São Gonçalo do Amarante: estórias do passado
A vida simples do meio rural calcou seu alicerce num ambiente religioso e recatado, essencialmente conservador e respeitoso dos valores sagrados de sua crença, que possibilitou a preservação de várias concepções lendárias e mitológicas. Um modo peculiar de entender as forças sobrenaturais que se contrapõe ao ceticismo dos tempos hodiernos.
Anos atrás no povoado do Fé, na área geográfica distrital de São Gonçalo do Amarante, em São João del-Rei / MG, eu já havia coletado diversas narrativas populares com o saudoso mestre folião Luís Candido Gonçalvez sobre aparições misteriosas. Aqueles espectros foram registrados num texto de minha autoria [1].
Mais recentemente (12/06/2010), outro mestre de folia de Reis e também capitão de congo, Lourival Amâncio de Paula, carinhosamente conhecido por "Vavá", na vila de São Gonçalo do Amarante, cabeça do distrito em análise, prestou-me gentilmente informações sobre esses antigos fantasmas que a modernidade vai banindo para os confins do mundo. Conforme o próprio informante me disse, após a chegada da energia elétrica em São Gonçalo (ex-Caburu), a cerca de meio século, as assombrações desapareceram.
Passo-as agora em breve revista.
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- Lobisomem: é um problema ligado ao apadrinhamento [2]. Aparece como um porco agigantado, que bate orelhas, estala os dentes e corre atrás das pessoas. Se o porcão morder alguém que sobreviva, a vítima também passa a virar lobisomem.
- Mula-sem-cabeça: era uma senhora idosa que se transformava no bicho assombrado. Logo que virava mula ia no cruzeiro e dava três voltas em redor e depois corria endoidecida pela vila, soltando chispas de fogo até que voltava ao dito cruzeiro, dava mais três voltas e retornava à sua forma humana, voltando à sua casa, fatigada e confusa.
- Homem de Branco: surgia de uma casa na Travessa Cava Funda, como um homem claro de trajes impecáveis, terno completo, calçado preto lustroso, cabelo liso e bem penteado para trás. Chegou à porta de um certo morador e forçou a entrada, desaparecendo de súbito, como de costume.
- Cavalo de Três Pés: assombro que vinha lá das bandas do rio (das Mortes), onde morreu um padre. Sua alma vinha montada nele, desde o Morro do Vinte e Três (referência ao km 123 da Ferrovia Oeste de Minas) até a entrada do Caburu, onde apiava para descansar sobre uma pedra. Dali vinha pela rua afora e desaparecia no bambuzal que existia na travessa (é um caminho velho, hoje Rua Valdomiro Geraldo de Paula, ex-festeiro do rosário). A passagem da misteriosa montaria era reconhecida no dia seguinte pela característica pegada que deixava.
- Corrente: vinha misteriosamente de arrasto pela Rua da Pinguela e subia até a Rua do Meio, fazendo barulho tétrico caminho afora. Nenhum ser humano a puxava.
- Saci-pererê: um morador local deparou-se com ele sobre um moirão, moleque de boné vermelho, fumador de cachimbo, de um pé só, que assobiava uma mazurquinha. Não o importunou. Mas um outro homem desse lugar, no beco de pedra, levou do saci duas lambadas de relho nas pernas. Ainda se conta de fulano de tal, que vinha da Rua do Posto de um teimoso jogo de baralho em plena quaresma, quando viu o saci assobiando no barranco. Foi o que lhe bastou de alerta sobre seu pecado, emendando daí por diante.
* * *
As antigas assombrações tinham no ambiente comunitário o poder regulador dos excessos, aparecendo aos desobedientes da regra religiosa e aos abusados, descrentes. Para não ser afetado o homem deveria ser devoto de fato e levar uma vida criteriosa dentro dos preceitos sociais e religiosos.
Além do aspecto educativo compunham as assombrações, como numa peça de quebra-cabeças, a imagem do contexto cultural do lugar onde era vivenciada, qual sua alma, reveladora de uma profunda espiritualidade.
Lamentável hoje ver deveras o vazio halloween sobrepujar nossa rica mitologia, apenas tracejada nesta postagem.
Felizmente ainda persevera ao menos na memória dos antigos mestres do saber, como o nosso Vavá, esforçado guardião da memória da vila de São Gonçalo do Amarante, a quem rendo homenagem e gratidão.
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Cruz de Via-sacra, à beira da estrada que vai para o Mestre Ventura. |
Notas Finais
- O padrinho que tem relações sexuais com o (a)
afilhado (a) passa a virar lobisomem como castigo. Certo rapaz que virava
lobisomem quando foi se casar, na véspera, se transformou e correu atrás da
própria noiva, que no momento estava experimentando o vestido e naturalmente desconhecia o fato. Desesperada
correu como pode até conseguir se por a salvo, mas no limite extremo do perigo
o assombroso animal ainda conseguiu morder a orla do vestido. No dia seguinte, na hora do casamento, surgiu o noivo já normal, e na hora do seu “sim”, a moça
viu entre os dentes do rapaz fiapos de seu vestido e desesperada negou-lhe o
casamento, fugindo às pressas de sua presença.
eu morria de medo desses contos , que meus tios insistiam em ficar nos contando , e com isso minha mãe é que gostava pois logo que escurecia não saíamos mais de casa
ResponderExcluirEstes contos fazem parte de nosso universo cultural e revelam uma forte interligação do homem com a espiritualidade. Na postagem VIDA RURAL, neste blog, você poderá se inteirar melhor do contexto social onde estas narrativas são vivenciadas. Aguarde. Em breve postarei mais estórias. Obrigado pela visita.
ExcluirMeu pai, Antonio Manoel Frade, hoje com 78 anos, viveu no Caburu até seus 14 anos, hoje São Gonçalo do Amarante. Ele nos conta que viu uma mulher de branco, muito alta, tão alta como um poste.
ResponderExcluirEle era criança quando foi buscar água no poço e se deparou com esse fantasma.
Hoje, morando em Varginha, não vê mais fantasma, não vê nem mesmo E.Ts. Mas, se recorda ainda desses estórias que embalaram nossa infância. Denise A. Frade Bornia
Denise, agradeço a visita e volte sempre ao blog. Estas estórias tiveram o seu encanto sobre toda uma geração, participando da educação infantil de muitas pessoas. No tempo que se contava estórias as pessoas eram mais unidas, sempre dispostas a ouvir os casos dos mais velhos, com seus mistérios e saberes. Atenciosamente, Ulisses.
Excluirmeu nome é joel oliveira tenho 31 anos de idade, fui criado no distrito do caburu. ouvi muitos estas estórias, Seu Vavá esqueceu de sitar uma. certa vez uma moça de familia muito catolica ficou gravida e de um forma não sei como escondeu de seus familiares o fato de estar gravida, e resolveu enterrar seu filho vivo no lugar conhecido como chafaris, por ser um lugar onde existe uma mina de água.E toda fez que passava por ali ouvia o choro do bebe. (
ResponderExcluirPela primeira vês visito este blog, queria pedir licença para registrar também uma historia que ouve quando criança e morava lá no então Caburu , No final da década de 1950 ainda não tinha iluminação publica e as crianças tinha muito medo das historias. Contava-se que havia um padre que vivia lá na fazenda velha lá do mundo vira, (hoje atual fazenda da passagem), depois de sua morte passou a vir celebrar missa na vila do então povoado São Gonçalo do Brumado, assim que passava da meia noite lá vinha ele em seu cavalo, sempre vestido com uma capa, assim que ia passando não se podia olhar, pois quando passava ao ser avistar de costa, se via era uma caveira e duas velas acesa, que pesadelo para as crianças quando acordava a noite e ouvia tropel dos cavalos na rua.
ResponderExcluirAgradeço as visitas e contribuições. As narrativas lendárias são temas apaixonantes e de uma riqueza extraordinária. Oportunamente novos "causos" serão postados.
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