A simbologia das cores é de largo uso em várias religiões [1] e não escapa aos nossos costumes de antigas bases coloniais. Igualmente a perspicácia da cultura popular adotou as cores em suas manifestações folclóricas. Também são empregadas em busca de efeitos benéficos na "cromoterapia", o tratamento com cores.
Dizemos habitualmente "cores quentes" - evocação do fogo (vermelho, amarelo, laranja), "cores leves" - alusão à tranquilidade (rosa, verde, azul, branco), "tons pastéis" - leveza, abstração (cinza, bege, camurça, palha, castanho, pardo), "cores pesadas" - fechamento cromático, concentração (preto, marrom, roxo).
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Como flâmulas, grandes panos roxos pendem dos janelões da Igreja de São Francisco de Assis. São João del-Rei, 2014. |
O roxo e sua variante clara, o lilás, dominam esta quadra do ano pela influência do catolicismo. Nas alfaias das igrejas e nos paramentos dos sacerdotes, esta cor nos conduz pela observação ao espírito de recolhimento pregado na quaresma, reflexão, introspecção, em busca da reconciliação com o Criador do qual nos afastamos através dos erros.
Nas procissões quaresmais, o andor dos Passos mostra-nos o Senhor com pesada cruz, ornado de vários tons entre rosa, púrpura, vinho, lilás. Mas pergunte ao povo que cores são aquelas... roxo, é claro.
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Andor do Senhor dos Passos. Igreja de São Francisco de Assis. São João del-Rei, 2014. |
Siglas douradas em letras grandes se aplicam ao estandarte roxo. Abreviatura da prepotente expressão latina "senado e povo romano" (senatus populus que romanus). A tradução popular é menos emblemática. Para o povo é "sal, pão, queijo, rapadura" ou com mais gaiatice, "São Pedro quer rapadura"; ou ainda, "seu padre quer rapé"...
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Grande pendão de abre-alas na Procissão do Encontro. São João del-Rei, 1999. |
A própria natureza se engalana de roxo nesse período. As
quaresmeiras (
melastomataceae), embora nos brindem com flores também noutros períodos, neste em especial, na amenidade de tempos outonais, se revestem da maior beleza, pela abundância e viço da floração. Nos alagadiços ou nos jardins caseiros, nos campos ou nas praças públicas, o roxo domina a paisagem.
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Quaresmeira num brejo de altitude da Serra do Lenheiro. São João del-Rei, 2010.
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O povo, certamente inspirado nessa beleza, tece sobre ela sua poesia simples mas de uma profunda sensibilidade:
Fui no campo apanhar flor,
a campina infloresceu,
apanhei fulô roxinha
por ser triste como eu... [2]
A penitência invocada, evocada, provocada pelo roxo quaresmal, pairando entre a tristeza de um luto e a reflexão da fragilidade humana, não conserva seu clima só nessa ambientação dramática, barroquíssima, mas traduz também uma certa alegria, através do sentimento íntimo de pertença a todo esse complexo religioso-cultural, que aproxima o fiel, o envolve, mistifica, sentimentaliza.
Notas e Créditos
[1] - Nos terreiros religiosos de matriz afro-brasileira o roxo carrega também sua invocação, votivo que é de Nanã, a Avó dos Orixás, sincretizada com Santana, e ainda, consagrado ao respeitadíssimo orixá sr. Omulu (sincretizado com São Lázaro) ou a manifestação jovem, Obaluaê (sincretismo com São Roque). Daí os exus dessa linha trabalharem sobre a cor roxa.
[2] - Trova popular informada pela sra. Elvira Andrade de Salles, Santa Cruz de Minas, 1997.
* Texto e fotos: Ulisses Passarelli
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