Nesta postagem expõe-se dois curiosos
causos envolvendo vacas.
O primeiro é uma transcrição jornalística (*) de matéria publicada em São João del-Rei a 112 anos. Teria acontecido no distrito de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno. A grafia foi atualizada. Narra o castigo divino que caiu sobre um sitiante que usurpou a vaca de outro e é explicitamente o reflexo do pensamento da cultura popular sobre a justiça divina. Estórias assim se repetem como exemplo de lição, e, como tal, assume finalidade quase catequética.
O segundo causo é anedótico e se passa com uma folia de reis rural que ruma à casa de um potentado político do sertão, um "coronel" como se dizia outrora, título não militar, de cunho honorífico, aplicado a ricos comerciantes e latifundiários, em geral poderosos e violentos, impondo seu domínio pela força de armas na mão de capangas. Ouvi-o aqui mesmo, nesta São João, terra de ricas tradições, num finzinho de tarde a dez anos, do saudoso folião "Tião Domingos" (**), enquanto esperávamos o restante da companheirada chegar para sairmos com a folia à rua. Bons e saudosos tempos!
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Detalhe de uma pintura popular sobre um latão de leite de 50 litros. São Miguel do Cajuru (São João del-Rei/MG). |
1- "Deu-se há dias neste distrito um fato, que muito tem impressionado esta população. Eis o caso: um sitiante vizinho foi a casa de outro e lá, com extrema brutalidade, insultou-o muito, insultou a própria família do mesmo, contando com o gênio excessivamente pacifico do insultado. Tudo isto fez por causa de uma vaca que dizia ser sua e que afinal de contas não era. Ao retirar-se garboso, tocando a vaca que dizia ser sua, o fazendeiro insultado disse-lhe apenas estas palavras: "a vaca não é sua mas pode levá-la que Deus cobrará por mim." Em tal hora essas palavras foram ditas que os anjos disseram _ "amém". Dois dias depois disso, sem chuva alguma, céu claro e sem nuvem, estronda um corisco e cai uma faísca no meio do gado do sitiante, e dessa feita, morreram seis vacas, das melhores. O sitiante vai mudar o gado de pasto e outra rês cai num desbarrancado. Dias depois morrem mais duas vacas atoladas, quase em frente à casa do sitiante usurpador. A providência cobrando as injúrias lançadas à família do outro! E assim vai o bruto pagando, e com juros a vaca tirada. Este fato verdadeiro e real muito nos tem impressionado aqui."
2- Aí por esses ermos entre montanhas, foi a muito tempo, que uma folia de reis, daquelas simplórias, próprias das roças, estava em jornada por léguas, visitando sitiantes e fazendeiros, tendo à frente sua bandeira sagrada. A bandeira era muito humilde, feita de um pequeno pedaço de pano vermelho, já surrado pelo tempo, com alguns enfeites e o registro (estampa) dos Santos Reis. Vinha presa numa vareta de bambu, pela qual o bandeireiro a carregava respeitosamente. Iam de visita à casa de um "coronel", onde todo ano passavam com a folia e pousavam. Ele gostava demais e se sentia muito ofendido se sua casa não fosse visitada. Como era muito bravo e influente, ninguém ousava desagradá-lo, como manda-chuva do sertão que era. Deu-se, que o calor cruel e o cansaço da longa caminhada os fez prostrar sob uma frondosa árvore no meio de um pasto. Tinham almoçado de pouco e não teve jeito... amontoaram os instrumentos junto ao tronco e puseram a bandeira por cima para abençoar, como de costume. Deitaram na grama mesmo, se acomodando como deu. Cochilaram. Por ali pastavam umas reses e não é que, com o paradeiro dos folieiros, naquele mormaço, foram se aproximando e uma vaca mais afoita, atiçada pelo pano da bandeira balançando a ponta ao vento, meteu-lhe a boca e começou a comer a bandeira da folia. Quase no fim, ao puxá-la com os dentes, a vareta de segurar derrubou os instrumentos e foi aquela barulhada de pandeiro rolando, caixa tombando, cavaquinho estatelado na macega. Os folieiros acordaram assustados e um gritou: "a vaca tá comendo a bandeira!" e correu para acudir, mas como só estava uma ponta de fora, ainda fez cabo de guerra com a vaca, mas ela levou a melhor e acabou engolindo tudo. Só sobrou o pauzinho de segurar, ou melhor, o bambu, com umas fitinhas desbotadas na ponta. Entreolhando-se decepcionados e preocupadíssimos, logo se puseram a discutir o que fazer, ante tão embaraçosa situação: "vamos embora para casa", diziam uns; "não, vamos ao coronel assim mesmo, que se faltar lá ele manda até capanga perseguir agente...", diziam outros. Não havendo consenso, ordenou o folião: "o jeito é ir na fazenda do coronel. Lá não pode faltar... Agente explica com jeitinho." Pois foram. Na chegada, o homem esperando, olhou espantado para o grupo, dando pela falta da bandeira, situação inimaginável para uma folia... O bandeireiro na dianteira, muito sem graça, cabeça baixa, segurando a vareta com fitas na mão. O mestre, com a viola em punho, sem saber como explicar em seus versos o acontecido, se saiu com este improviso:
"Meu senhor dono da casa,
não repara o que aconteceu:
que a bandeira a vaca comeu..."
Notas e Créditos
* Fonte:
O Combate, n.154, 01/03/1902, São João del-Rei. Acervo da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida.
** Informante: Sebastião Teodoro da Silva, 2004, São João del-Rei
*** Texto e fotografia (2013): Ulisses Passarelli
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