Bem vindo!

Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Festa antiga x atual

      
É inevitável a comparação entre a Festa do Divino antiga e a atual. Esta unidade do trabalho se dedicará a isto. Tal comparação é sempre polêmica, porque incorre em questões de ponto de vista e daí ingressa no campo da relatividade. É preciso compreender o que chamo aqui de “festa antiga”, que compreende um período sesquicentenário: 1774-1924. Depois vem uma fase intermediária de setenta e quatro anos em que a festa esteve ora desativada ora ativa, mas sem brilho, quase extinta e por fim a “festa atual”, a partir de 1998.

Ora, não se pode rivalizar o pequeno tempo pós-reativação, contra cento e cinqüenta de ontem, ainda mais tendo entre um e outro períodos, a abismal fase intermediária, de profundíssimas mudanças sociais e religiosas. A própria festa antiga não tinha em si uniformidade. Conheceu também ela fases, como aquela até aproximadamente os fins da década de 1830 ou 40; outra que vai até o fim daquela centúria (por assim dizer a fase áurea)[1] e uma terceira, já no começo dos novecentos, sob o domínio da jogatina e que os jornais chamaram de aristocrática. A festa atual é ainda muito nova, não teve tempo de incorporar e amadurecer (digo, consolidar), todos os elementos constitutivos. Não se elaborou ainda em fases. Engatinha apenas. A cada ano novas experiências são tentadas e outras abolidas. Esta é a primeira consideração.

A segunda fase diz respeito à dinâmica sócio-cultural que impulsiona a sociedade e que é fundamental ao folclore: a contínua renovação, sem a qual a cultura se cristaliza, caduca mesmo, com aquele anacronismo inviável com os novos tempos. Basta dizer que uma folia do século XIX, tem os elementos básicos de uma do século XXI, mas esta tem peculiaridades que a discernem daquela. Assim com o congado e qualquer manifestação folclórica antiga. Há uma adaptação que põe o conjunto todo em sintonia. 

Com a globalização, muitos folcloristas lançaram sobre as manifestações folclóricas, um agouro apocalíptico como se fosse aquele o fim de todo o folclore. Após o baque inicial ele se adaptou à nova realidade e está aí, qual fator de resistência cultural.

A própria religião – basta estudá-la – apresentou infinitas mudanças e a hegemonia católica não é a mesma[2]. A forma de se catequizar e de se relacionarem fiéis X Igreja continua em franca e positiva mudança.

O bairro onde se realiza a festividade mudou de forma incomensurável em todos os aspectos, ou seja, o ambiente das comemorações foi alterado.

Mais de duzentos e trinta anos de diferença numa sociedade imprimem nela mudanças profundas na economia, nos hábitos, nas relações sociais e eclesiásticas, nas diversões, etc. Se a festa contemporânea fosse igual àquela imperial, não seria espontânea mas uma encenação, uma representação por artistas treinados para aquilo. Não haveria uma participação vivenciada de fiéis, que estariam tolhidos de sua criatividade, apenas assistindo e arremedando o festejo à antiga [3].

Desta sorte a festa setecentista e oitocentista serviu à atual de roteiro orientador, sobre o qual, uma nova história foi escrita. Os elementos se assemelham mas felizmente nunca se igualam. A continuidade é espiritual e não histórica. O que passou, passou, como um dia o modelo atual passará para se adequar a novas mentes.

Tendo isto como diretriz, a palavra “resgate” tem o seu valor duvidoso. Se fosse de fato um resgate no sentido etimológico, a festa de hoje teria sido recuperada do passado tal como era. Isto seria um resgate verdadeiro. E como ela era? Tudo que sabemos está contido nos velhos jornais, mas será que isto é suficiente para ter-se dela a exata visão? Com toda a melhoria da imprensa, ainda hoje uma matéria jornalística, por mais bem escrita que seja, não consegue de forma perspicaz, captar a essência festiva. Traça-lhe no máximo um panorama, descreve elementos gerais. Assim o resgate é impossível, senão aproximado a nível de encenação, mas não do lado religioso. E entenda-se religião aqui não apenas como a oficial, mas também a popular. Ou seja, religião, propriamente dita e religiosidade.

Numa conversa informal a esse respeito (em 30/05/2008), o professor Antônio Gaio Sobrinho manifestou-me opinião harmônica com este meu pensamento ao afirmar que o resgate era relativo dada a extemporaneidade da festa que hoje vemos. A festa foi sim reativada, ou melhor, remodelada, palavra preferencial. Resgatada, não. Por isto uso o termo resgate sempre entre aspas. Tirem do jubileu o imperador perpétuo, o imperador móvel, destituam a devoção ao Paráclito por outra, extirpem seu colorido, musicalidade e espontaneidade, a fartura alimentar e a alegria, seu coreto, introduzam cenógrafos e coreógrafos ordenando ambiente e danças e o terão descaracterizado por completo.

Nesses parâmetros, vencidas as divergências, calcou a Comissão do Divino seu trabalho cujo resultado aí está, num êxito evidente, fruto de profundo esforço, pesquisa, boa vontade, empenho, abnegação, lealdade à causa, fé, honestidade e trabalho de equipe. Este foi o impulso inicial.

Perscrutando as folhas dos jornais, nota-se que as notícias acerca da festividade antiga repisavam sobre alguns assuntos. Esses elementos compunham o esqueleto da festa, seu arcabouço ou estrutura básica, que, respeitadas as atualizações, persistem ainda hoje, na medida do possível e do que permite a coerência. Outros elementos apareciam mas eram ocasionais, ou, se preferirem, incidentais.

Para corroborar essa diretriz adotada pelos festeiros, lembro do seguinte pensamento, atribuído ao líder pacifista e religioso indiano Mahatma Gandhi: “se queres progredir não deves repetir a história, mas fazer uma história nova.”

Outrossim, compensa encerrar o capítulo com as observações de MENDES (2001):

A religião não existe sem a festa, ou separada dela, porque é aí que se confessa a actuação e a actualidade do Mistério que se crê, e que se crê porque antes se faz presença no sujeito, habitando-o tanto quanto transcende. Não devemos confundir festa com espetáculo, nem ócio com negócio, nem mesmo a religiosa. A festa merece sempre a maior atenção e cuidado pastorais, quando sinceramente nasce dum sujeito religioso, que nem sempre coincide com as comissões que a promovem (p.23).

Café da manhã ofertado aos congadeiros na Festa do Divino. 

* Texto: Ulisses Passarelli
** Foto: Iago C.S.Passarelli, 2012


[1] - No Rio de Janeiro ABREU (1999) observou: “as festas populares, e especificamente o Divino, principalmente a partir do final do século XIX, fizeram parte de um importante campo de luta intelectual em torno da questão nacional, onde circulavam e disputavam, concomitantemente, visões ufanistas e saudosistas de uma antiga tradição e identidade da cidade, e concepções favoráveis, ou não, à miscigenação e às teorias cientificistas racistas” (p.141).
[2] - Por exemplo, desde 1999 que se realiza a partir de Matosinhos para o centro da cidade o evento evangélico “Marcha para Jesus” , promovido pelo Conselho de Pastores Evangélicos. Em 2004 foi transferido para o Tijuco em razão da violência que então imperava naquele bairro, no sentido das orações se dirigirem à sua pacificação. A Marcha para Jesus é um evento mundial, iniciado na Inglaterra em 1987 e acontece sempre no mesmo dia em todos os países que o realizam.
[3] - Ver: PASSARELLI, Ulisses.  Resgate do Jubileu do Divino: passado e modernidade, teoria e prática. O Grande Matosinhos, n. 17, mar. / 2001.

Nenhum comentário:

Postar um comentário