrer, sem rumo, sem destino. "A lenda apareceu em Constantinopla, no séc.IV, e apareceu na Europa em 1228", passando por variações de detalhes conforme o país onde se estabeleceu.
Ainda hoje se diz, quando um sujeito anda demais, caminhando sem parar: "cruz-credo! Parece Judeu Errante!".
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Texto de José Bellini do Santos inspirado no Judeu Errante, publicado no jornal Diário do Comércio, São João del-Rei, n.181, de 16/10/1938.
Acervo digital da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida. |
Foi fácil e natural para o povo confluir as concepções criadas em torno do judeu sobre o personagem Judas, fustigado com porretes, varas, bombas, vaias, impropérios durante a quaresma, trazendo sobre si a maldição do traidor do Messias.
Contrariando a tradição popular, em 2006 divulgou-se a existência do Evangelho de Judas, manuscrito descoberto em 1978 no deserto do Egito. Sua idade é estimada em cerca de 1700 anos. O mais notório deste apócrifo é a afirmação de que Judas Iscariotes teria traído Jesus a pedido do próprio, para que se cumprisse a necessidade de seu martírio. Judas teria então obedecido a uma ordem de Cristo, que o escolhera para dar início à sua Paixão. A Igreja logo respondeu que esta é a visão gnóstica do fato, não correspondendo à verdade histórica.
Por aqui nas Vertentes o costume era queimar o Judas no Sábado da Aleluia, como ainda vi na infância. O recorte jornalístico abaixo o demonstra. Ultimamente os Judas tem aparecido no Domingo da Páscoa.
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Crítica humorística com personagens velados evocando a queima de judas no Sábado da Aleluia. Jornal O Grypho, São João del-Rei, nº24, 25/04/1908. Acervo digital da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida. |
VALE registrou em Prados uma referência oitocentista sobre a queima do judas terminada em tragédia no ano de 1888. O costume era de, na véspera, uma turma de rapazes e homens andar pelos sítios e casas roubando pequenas coisas e arvoredos para compor a chácara do Judas. Este roubos eram comuns na Sexta-feira da Paixão, a partir das 23 horas, porque "naquele dia tudo pertencia a Judas" (sic). Ocorre, que a rapaziada naquele ano, extrapolando os limites do antigo costume, tomara o carro de bois de uma fazenda e acabaram por submergi-lo na Lagoa da Atalaia. No exaustivo trabalho de remoção do rude veículo, dois homens morreram afogados. Segundo o autor,"quando foi proclamada a República, o arraial de Prados foi elevado a categoria de vila. O Presidente da Câmara, no mesmo ano, formulou um decreto preliminar, abolindo as festas do celebérrimo Judas."
Em alguns lugares mineiros o testamento do Judas (herança imaginária do boneco, cômica e aguçada, distribuída a certas pessoas da comunidade por meio de versos escritos) é conhecido por pasquim do Judas ou pela corruptela, "pisquim "(por exemplo, em Antônio Carlos e Bias Fortes, no limite sudeste das Vertentes). Os pasquins típicos eram folhetos improvisados à guisa de informativo anônimo, contendo notícias críticas, denúncias, revelações de falcatruas políticas. Em verso ou prosa, se escrevia e distribuía no total anonimato, temendo-se represália e punição. Legítimos elementos da folk-comunicação, em São João del-Rei os pasquins eram legalmente proibidos pelas posturas municipais. Aos infratores era previsto no art.122, parágrafo 3º, multa de 5$000, além de três dias de cadeia: “o que distribuir pasquins manuscriptos ou impressos, gravuras de desenhos ofensivos á moral ou á descência, alusivos a qualquer fato da vida privada”. Um interessante estudo a respeito dos pasquins foi coordenado por LIMA.
Obviamente que a semelhança de objetivos do pasquim típico com o testamento do Judas ou ainda com o
testamento do João do Mato, induziu o uso das expressões "pasquim do Judas" e "pasquim do João do Mato", este, restrito ao complexo dos mutirões de lavoura, não é assunto para esta postagem. Na região de São João del-Rei o termo "pasquim" sobrevive como alcunha pejorativa aplicada a algum jornal ou informativo considerado pelo povo como de má qualidade.
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Judas em São Gonçalo do Amarante, São João del-Rei/MG, 20/04/2014. |
Referências Bibliográficas
- Código de Posturas da Câmara Municipal da cidade de São João d’El-Rei. Ouro Preto: Província de Minas, 1887.
- LIMA JÚNIOR, Augusto de. A Capitania das Minas Gerais: origens e formação. 3.ed. Belo Horizonte: Instituto de História, Letras e Arte, 1965. p.138-142.
- LIMA, Rossini Tavares de
et all.
Folclore do Litoral Norte de São Paulo.
Rio de Janeiro: MEC / FUNARTE / INF; São Paulo: SEC
/ Univ. de Taubaté, 1981. 317p.il.
- MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. 2.ed. Belo Horizonte: UFMG, 1991. 126p.
- MEGALE, Nilza Botelho. Folclore Brasileiro. Petrópolis: Vozes, 156p.
- VALE, Dario Cardoso. Memória Histórica de Prados. Belo Horizonte: [s.n], 1985.
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