O termo "macumba" é um africanismo, palavra de origem banto, do idioma quimbundo,
ma'kumba. É aplicado a pelo menos dois instrumentos musicais:
1) grande reco-reco de bambu ou taquara, que se toca em posição horizontal, apoiando-se um de seus extremos contra um anteparo (parede, pedreira, árvore) e outro na barriga;
2) um pequenino atabaque de uso solitário.
Pelo fato desses instrumentos rudes em tempos de antanho, serem usados para acompanhamento de cerimônias religiosas de procedência africana, por extensão, em uso genérico e indiscriminado se passou a chamá-las de macumba. “Foram tocar macumba”, ou seja, os instrumentos assim chamados. Macumba também é a dança ao som desses instrumentos.
O termo original perdeu seu significado bem como os instrumentos. A palavra hoje só se usa em sentido pejorativo para designar formas religiosas de terreiro. Terreiro de macumba: onde se pratica “macumba”. Sessão de macumba: ocasião de um culto de “macumba”. Macumbeiro: outrora o tocador do instrumento chamado macumba; hoje, quem faz “macumbas”, culto de terreiro, ou deles participa.
Macumba e macumbeiro, tal como feitiço e feiticeiro, mandinga e mandingueiro, se tornaram expressões de cunho pejorativo muito intenso, discriminando e abarcando qualquer religião mediúnica de matriz africana. Tanto que, muitos umbandistas, senão mesmo a maioria, não gostam de serem chamados de macumbeiros, termo que renegam e dizem só aplicável a quem pratica magia negra, tem parte com o demônio e trabalha com maldade.
A difusão do termo macumba deu-se ao que parece a partir do Rio de Janeiro, designando as cerimônias de origem banto, de nação congo e angola, onde se cultuavam originalmente os inquices em vez dos orixás. Um estudo clássico é o de João do Rio (*), do início do século XX.
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Cueca enfiada em buraco de um cupinzeiro (térmite): macumba para "brochar", isto é, gerar impotência masculina.
Trilha do Carteiro, Serra de São José, Tiradentes/MG, 01/04/2014. |
Deixando por oras de lado qualquer detalhe cerimonial ou corrente religiosa em si, interessa de imediato a dimensão extensiva das macumbas quanto à vivência da cultura popular. Na resignificação da palavra o povo distingue de imediato as macumbas das simpatias e benzeções.
As simpatias são inúmeras, para os mais diversos fins e são práticas caseiras, de cunho mais supersticioso que religioso, individuais, embora de conhecimento coletivo, praticadas pelo próprio indivíduo que a aprende por ouvir dizer de uma vizinha, colega, parente ou por ter escutado no rádio. Destinam-se de ordinário a benefício próprio sem grandes pretensões: para o dinheiro ter melhor rendimento, para a saúde, para se tornar mais atraente ao namoro, para o cabelo crescer com formosidade, para curar bronquite. O povo não enxerga nelas nada maligno ou pecaminoso.
As benzeções são práticas de cunho mais diretamente religioso e dependem da intervenção de outrem, o benzedor, indivíduo muito respeitado nos meios populares por ter força, caridade e orações capazes de curar, abrir caminhos, afastar malefícios. Benzedor e macumbeiro não são a mesma coisa na cultura popular. A benzeção é uma prática não oficial, não é do rito da religião, ou, como queiram, é do âmbito do "catolicismo popular". Igualmente o elemento popular não a considera ofensiva a Deus e um bom benzedor é indivíduo de prestígio na comunidade, procurado em verdade por gente de várias correntes religiosas.
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Bosta do capeta: fungo que serve de matéria prima para pós mágicos... 03/08/2014.
Estrada do Mestre Ventura, São João del-Rei.
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Já a macumba é mais mística na fórmula e mais secreta na prática e finalidade. Por vezes, envolve entidades espirituais ou é ofertada em locais de seu domínio, mas isto já é uma contaminação dos processos. Há a intervenção direta de um "feiticeiro" para sua concretização, ou indireta, quando ele apenas ensina como fazer. Na linguagem comum qualquer oferenda, despacho (**), ebó é considerado uma macumba. Porém estas são práticas religiosas das religiões de matriz africana e as macumbas propriamente ditas não se enquadram nesta categoria.
São ações individuais, mas, repetindo, fruto de um conhecimento coletivo, tipicamente desvinculados dos terreiros. Guardam em si uma prática cujo objetivo em geral é pessoal, voltado contra inimigos, para amarrar um parto, para causar um definhamento físico, para afastar um casal, para gerar uma discórdia, para causar impotência num sujeito que se porta como conquistador, para demover um vizinho dos limites que acaba se mudando para outro lugar. A macumba propriamente dita cambeia para o lado negativo, mais que o positivo, daí acontecer à margem da sociedade, ganhando seu opróbrio, símbolo de pecado, ofensa a Deus.
O povo ao passar perto de uma possível macumba se persigna. Dá volta. Evita. Condena. Alguns abusados mexem com uma vara, desfazendo a disposição dos componentes. Joga-se água benta,
urina, terra poeirenta, sal abençoado por um sacerdote. Uma maneira intuitiva de desmanchar o mal reinante e restabelecer o equilíbrio local, quebrado por um anônimo oculto na calada da noite que pôs a macumba. Abusados chutam a ponto de haver a expressão corriqueira
"chuta que é macumba", que se enuncia diante de situações ou coisas deploráveis. Mas as carolas condenam. Diz que chutar é pior... pode reverter contra a pessoa, que enche o corpo de doenças, feridas, dores, amputamentos. É um atraso de vida.
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Rodilhas de cipó à margem da Estrada Real: mecanismo de fechar o caminho de alguém.
Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno (São João del-Rei/MG), 06/09/2014. |
É preciso atentar para o uso indevido do termo macumba aplicado de maneira indiscriminada às atividades religiosas dos terreiros, seja qual for sua corrente, pois em geral parte de um desconhecimento e traz no seu rastro a intolerância e a discriminação àquilo que é garantido por lei.
Em torno da crença protetiva ou de (contra) ataque da supersticiosa e misteriosa macumba, desenvolveu-se um imenso complexo cultural de práticas e crenças, para fazer e desfazer, fruto de múltiplas influências étnicas, interligando o homem ao mundo invisível do sobrenatural. Disto fazem parte as chamadas "
orações fortes" ou "orações bravas", que exigem um respeito extremado no enunciado, pois tem poder para desmanchar a macumba. Os próprios terreiros trabalham com frequência no ato de desmanchar macumbas, deixando muito claro a oposição a esta prática.
Concluindo, umbandistas e candoblecistas não são macumbeiros.
O estudo do significado cultural das macumbas para a sociedade revelará certamente o aspecto mais oculto do homem dentro de sua própria alma, seus medos mais arcaicos, seus anseios mais atávicos, suas práticas mais imemoriais na relação com o mundo mágico, no oposto da corrente materialista.
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Feitiço de amarração atado a uma árvore de embaúba (Cecropia sp.). Mata do Chuveirinho, Santa Cruz de Minas/MG. 14/01/2017. |
Notas e Créditos
* As Religiões no Rio, 1904.
** Despacho:
l- Nossa Senhora do Bom Despacho: título mariano de pequena expressão devocional nesta região. De valor histórico é a Capela-oratório de Nossa Senhora da Piedade e do Bom Despacho, de 1745, no Largo do Rosário, onde começa a Rua Direita, em São João del-Rei. Não se confunde com as capela-passo (passinhos ou passos da Paixão). Foi construída diante da antiga cadeia (1740-1849), hoje Museu de Arte Sacra, para realização de missas campais para os prisioneiros. Em Santa Cruz de Minas houve uma Ermida de Nossa Senhora do Bom Despacho, numa encosta em aclive, na Serra de São José, erigida no século XVIII, junto ao antigo arraial do Córrego, terras do rico minerador Marçal Casado Rotier. Com sua morte e dos herdeiros daquelas terras a capelinha, com cemitério anexo, caiu em abandono e aos poucos foi ruindo. Correndo notícia que Marçal ocultara parte de sua fortuna enterrada nos túmulos e incrustada nas paredes, foi derrubada por gente ávida pela riqueza. Não a acharam. Tudo foi destruído. Vê-se vestígios da construção. O local ficou conhecido como “Cemitério” e toda aquela encosta ao pé da serra, “Morro do Bom Despacho”.
2- Entrega de oferenda, trabalho pedido por um espírito ou objeto indesejável a uma entidade espiritual num local determinado. O material dos despachos é muito variado, conforme a classe de guias ou orixás: velas de várias cores, bebidas, comidas, objetos, flores, tecidos, etc. O local da entrega varia: Guias de Criança (Erês): jardins ou campos gramados, sob uma árvore; Pretos e Pretas Velhos: cruzeiros; Caboclos e Caboclas: matas, beiras de rio; Marinheiros: beira-mar, beira-rio; Boiadeiros: ranchos, currais, porteiras, etc.; Baianos: sob coqueiros; Ciganos e Ciganas: estradas de terra; Exús, Pombas-Giras, Malandros, Sacis, Quiumbas: encruzilhadas, cemitérios, bêtas, linhas férreas, gameleiras, cavas, valas, tronqueiras, etc.; Almas, Eguns: cruzeiros, lugares diversos sempre ao ar livre. Muitos aceitam serras e cachoeiras. eventualmente pedem lugares diferentes. O despacho em si é um ritual religioso e não folclórico. O interesse para a folclorística é indireto, pelo respeito que esses locais de despacho impõe aos Congados (e algumas Folias), quando, eventualmente por eles passam, sendo obrigatório o pedido de licença, feito por cantos, gestos, vênias, coreografias (sobretudo a Meia-Lua). Não há veneração, no máximo uma saudação, se o Capitão for “entendido”. Um canto de moçambique bate-pau:
“Me valha, meu Deus!
Senhor São Bento!
Que essa macumba,
tem cobra dentro...”
(São João del-Rei, Rua do Ouro, Bairro Alto das Mercês, 1996,
Capitão Tadeu Nascimento de Sousa).
***Texto e fotografias: Ulisses Passarelli
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