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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Causos sobre vacas

Nesta postagem expõe-se dois curiosos causos envolvendo vacas.

O primeiro é uma transcrição jornalística (*) de matéria publicada em São João del-Rei a 112 anos. Teria acontecido no distrito de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno. A grafia foi atualizada. Narra o castigo divino que caiu sobre um sitiante que usurpou a vaca de outro e é explicitamente o reflexo do pensamento da cultura popular sobre a justiça divina. Estórias assim se repetem como exemplo de lição, e, como tal, assume finalidade quase catequética.

O segundo causo é anedótico e se passa com uma folia de reis rural que ruma à casa de um potentado político do sertão, um "coronel" como se dizia outrora, título não militar, de cunho honorífico, aplicado a ricos comerciantes e latifundiários, em geral poderosos e violentos, impondo seu domínio pela força de armas na mão de capangas. Ouvi-o aqui mesmo, nesta São João, terra de ricas tradições, num finzinho de tarde a dez anos, do saudoso folião "Tião Domingos" (**), enquanto esperávamos o restante da companheirada chegar para sairmos com a folia à rua. Bons e saudosos tempos!

Detalhe de uma pintura popular sobre um latão de leite de 50 litros.
São Miguel do Cajuru (São João del-Rei/MG).

1- "Deu-se há dias neste distrito um fato, que muito tem impressionado esta população. Eis o caso: um sitiante vizinho foi a casa de outro e lá, com extrema brutalidade, insultou-o muito, insultou a própria família do mesmo, contando com o gênio excessivamente pacifico do insultado. Tudo isto fez por causa de uma vaca que dizia ser sua e que afinal de contas não era. Ao retirar-se garboso, tocando a vaca que dizia ser sua, o fazendeiro insultado disse-lhe apenas estas palavras: "a vaca não é sua mas pode levá-la que Deus cobrará por mim." Em tal hora essas palavras foram ditas que os anjos disseram _ "amém". Dois dias depois disso, sem chuva alguma, céu claro e sem nuvem, estronda um corisco e cai uma faísca no meio do gado do sitiante, e dessa feita, morreram seis vacas, das melhores. O sitiante vai mudar o gado de pasto e outra rês cai num desbarrancado. Dias depois morrem mais duas vacas atoladas, quase em frente à casa do sitiante usurpador. A providência cobrando as injúrias lançadas à família do outro! E assim vai o bruto pagando, e com juros a vaca tirada. Este fato verdadeiro e real muito nos tem impressionado aqui."


2- Aí por esses ermos entre montanhas, foi a muito tempo, que uma folia de reis, daquelas simplórias, próprias das roças, estava em jornada por léguas, visitando sitiantes e fazendeiros, tendo à frente sua bandeira sagrada. A bandeira era muito humilde, feita de um pequeno pedaço de pano vermelho, já surrado pelo tempo, com alguns enfeites e o registro (estampa) dos Santos Reis. Vinha presa numa vareta de bambu, pela qual o bandeireiro a carregava respeitosamente. Iam de visita à casa de um "coronel", onde todo ano passavam com a folia e pousavam. Ele gostava demais e se sentia muito ofendido se sua casa não fosse visitada. Como era muito bravo e influente, ninguém ousava desagradá-lo, como manda-chuva do sertão que era. Deu-se, que o calor cruel e o cansaço da longa caminhada os fez prostrar sob uma frondosa árvore no meio de um pasto. Tinham almoçado de pouco e não teve jeito... amontoaram os instrumentos junto ao tronco e puseram a bandeira por cima para abençoar, como de costume. Deitaram na grama mesmo, se acomodando como deu. Cochilaram. Por ali pastavam umas reses e não é que, com o paradeiro dos folieiros, naquele mormaço, foram se aproximando e uma vaca mais afoita, atiçada pelo pano da bandeira balançando a ponta ao vento, meteu-lhe a boca e começou a comer a bandeira da folia. Quase no fim, ao puxá-la com os dentes, a vareta de segurar derrubou os instrumentos e foi aquela barulhada de pandeiro rolando, caixa tombando, cavaquinho estatelado na macega. Os folieiros acordaram assustados e um gritou: "a vaca  tá comendo a bandeira!" e correu para acudir, mas como só estava uma ponta de fora, ainda fez cabo de guerra com a vaca, mas ela levou a melhor e acabou engolindo tudo. Só sobrou o pauzinho de segurar, ou melhor, o bambu, com umas fitinhas desbotadas na ponta. Entreolhando-se decepcionados e preocupadíssimos, logo se puseram a discutir o que fazer, ante tão embaraçosa situação: "vamos embora para casa", diziam uns; "não, vamos ao coronel assim mesmo, que se faltar lá ele manda até capanga perseguir agente...", diziam outros. Não havendo consenso, ordenou o folião: "o jeito é ir na fazenda do coronel. Lá não pode faltar... Agente explica com jeitinho." Pois foram. Na chegada, o homem esperando, olhou espantado para o grupo, dando pela falta da bandeira, situação inimaginável para uma folia... O bandeireiro na dianteira, muito sem graça, cabeça baixa, segurando a vareta com fitas na mão. O mestre, com a viola em punho, sem saber como explicar em seus versos o acontecido, se saiu com este improviso: 

"Meu senhor dono da casa, 
não repara o que aconteceu: 
dai esmola pra vareta,
que a bandeira a vaca comeu..."


Notas e Créditos

* Fonte: O Combate, n.154, 01/03/1902, São João del-Rei. Acervo da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida.
** Informante: Sebastião Teodoro da Silva, 2004, São João del-Rei
*** Texto e fotografia (2013): Ulisses Passarelli 

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