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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Folclore das Almas

Neste dia de finados recordei-me de algumas tradições sobre as almas, que desde a infância ouço em São João del-Rei, mas que em verdade se fazem cosmopolitas, em cada região com variações específicas. Comentarei com brevidade sobre algumas concepções populares, ainda que em eventual divergência com a doutrina das igrejas.

As almas se configuram como uma categoria de espíritos em torno dos quais se construiu um complexo mitológico e devocional interativo, de difícil separação. São espíritos ainda humanizados, mais ou menos com suas características sentimentais e psicológicas. Não alcançaram a santidade elevada daquelas agraciadas com a canonização, nem as propriedades fluídicas de força das entidades espirituais dos terreiros, como os guias. Estão em nível intermediário e como tal acessíveis às preces dos fiéis do catolicismo popular. 

As almas podem se apresentar aos vivos em visões mais ou menos fugazes e turvas, ou com grande clareza, a depender da mediunidade da pessoa, ou da necessidade extremada de se comunicar. Ora surgem como uma fumaça ou um vulto mal definido ora com um formato humano, embora logicamente incorpóreas. Assim conservam a fisionomia que tinham quando encarnadas e se apresentam visualmente com as vestimentas, trejeitos e até simulação de objetos pelos quais eram conhecidos. Desta forma são vistas nos sonhos ou mesmo em aparições a qualquer hora, diante da pessoa escolhida. 

Quando não são vistas se fazem anunciar por sons que produzem especificamente para chamar a atenção, como de água saindo de uma torneira que está fechada, baldes e vasilhas domésticas caindo, algo se arrastando, passos dentro de casa, sons de pequenas pedras rolando telhado abaixo, luzes que se acendem sozinhas sem ninguém tocar o interruptor. Animais as avistam normalmente e acusam sua presença pelo olhar espantado ou alegre _ quando conhecida _ e emitem seu latido, miado, relincho... 

Outra forma de se apresentar é pelo cheiro característico de vela queimando, ou melhor, fumegando, quando termina o pavio, mas sem que ninguém no local esteja com vela alguma acesa. 

Aí vem a sensação de arrepio, um ar frio ao redor da pessoa visitada pelo “morto”, o zumbido no ouvido prenunciador de uma mensagem do além, que virá em palavras audíveis ou em um simples entendimento mental. A pele esfria. A alma está ali, lado a lado com a pessoa. Começa abrição de boca, seguidamente. São muitos bocejos, inexplicáveis, sem que se esteja com sono. Por vezes um leve tremor ou uma contração repentina do ombro, um "saculejo", como se diz. O povo diz intuitivamente: “passa morte, que estou forte!”

Isto é no cotidiano, posto a licença de uma alma vir em breve visita, mostrar alguma coisa que está acontecendo sem que a pessoa o saiba, ou para pedir algo a um vivo: algum feito que faltou em sua encarnação e que se não for cumprido prejudica a caminhada celestial daquele espírito. Trava sua evolução. A dívida espiritual prossegue além-túmulo no cumprimento da justiça divina. Daí correrem estórias de tesouros enterrados, de corpos assassinados e ocultos que foram descobertos pela força de uma visão reveladora, gerada pela alma envolvida que necessita disso ou daquilo para seu socorro próprio.

Toda segunda-feira é dia das almas. Seis horas da tarde (18 horas) é sempre seu tempo. A vela para elas é a branca, de parafina, cera ou espermacete. 

No dia de finados as almas tem licença para vir aos cemitérios e aguardar junto aos túmulos as visitas dos entes queridos. A acorrida aos campos santos é geral pelos humanos, na ânsia de uma proximidade fugaz ou por simples hábito. Em São João del-Rei merece destaque a acorrida ao túmulo da Jovem Desconhecida, no Cemitério do Quicumbi, à qual se atribui o título de taumaturga.

Mas em dias corriqueiros as almas só se manifestam rapidamente por uma concessão superior, ou do contrário, se não se libertaram de suas intensões mundanas tornaram-se penosas, ou seja, que vagam sem rumo ou permanecem junto aos tesouros que juntaram em vida como se dele ainda fossem dependentes e guardiãs. E isto representa um sofrimento. São elas que assombram, intimidam em velhos casarões coloniais, em porteiras empenadas que rangem e batem sozinhas, nos antigos cruzeiros diante dos quais estacam mulas-sem-cabeça, bafejando chispas, após desenfreada correria; em porões tenebrosos estão as almas, nas esquinas sombrias, encruzas. 

Se uma alma dessas se mantém no âmbito da vida cotidiana de um ser humano se torna para ele um fardo, prejudica-o, torna-se um obsessor. Não se deve rezar para as almas dentro de casa de forma alguma, nem por alguém muito próximo que partiu, pois sua alma tende a permanecer dentro daquela casa. Reza para as almas é de fora, no tempo, no quintal. 

A alma penada não está no céu, no inferno, no purgatório, limbo ou umbral. Permanece presa na Terra, teimando em permanecer apegada ao material ou impedida de seguir para outro plano por suas transgressões, até que se arrependa.

O conceito folclórico de alma penada faz lembrar por analogia o que se chama em alguns terreiros de umbanda, quimbanda e candomblé de egum, mas não é plano deste breve texto enveredar neste paralelo.

Em oposição às almas penadas estão as almas do purgatório, que estão sofrendo por suas faltas, mas que já foram resgatadas do plano terrestre e que, aprisionadas no dito purgatório, dele se libertam para a luz de Deus graças às nossas preces em seu favor, especialmente as intermediadas por São Miguel Arcanjo (“Condutor das Almas”) e Nossa Senhora do Carmo, que são os mais capazes de resgatá-las. Dessas preces se ocupa de forma especial o conhecido rito da encomendação das almas.

Dentre as almas do purgatório estão as chamadas “aflitas”, termo empregado àquelas que mais sofrem por estarem mais em profundidade no castigo, com precisão de socorro imediato. Para elas são dirigidas orações dos aflitos da Terra, numa relação de troca, prometida a prece por uma ação movida por elas. Colocar as almas aflitas no encalço de alguém que está, por exemplo, devendo algo, até que venha pagar, dá ao devedor uma tremenda e insuportável aflição: o sujeito fica acelerado, nervoso, ansioso. Não dorme bem, não come direito, tudo dá errado até que se lembre da dívida e pague. Aí o promesseiro terá de pagar a conta com as almas _ velas, rezas, missas em favor de _ ou terá aflição voltada para si. 

Em outra categoria estão as almas já recuperadas, que tem condições de ajudar os humanos, sem atrapalhar nada em sua vida: são as almas chamadas de benditas, sabidas, entendidas e encaminhadeiras. Por elas pedem os devotos das almas, como se roga a intervenção de um santo. 

Seja como for a concepção popular diz que jamais devemos esquecer os mortos pois ensina-se que em verdade estão vivos na espiritualidade e de lá nos avistam e acompanham, choram por nosso esquecimento e se alegram com nossa boa consideração. Se os esquecermos, também quando lá chegarmos seremos esquecidos pelos da Terra e a penúria da solidão recairá sobre nós.

Cemitério do Caburu. (São Gonçalo do Amarante, distrito de São João del-Rei / MG). 

Notas e Créditos

* Texto e foto (2011): Ulisses Passarelli
** Assista: JOVEM DESCONHECIDA 

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