Na São João del-Rei tricentenária, a atmosfera barroca envolvente, eivada de história e cultura por toda parte, geriu um complexo sistema de crenças, rituais e cerimônias, que foi construído sobre as atividades religiosas do ciclo quaresmal. Seu ápice são as atividades sacras da Semana Santa.
O fiel encontra muitas possibilidades, bem como o turista, entre assistir missas, acompanhar procissões, ofícios, lava-pés... mas em especial nesta postagem, se focaliza a VISITAÇÃO DAS IGREJAS, um antigo costume desta terra que se mantém plenamente ativo desde longa data.
É muito intrínseco ao são-joanense e até difícil achar palavras para descrevê-la de forma adequada. É preciso vir, ver, visitar, sentir... cheiro, sons, cores, burburinho de gente, matraqueados, sabores de amêndoas, ver cortinas roxas. Acontece na plenitude de uma romaria familiar, que de toda a cidade acorre para o centro histórico, lotando as ruas, desenvolvendo um roteiro pelos templos, que permanecem abertos e aromatizados pelo rosmaninho, pela arnica e o manjericão.
As Capelas do Santíssimo Sacramento estão floridas. O entra e sai é grande. Gente fotografando, povo rezando. No Pilar o aspecto é imbatível, pelo volume de vasos, requinte e zelo. Afinal é a Catedral Basílica.
O roteiro que segui este ano com esposa e filho é o seguinte, que seguia na infância com meus pais e o irmão abaixo de mim em idade: inicialmente a Igreja de São Gonçalo Garcia. Vencida a escadaria charmosa, curvilínea e o portão de ferro gradeado, simples mas não isento de seu encanto, se depara com uma fila de visitantes estancada diante da imagem de Santa Luzia, muito venerada neste templo. O ritual é o seguinte: beija-se a fita, passa-se os dedos sobre os olhos da santa esculpidos na salva que segura e esfrega-se estes dedos sobre os próprios olhos para assegurar a boa visão. As demais imagens estão recolhidas nas salas laterais, acessíveis para visita, destacando o padroeiro, Santa Joana d'Arc, Santo Expedito e Nossa Senhora do Amparo.
|
4- Cenografia no São Gonçalo: luzes e fumaças dramatizam a encenação. Som mecânico reproduz a música de nossas orquestras bicentenárias, ecoando no ambiente. |
Um quadro curioso se desenha no presbitério. Atrás de um biombo de pano aberto ao centro, com desenhos de uma floresta, que ambientam o cenário, uma imagem do Senhor está ladeada por dois anjos suspensos. A transfiguração é relembrada. Um jogo de luzes e fumaça climatizam a encenação. Uma longa fita vermelha vem da imagem, anteparada por uma fileira de bancos atravessados. O povo a beija, persigna-se, ajoelha, admira, reflete.
O passo seguinte é o São Francisco, igreja alcançada pela Rua Balbino da Cunha. Logo de saída se vislumbra o belo Chafariz da Legalidade, de 1834. O templo magnífico mantém nas janelas os bandeirões com a ignóbil sigla SPQR (*). Logo à entrada, na base da escadaria em espiral, feita de pedras, um Senhor Morto jaz entre ramos de arnica, velado por dois círios. Tudo está escuro. Só o bruxulear das chamas lampeja tênue no ambiente sagrado. A cena rememora o sepulcro.
|
5- O Sepulcro do Senhor, na monumental Igreja de São Francisco de Assis. |
A grande igreja está no escuro. É Quinta-feira de Trevas. O mundo está na escuridão, a morte domina momentaneamente graças à maldade humana que condenou o Filho de Deus. É preciso compreender a psicologia dessa noite, desse cenário didático. No altar-mor, imagens de roca dos santos franciscanos ora estão em novas posições graças às articulações dos braços e pernas. Com outras roupas e adereços, são agora centuriões de capacete e lança, apóstolos medrosos com túnicas. Adaptabilidade.
Na travessia da nave para a sacristia, no corredor, um velho banco-baú e uma essa escura, com uma caveira entalhada. Móveis tenebrosos. A grande e bela imagem de Nossa Senhora da Conceição se impõe na sacristia, terna, com um olhar carinhoso, abrangente... florida. Muitos vem vê-la.
A Igreja de Nossa Senhora de Lurdes nessa noite não faz parte do conjunto de encenações mas está aberta e em missa. Santo Antônio zela a entrada em capelinha aconchegante. Santo queridíssimo. Tem uma multidão de devotos. Descido o largo, que se continua com a Rua da Prata (oficialmente Padre José Maria Xavier), se vislumbra um passinho aberto, e gente ajoelhada na capela do convento, em contínua oração, terços e mais terços, começados por uns, emendados por outros.
A Ponte do Rosário, maravilha oitocentista de pedra, nos leva à rua mariana, Direita, Getúlio Vargas. A antiga igreja dos escravos, de 1719, tem muitos fiéis no interior, vendo no presbitério a montagem com anjos e luzes. Na sacristia a Grande Mãe, de rosário à mão está belíssima, majestosa. De sua janela, se vê a lua cheia saindo por detrás dos velhos telhados. "Não há Paixão sem cheia", diziam os antigos, se referido à fase lunar inalterável em toda Semana Santa.
|
6- Rosário: a Grande Mãe. |
Do Rosário se toma a Rua Santo Antônio, transformação urbana, setecentista, do longínquo Caminho Geral do Sertão. O casario desaprumado se engalana de roxo para a visitação. Panos pendem das fachadas coloniais. A fé transborda das janelas. O luto sai de dentro das casas para a rua de pedra pé-de-moleque, prateada pelo clarear da lua cheia.
|
7- Rua Santo Antônio: a fé transborda das velhas janelas como uma lutuosa onda roxa. |
Na simpática capelinha do taumaturgo lisboeta, o jogo de luzes dramatiza e evidencia o triunfo de Jesus sobre a morte. Abaixo de seus pés um anjinho de joelhos vela silencioso um sepulcro vazio, forrado de rosmaninho e arnica serranos. O padroeiro Santo Antônio está de pé na sacristia, cheio de flores, com vestes sacerdotais. Não lhe faltam visitantes fidelíssimos.
|
8- Jogo de luzes sobre o Senhor do Triunfo na simpática Capela de Santo Antônio. |
O retorno pela mesma via se desvia à esquerda pela Travessa Roque T. Neto (que ainda conserva interessante paredão de pedras arrimando um quintal), subindo em graciosa curva rumo à Rua das Flores (oficialmente, Maestro Batista Lopes), onde passando por significativo patrimônio arquitetônico residencial, se vai à novel Capela do Divino, que tem cara de antiga, porque se instalou em prédio colonial e com muito charme, tem uma relíquia no teto: pinturas do pincel genial de Joaquim José da Natividade, em estilo rococó, ao modo ilusionista. A montagem neste templo nada deve aos mais antigos. Vemos aqui a sequência da Assunção de Maria num jogo de três imagens belíssimas, dispostas em três níveis: Nossa Senhora da Boa Morte ao nosso nível, "morta", dormindo, sereníssima em seu esquife; Nossa Senhora da Assunção, intermediária, subindo, de braços abertos, sentada numa nuvem, sapatinhos caindo para a Terra; Nossa Senhora da Glória, de joelhos, nas alturas do altar-mor, mãos contritas em atitude de prece, coroada pela Santíssima Trindade. A didática catequética dessa encenação barroca é notória. Fala por si, se revela com eloquência.
|
9- Na Capela do Divino, Maria se eleva em planos de santidade. |
Na descida para a Muxinga se passa por dois cemitérios vizinhos, lado a lado, de irmandades diferentes. Subindo pela beira do hospital se chega ao Largo da Câmara, pelourinho de um lado, Igreja das Mercês acima. Alcançar-lhe já é um ato penitencial, escadaria de pedra, larga,comunitária, afunilando para a porta da igreja. Estreito é o caminho que leva à Deus. A evangelização está em tudo. Parece que foi planejado meticulosamente.
|
10- Nas Mercês a lição da humildade relembra a origem simples de Jesus, num tempo em que a soberba domina a humanidade. |
A montagem cenográfica mostra-nos agora o outro extremo da vida de Cristo: a Gruta de Belém. A Sagrada Família comovedoramente humilde se ilumina entre carneirinhos e um galo curioso. A Santa Mãe banha seu filho sagrado numa gamela artesanal de madeira, dessas de fazer broa. É a Belém mineira! Uma livre interpretação, verdadeira riqueza improvisatória, criatividade que confere um regionalismo especial ao conjunto. Já se ouve belos acordes de uma marcha de Luiz. Na sacristia, a música de Batista Lopes soa maravilhosa numa caixa de som escondida entre flores, que rodeiam a imponente Virgem das Mercês, libertadora, rompedora de correntes, malditos grilhões escravos. Depois de vislumbrá-la, nada mais bucólico que ver-lhe os jardins, uma alameda cheia de bromélias, folhagens, flores, cavalinhas, entre pedras e fontes, que terminam numa gruta iluminada, com a imagem de Nossa Senhora de Lurdes.
|
11- Água cristalina numa fonte da alameda da Igreja das Mercês. |
A escadaria está cheia de famílias e turistas, subindo e descendo. O mirante permite ver uma parte histórica da cidade e ao longe, na colina oposta, o cruzeiro luminoso que ladeia a pequena Capela do Bonfim. Mas logo abaixo do observador está um grande painel fixado na parede de fundo da Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar. Retrata a Santa Ceia. Diante dele um palanque serve à missa campal do Lava-pés. Uma mesa representa o local da instituição da eucaristia. Muita gente assiste e ora. Ao redor, vendedores de pipoca com seus carrinhos típicos e outros ambulantes tradicionais, como aquele que fica com uma grande haste onde se finca coloridos algodões doces _ gostinho de infância; outro, está com um bujão de gás hélio para encher balões, bexigas de ar, alegria das crianças.
A Capela do Santíssimo no Pilar como já se disse, apresenta-se lindamente florida. A Rua Getúlio Vargas está com os dois passinhos abertos, bem como o Oratório de Nossa Senhora da Piedade. Há ainda o Museu de Arte Sacra e o Memorial Dom Lucas. Atrações não faltam. Diante da catedral, populares vendem arnica, amêndoas, maçãs do amor e outras delícias típicas.
12, 13 e 14 - Maçãs do amor, cartuchos de amêndoa e a medicinal arnica: produtos típicos em venda pelas ruas.
A última estação dessa caminhada da fé é o Carmo. É Igreja imponente, joia colonial. Diante dela um grande tapete de serragem colorida dá as boas vindas e sacraliza até os paralelepípedos de pedras do calçamento que se pisa. A entrada é tão concorrida pela beleza e conteúdo ofertados, que não é fácil chegar ao altar. Uma longa fila se forma. Enfim, ver a Senhora do Monte Carmelo e elevar-lhe preces é como coroar esta via-sacra.
|
15- Movimentação na Igreja do Carmo. |
Eis a peregrinação anual do são-joanense. Na direção proposta ou na inversa, ou num sentido aleatório, não importa. Ninguém lhe manda fazer isto, não é convocado... é invocado, pelo seu instinto sagrado que mais parece incrustado no DNA. Semana Santa em São João del-Rei é assim: acolhedora, sagrada, musical, cultural, com perfumes de ramos desfolhados, é dramática e barroca. Não é um espetáculo forjado. É uma essência vivenciada, "ecossistêmica", que só se justifica porque a fé permanece viva geração após geração.
Notas e Créditos
* SPQR: iniciais da expressão latina Senatus Populus Que Romanus (Senado e Povo Romano). São estampadas em amarelo ou dourado sobre flâmulas roxas como símbolos da autoridade terrena, do poder político e militar, que reinou durante a crucificação de Jesus. As pessoas interpretam contudo esta sigla de forma jocosa. Ouvimos três versões populares em São João del-Rei: uma delas diz que SPQR é "São Pedro quer rapadura"; outra, "seu padre quer rapé"; uma terceira aposta em "sal, pão, queijo, rapadura"... O Professor Antônio Gaio Sobrinho registrou também "salve povo querido de Roma" e ainda "sou poeta quando ronco"... Entretanto, frisou: "mais bela e significativa é certamente a que li num dos barroquíssimos sermões de Vieira: "Salva Populum Quem Redemisti, isto é, Salva o Povo Que Redemiste."
**Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotografias (17/04/2014): Iago C.S. Passarelli (1,2, 4-11); Ulisses Passarelli (3,12-15)
Referências Bibligráficas
GAIO SOBRINHO, Antônio. Sanjoanidades: um passeio histórico e turístico por São João del-Rey. São João del-Rei: A Voz do Lenheiro, 1996. 104p.il. p.54.
Nenhum comentário:
Postar um comentário