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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sábado, 4 de outubro de 2014

Cabeça, cabeceira, cabeçalho

A cabeça é o símbolo do intelecto, do raciocínio, sede do pensamento, das vontades, elo de ligação do sexto sentido com o mundo espiritual. Dominar a cabeça é dominar o indivíduo. A cabeça é o elemento central da individualidade e do juízo, local da mente, de importantes chacras.

As tradições sobre a cabeça são inumeráveis. "Perder a cabeça" é expressão usadíssima para indicar descontrole diante de uma situação. Equivale a perder o juízo. "Cabeça de vento" e "cabeça de bagre" são indicativos de personalidade fraca, pouca preocupação, falta de responsabilidade, ideias pouco consistentes. Mas na gíria, o sujeito de boa prosa, assuntos relevantes, raciocínio bem coordenado é um "cara cabeça", ou tem "cabeça boa", ou simplesmente é "cabeça". "Passar a mão na cabeça" é encobrir faltas, ser conivente com os erros de fulano de tal. "Fazer a cabeça" é uma expressão comum na umbanda, na quimbanda, no candomblé com o sentido de se deixar batizar no santo, no orixá regente da cabeça do médium. "Cabeça feita" tem este sentido religioso de preparação espiritual completa e por extensão um significado secular de inteligência, experiência, equilíbrio: "fulano é cabeça feita", quer dizer, tem suas próprias opiniões e não se deixa influenciar.

A Bíblia relata a tocante morte de São João Batista por decapitação induzida pela maliciosa filha de Herodíades (que se chamava Salomé, segundo fontes apócrifas), sendo sua cabeça ofertada num prato (Mt. 14, 1-11; Mc.6, 14-29). Noutro episódio mais remoto, Judite corta a cabeça do perverso Holofernes (Jdt.13, 9-11). Na famosa Procissão do Enterro, aqui mesmo em São João del-Rei (e em outras cidades) vemos entre os figurados, os personagens bíblicos com roupas de época carregando horrendas cabeças de papel-machê para relembrar Salomé e Judite. Sua presença desde sempre desperta a curiosidade das crianças.

Uma das invocações marianas é Nossa Senhora da Cabeça, para quem se reza à procura de boa mente, ideias claras, reflexão positiva ante questões complicadas, contra loucura e para combate à cefaleia (dor de cabeça).

Evita-se deixar outras pessoas tocarem nossa cabeça com as mãos pois transmite influências negativas para si, ou pode-se ficar dominado por quem passou a mão. Criança ao contrário não há problema em razão da proteção especial que usufruem em virtude de sua inocência.

Uma tradição imemorial e cosmopolita é a das figuras de proa, muitas vezes representando cabeças entalhadas na ponta dos barcos, daí serem também conhecidas por cabeças de proa. Por vezes de fundo totêmico, outras vezes em função de amuleto, ou como mero adorno, em várias culturas se apresentam configurando dragões, touros, carrancas, leões, seres mitológicos e antropomórficos.

No imenso interior, longe das grandes águas, o costume é entalhar cabeças na ponta de bastões e em outros objetos, evocando por vezes elementos do mundo espiritual. Para Saul Martins essas cabeças esculpidas são sinais de totemismo “forma primitiva de religião, espalhada entre quase todos os povos autóctones do mundo”. Enquadra nessa categoria as carrancas do vale do Rio São Francisco, arrematando o bico das embarcações (cabeça de proa). Cita também as cabeças esculpidas em “coronha de espingarda, no pau da bengala, na tampa do polvarinho”. Exemplifico ainda: em bastões de capitães de congado, cajados de negros-velhos da umbanda, cetros de reis das festas do Rosário, cabos de relhos, em cabos de canivetes, facões e facas (*) 


Bastão de moçambiqueiro, cuja iconografia popular evoca as almas de ex-escravos,
os negros velhos das religiões de matriz africana. Passa Tempo/MG, 08/06/2014. 





Cabeça aparece também com o sentido de ponta, extremo. Cabeça do prego, cabeça da tachinha, cabeça do cravo: local no qual se bate para fincar. A glande é a "cabeça" do pênis. 

Cabeçalho do carro de bois é a extremidade afilada na qual se atrelam a junta de bois de canga (sob jugo), numa alça de ferro.

Cabeceira é o local da cama onde se deita a cabeça, oposto aos "pés" da cama. A cabeceira é local do repouso e sobre ela não se deposita objeto algum, nem tecidos de cor escura. Isto poderia afetar a qualidade do sono. É a parte da cama onde se apoia a cabeça para deitar. Simbolicamente é lugar onde o anjo-da-guarda nos zela, onde está a força de nosso juízo. Portanto é onde se deve por imagens de santos e objetos bentos para proteger a pessoa, terços pendurados, medalhinhas de santos, cordões bentos; livros escolares para as crianças apanharem gosto pelo estudo. Assim não se deve deitar ao revés, ou seja com os pés na cabeceira pois prejudica estas proteções. Dormir no lugar do outro ou com seu travesseiro absorve os segredos de sua cabeça e assim se descobre seus mistérios (São João del-Rei, 2001). 

Cabeceira é também o olho d'água, mina, nascente de um curso d’água. "Chuva de cabeceira" é a chuva que cai no rumo das nascentes, abastecendo os mananciais. Num rebanho bovino, as vacas leiteiras da melhor qualidade do plantel, produzindo a maior quantidade de leite são as "vacas de cabeceira" ou "vacas de ponta-de-mojo". 

Em São João del-Rei, como também em Resende Costa, houve o famoso Bloco dos Cabeções, agremiação carnavalesca de outrora, formada por estafermos cabeçudos, saudosos bonecões macrocefálicos gingando no ritmo do momo. 

Os congadeiros sabem muito bem que a melhor forma de saudar ao mastro é bater-lhe a cabeça de leve, tocando a testa, uma vez pelo menos, ou três, número ideal, sempre se pedindo licença antes, pois o mastro tem um dono. Em geral os capitães adotam para si e seus soldados algum tipo de cobertura para a cabeça, tendo cada guarda de congado seu estilo que ultrapassa o sentido de uniforme: chapéu, boina, quépi, casquete, turbante, lenço, boné, capacete, cocar. Acham temerosa a cabeça exposta no momento do congado, pois pode dar entrada a maus pensamentos. "Cabeça pelada", dizem, faz mal. 


As bandeiras sagradas das folias servem também ao ritual de abençoar a cabeça. Os devotos das casas visitadas beijam a bandeira da companhia de foliões e a passam sobre a cabeça num giro, principalmente sobre a cabeça das crianças, que é para apanhar juízo. Os congados fazem semelhante mas entre as folias é bastante típico. 


Desde a antiguidade clássica com os monstros gregos mitológicos de múltiplas cabeças (Cérbero, o infernal cachorro guardião e a Hidra de Lerna, morta por Hércules), que as tradições sobre a cabeça são numerosas e de imensa amplitude geográfica.


Referências Bibliográficas


Bíblia Sagrada. São Paulo: Ave Maria, 1965.
MARTINS, Saul. Os Barranqueiros. Belo Horizonte: UFMG / Centro de Estudos Mineiros, 1969. 



* Texto: Ulisses Passarelli
** Foto: Iago C.S. Passarelli
*** Outro exemplo é a casaca (reco-reco de madeira, usado pelas bandas-de-congos no estado do Espírito Santo), que termina por uma cabeça de boneco entalhado no corpo do instrumento.
**** Uma extensão dos temas desta postagem poderá ser avaliada no texto sobre o folclore do cabelo.

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