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Bem vindo!Esta página foi criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas, tampouco acadêmicas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




segunda-feira, 28 de julho de 2014

O pequeno e sagaz lambari

Lambari é a designação comum dada a dezenas de espécies de pequenos peixes caracídeos de água doce, sobretudo dos gêneros Astyanax, Hyphessobrycon, Hemmigramus, Oligosarcus, Cheirodon e Moenkhausia, dentre outros. Em alguns lugares são conhecidos pelos nomes genéricos de piaba e piquira, além dos demais nomes específicos. 

Situados mais na base da cadeia alimentar aquática, os lambaris são peixinhos muito importantes no equilíbrio ecológico, posto que devoradores de larvas de pernilongos e fonte de alimentação de peixes maiores, aves, cágados, cobras d'água e rãs. O homem também o busca, apesar de tão pequeno, tendo-o como elevado tira-gosto, passado no fubá ou na farinha de trigo, frito, acompanhado por arroz ou angu, cerveja ou cachaça.   

No interior mato-grossense, milhares de lambaris são cozidos pelos pantaneiros em caldeirão, por longo tempo, para extração do "azeite de peixe", um óleo comestível usado na culinária regional. Rendeu no sul mineiro o nome de uma cidade, estância hidromineral. É também o nome de um rio, no oeste de Minas Gerais, afluente da margem esquerda do Rio Pará, na Bacia do São Francisco. 

Na cultura popular o lambari é sinônimo de coisa pequena, miúda, desprezível, inofensiva: 

Eu comi saci assado, 
na farofa de fubá; 
peixe grande não me engasga,
lambari quer me engasgar... [1]

É também o nome de uma entidade espiritual de umbanda, o Caboclo Lambari, afamado curador de enfermidades. Seu ponto cantado (curimba ou zuela) em São João del-Rei é [2]: 

Lá no mato tem, 
na lagoa mora; 
Lambari de ouro, 
tá puxando tora! 

Lambari de ouro, 
tá puxando tora;
pra fazer capela
pra Nossa Senhora!

A expressão "de ouro" tão função adjetiva, uma forma de manifestar que possui qualidades elevadas como o ouro. Com pequenas variações seu ponto é cantado em jongos de roça e congados regionais: 

Lá no mato tem,
lá embaixo mora;
Lambari de ouro,
na lagoa mora.

Aliás, os cantadores de jongo e de sua variante, o caxambu, de fato usam da imagem do lambari para indicar pequenez, figurando-o no desafiante como sinal de menosprezo, como os cantadores capixabas [3]:

Êh, lambari!
Tá pelejando pra subir a cachoeira!
Êh, lambari!
Mas deixa de tanta zoeira ...

Outro exemplo do Espírito Santo [4]:

Licença, jongueiro velho!
Joguei meu anzol,
no oco da sapucaia,
lambari comeu a isca,
surubi tá na tocaia ...

No desaparecido esquinado do Campo das Vertentes, o peixinho representava o esperto, o atrevido, que chega primeiro que o grande, reflexo de sua esperteza em roubar a isca do pescador sem ser fisgado [5]: 

Isquei o meu anzol,
fui no rio pegar dourado;
lambari comeu a isca,
eu perdi meu requebrado. 

Além destes aspectos simbólicos nas cantorias folclóricas, o lambari povoa algumas simpatias curiosas. Em São João del-Rei e Santa Cruz de Minas, para aprender a nadar, o processo é engolir três lambaris vivos. Senão isto ao menos a sua bexiga natatória (devido à flutuação que propicia). No Brumado de Cima, em pesquisa de campo, uma informação oral [6] apontava que para curar bronquite, na Sexta-feira da Paixão, pega-se um lambari e com ele ainda vivo o doente cospe dentro da boca do peixe e a seguir solta-o de novo no rio, para que o peixinho leve o mal por água abaixo, configurando num rito bastante arraigado de transferência do malefício. 

Lambari-prata ou lambari do rabo amarelo (Astyanax bimaculatus).
 Serra de São José, Santa Cruz de Minas/MG.



Créditos

- Texto: Ulisses Passarelli.
- Fotografia: Iago C.S. Passarelli, 28/06/2014.

Notas 

[1] Informante: Damião Guimarães, 2002, São João del-Rei, como ponto de demanda do Exu Sete Catacumbas, mas também o ouvi cantado livre dos rituais de terreiro, entre a versalhada do calango regional. Existe localmente a variante do último verso: "Santo Antônio puxando tora".
[2] Informação: Tenda de Umbanda Ogum de Ronda, comunidade da Caieira, Bairro Jardim Central. 
[3] Colhido pelo autor do texto em um jongo durante a Festa de São Benedito em São Mateus/ES, dezembro/1991.
[4] Originário da cidade de Jerônimo Monteiro. Fonte: GEAQUINTO, M. Neila. Um caxambu capixaba. Folclore, Vitória, Comissão Espírito-santense de Folclore, jan./1965-dez.1966, n.82. 
[5] Quadra originária do esquinado, mas desgarrada na versalhada humorística do palhaço de folia de Reis "Jorge", da comunidade do Arraial das Cabeças, Bairro Bonfim, São João del-Rei. Dez./ 1992. 
[6] Informante: Sr. Sebastião Quirino, 2012. 

- Revisão: 13/06/2025. 

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