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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




segunda-feira, 21 de abril de 2014

Sexta-feita da Paixão em Conceição da Barra de Minas

O Descendimento da Cruz e a Procissão do Enterro

(ofereço em especial ao pároco dessa cidade, por sua dedicação e sensibilidade)

O ciclo da quaresma é um período riquíssimo em manifestações religiosas fortemente eivadas de valores culturais. Nos Campos das Vertentes estes eventos tem muita força e tradicionalidade, conhecidos em várias cidades e distritos, alcançando em algumas grande vigor, a exemplo de Prados, Tiradentes e sobretudo São João del-Rei, onde atingiu um patamar extraordinariamente preservado, que lhe garante um grande afluxo de visitantes e fiéis. 

Nesta postagem o olhar se volta para a aconchegante Conceição da Barra de Minas, cidade de origens setecentistas que ainda conserva belos exemplares arquitetônicos em igrejas e casario, e muitos costumes dignos de nota. Ora focamos o Descendimento da Cruz e sequencialmente a Procissão do Enterro, na Sexta-feira da Paixão, segundo observação de 2014. 

A cruz do Senhor e figurados diante da matriz paroquial.
Na praça da matriz, diante da imponente igreja da padroeira, Nossa Senhora da Imaculada Conceição, é armada uma arquibancada de madeira centrada pela grande cruz onde está fixada a imagem de Jesus. De um lado e outro se postam os "figurados", assim chamados os figurantes, pessoas da comunidade que nesse dia se caracterizam em papéis bíblicos, tais como centuriões romanos e apóstolos, Moisés, João Batista, Salomé e Herodíades, etc. (*)

O sacerdote ressalta os valores da fé cristã. 
De uma tribuna posta adrede, entre os figurados e o povo na praça, o pároco, Padre Saulo José Alves, em eloquente e empolgante oratória, perfeitamente embasada nos preceitos evangélicos, mantém toda a grande massa de fiéis presentes em contínua atenção para os elementos sagrados da Paixão do Senhor. 

Sequência do Descendimento da Cruz.

Ao fim de sua pregação conclama aos personagens José de Arimatéia e Nicodemos a passo a passo, descer a imagem do Crucificado: primeiro lhe tiram os cravos das mãos, depois é suspenso pela toalha alvíssima, a seguir o cravos dos pés, e lentamente vai sendo descido ao colo da jovem que representa Maria, a Mãe Dolorosa. Momento tocante, clímax simbólico de toda uma catequese magnificamente teatralizada com o máximo respeito e participação na fé de fiéis daquela comunidade.

Vêronica canta com toda dramaticidade.

Após a prédica a Verônica sob à tribuna e canta com grande sentimento o "O vos omnes": há dor maior que a minha dor? Vagarosamente desenrola a toalha onde está estampada a face do Salvador e depois aos poucos a enrola de novo. Fazendo-lhe eco, lamentam as três Maria Beú: "Heu, Deus!"

As lutuosas Maria Beú, uma representação das tradicionais três Marias.
São plangentes carpideiras em sentinela pela morte de Cristo.

A veneranda imagem do Senhor Morto é descida ao esquife. Sua sobriedade é quebrada pela cor intensa de algumas flores de orquídeas, Cattleya loddigesii, carinhosamente ali depositadas. O cortejo processional toma forma, saindo pela praça. Na dianteira o grande estandarte carregado na horizontal, deitado, com a sigla da condenação, SPQR. Os figurados se seguem em notável harmonia, iniciados por Adão e Eva, dois jovens em vestimenta básica de folhas artificiais. Ele traz um cipó de forma espiralada enrolado no ante-braço evocando a astuta serpente; Eva vem mordendo uma maçã. Seguem-se muitos outros personagens, povo e mais povo, gente que não acaba mais, parece que a cidade toda está ali. A banda vem também, com suas marchas fúnebres.

A banda honra a antiga e enraizada tradição musical do lugar.
Pelas tantas vem o esquife do Senhor Morto sob o pálio roxo, ladeado por centuriões e membros da Irmandade do Santíssimo Sacramento. A sua passagem é acompanhada por quase todos. Quem não vai por algum motivo, se persigna à sua passagem. 

O pálio com o esquife. 
Fiéis rezam o terço, concentrados. Alguns vem de vela à mão, contritos. Ser devoto é ter a alma preenchida de luz. O lume emana, irmana.
Uma devota.  
Uma nota pitoresca que hoje muito raramente se vê noutros lugares nessa cidade está felizmente preservada: é a presença dos farricocos, que a corruptela popular transforma em "fura-cocos", marchando céleres, de dois em dois, batendo matracas. Há duplas que caminham no sentido do fluxo da procissão, outras no inverso e às vezes se cruzam matraqueando numa cena assaz pitoresca. No passado, seu papel era manter a ordem das filas contra a invasão de bêbados ou eventual desordem de alguma criança, fustigando os desobedientes com varadas. Abolida a forma do castigo, permanecem impondo a presença mascarada em cone, no traje preto profundo, figuras ancestrais, simbólicas.

Farricocos.
A presença dos farricocos é uma nota especial desta procissão em Conceição da Barra de Minas, conferindo-lhe uma importância ímpar no cenário das tradições das Vertentes. São de origem ibérica, trazidos ao Brasil colonial e mantidos em muito poucas cidades.

Farricocos.
A procissão desliza, serpenteia, como um fluxo gigante de devotos entre o casario cheio de preciosidades arquitetônicas. Por fim vem o andor de Nossa Senhora das Dores, aglomerando mais fiéis ao redor. O itinerário é longo, penitencial. Mas ninguém reclama. Todos estão ali pelo mesmo motivo, a mesma fé motriz, tendo a tradição por leme.

Parte da multidão de fiéis que toma as ruas durante a Procissão do Enterro.

Conceição da Barra de Minas deve se ufanar de seus costumes e envidar todos os esforços em prol de sua preservação, dentre o patrimônio material e imaterial, que em verdade só tem plenitude de sentido quando são sentidos assim, vivenciados e compartilhados, não um mero cenário, mas parte integrante da vida em comunidade.

Notas e Créditos

* Obs.: em São Miguel do Cajuru, distrito de São João del-Rei, informações orais deste ano dão conta de que entre os figurados da Paixão naquela vila estão as Virtudes Teologais (Fé, Esperança e Caridade), Adão e Eva (cobertos com folhas de café!), os Apóstolos, Moisés, Abrãao e Isaac, Centuriões, Ester, Maria de Cléofas, José e Maria, Nicodemus, José de Arimatéia, Verônica e as três Maria Beú. A informante citou ainda escoteiros. 
** Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotos (19/04/2014): Iago C.S. Passarelli
**** Agradecimentos: Daniel William Dias Nascimento, pelo apoio concedido. 
*****Sobre as tradições quaresmais desta cidade, leia também, clicando no link abaixo:

ENCOMENDAÇÃO DAS ALMAS EM CONCEIÇÃO DA BARRA DE MINAS  

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