O Descendimento da Cruz e a Procissão do Enterro
(ofereço em especial ao pároco dessa cidade, por sua dedicação e sensibilidade)
O ciclo da quaresma é um período riquíssimo em manifestações religiosas fortemente eivadas de valores culturais. Nos Campos das Vertentes estes eventos tem muita força e tradicionalidade, conhecidos em várias cidades e distritos, alcançando em algumas grande vigor, a exemplo de Prados, Tiradentes e sobretudo
São João del-Rei, onde atingiu um patamar extraordinariamente preservado, que lhe garante um grande afluxo de visitantes e fiéis.
Nesta postagem o olhar se volta para a aconchegante Conceição da Barra de Minas, cidade de origens setecentistas que ainda conserva belos exemplares arquitetônicos em igrejas e casario, e muitos costumes dignos de nota. Ora focamos o Descendimento da Cruz e sequencialmente a Procissão do Enterro, na Sexta-feira da Paixão, segundo observação de 2014.
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A cruz do Senhor e figurados diante da matriz paroquial. |
Na praça da matriz, diante da imponente igreja da padroeira, Nossa Senhora da Imaculada Conceição, é armada uma arquibancada de madeira centrada pela grande cruz onde está fixada a imagem de Jesus. De um lado e outro se postam os "figurados", assim chamados os figurantes, pessoas da comunidade que nesse dia se caracterizam em papéis bíblicos, tais como centuriões romanos e apóstolos, Moisés, João Batista, Salomé e Herodíades, etc. (*)
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O sacerdote ressalta os valores da fé cristã. |
De uma tribuna posta adrede, entre os figurados e o povo na praça, o pároco, Padre Saulo José Alves, em eloquente e empolgante oratória, perfeitamente embasada nos preceitos evangélicos, mantém toda a grande massa de fiéis presentes em contínua atenção para os elementos sagrados da Paixão do Senhor.
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Sequência do Descendimento da Cruz.
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Ao fim de sua pregação conclama aos personagens José de Arimatéia e Nicodemos a passo a passo, descer a imagem do Crucificado: primeiro lhe tiram os cravos das mãos, depois é suspenso pela toalha alvíssima, a seguir o cravos dos pés, e lentamente vai sendo descido ao colo da jovem que representa Maria, a Mãe Dolorosa. Momento tocante, clímax simbólico de toda uma catequese magnificamente teatralizada com o máximo respeito e participação na fé de fiéis daquela comunidade.
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Vêronica canta com toda dramaticidade. |
Após a prédica a Verônica sob à tribuna e canta com grande sentimento o "O vos omnes": há dor maior que a minha dor? Vagarosamente desenrola a toalha onde está estampada a face do Salvador e depois aos poucos a enrola de novo. Fazendo-lhe eco, lamentam as três Maria Beú: "Heu, Deus!"
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As lutuosas Maria Beú, uma representação das tradicionais três Marias. São plangentes carpideiras em sentinela pela morte de Cristo. |
A veneranda imagem do Senhor Morto é descida ao esquife. Sua sobriedade é quebrada pela cor intensa de algumas flores de orquídeas, Cattleya loddigesii, carinhosamente ali depositadas. O cortejo processional toma forma, saindo pela praça. Na dianteira o grande estandarte carregado na horizontal, deitado, com a sigla da condenação, SPQR. Os figurados se seguem em notável harmonia, iniciados por Adão e Eva, dois jovens em vestimenta básica de folhas artificiais. Ele traz um cipó de forma espiralada enrolado no ante-braço evocando a astuta serpente; Eva vem mordendo uma maçã. Seguem-se muitos outros personagens, povo e mais povo, gente que não acaba mais, parece que a cidade toda está ali. A banda vem também, com suas marchas fúnebres.
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A banda honra a antiga e enraizada tradição musical do lugar. |
Pelas tantas vem o esquife do Senhor Morto sob o pálio roxo, ladeado por centuriões e membros da Irmandade do Santíssimo Sacramento. A sua passagem é acompanhada por quase todos. Quem não vai por algum motivo, se persigna à sua passagem.
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O pálio com o esquife. |
Fiéis rezam o terço, concentrados. Alguns vem de vela à mão, contritos. Ser devoto é ter a alma preenchida de luz. O lume emana, irmana.
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Uma devota. |
Uma nota pitoresca que hoje muito raramente se vê noutros lugares nessa cidade está felizmente preservada: é a presença dos farricocos, que a corruptela popular transforma em "fura-cocos", marchando céleres, de dois em dois, batendo matracas. Há duplas que caminham no sentido do fluxo da procissão, outras no inverso e às vezes se cruzam matraqueando numa cena assaz pitoresca. No passado, seu papel era manter a ordem das filas contra a invasão de bêbados ou eventual desordem de alguma criança, fustigando os desobedientes com varadas. Abolida a forma do castigo, permanecem impondo a presença mascarada em cone, no traje preto profundo, figuras ancestrais, simbólicas.
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Farricocos. |
A presença dos
farricocos é uma nota especial desta procissão em Conceição da Barra de Minas, conferindo-lhe uma importância ímpar no cenário das tradições das Vertentes. São de origem ibérica, trazidos ao Brasil colonial e mantidos em muito poucas cidades.
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Farricocos. |
A procissão desliza, serpenteia, como um fluxo gigante de devotos entre o casario cheio de preciosidades arquitetônicas. Por fim vem o andor de Nossa Senhora das Dores, aglomerando mais fiéis ao redor. O itinerário é longo, penitencial. Mas ninguém reclama. Todos estão ali pelo mesmo motivo, a mesma fé motriz, tendo a tradição por leme.
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Parte da multidão de fiéis que toma as ruas durante a Procissão do Enterro.
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Conceição da Barra de Minas deve se ufanar de seus costumes e envidar todos os esforços em prol de sua preservação, dentre o patrimônio material e imaterial, que em verdade só tem plenitude de sentido quando são sentidos assim, vivenciados e compartilhados, não um mero cenário, mas parte integrante da vida em comunidade.
Notas e Créditos
* Obs.: em São Miguel do Cajuru, distrito de São João del-Rei, informações orais deste ano dão conta de que entre os figurados da Paixão naquela vila estão as Virtudes Teologais (Fé, Esperança e Caridade), Adão e Eva (cobertos com folhas de café!), os Apóstolos, Moisés, Abrãao e Isaac, Centuriões, Ester, Maria de Cléofas, José e Maria, Nicodemus, José de Arimatéia, Verônica e as três Maria Beú. A informante citou ainda escoteiros.
** Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotos (19/04/2014): Iago C.S. Passarelli
**** Agradecimentos: Daniel William Dias Nascimento, pelo apoio concedido.
*****Sobre as tradições quaresmais desta cidade, leia também, clicando no link abaixo:
ENCOMENDAÇÃO DAS ALMAS EM CONCEIÇÃO DA BARRA DE MINAS
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