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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Rio das Mortes festeja o Rosário com toda tradição

Conforme foi anunciado por este blog, o distrito são-joanense de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, a duas léguas da cidade de São João del-Rei, experimentou sob o sol inclemente deste último fim de semana, mais uma vez, como o faz desde tempos primevos, uma emocionante festa congadeira em honra à Virgem Pura do Rosário.

Na Terra de Nhá Chica o povo devoto foi acordado em plena madrugada pela alvorada do congo, o grupo todo à rua, desde a meia-noite até as quatro da matina, sem uniforme, girando em marcha pelas vias, fazendo visitas e não obstante o horário impróprio, o povo que os entende, aceita, ama e apóia, prestigia e oferta comes e bebes de bom grado.

Então os dançantes se recolhem para um breve descanso e se juntam de novo para o almoço, no povoado vizinho do Largo da Cruz, sede do tradicional congo. Já agora estão sob o caprichoso fardamento, alvíssimo, de saiotes rosas, plissados, lenços ao pescoço, capacetes floridos à cabeça (de flores artesanais de papel crepom). O respeitado Capitão Pedro Noberto da Silva honrando a tradição familiar dos Cristóvão, puxa a guarda de volta à vila.

1 - O notável Capitão Pedro Noberto da Silva.

Beira o meio-dia. Cá da porta da sacristia um rojão rebenta no ar chamando a congada. Lá do Largo da Cruz foguetes respondem. É o sinal, a chamada. E de tanto em tanto repetem o sinal, cada vez mais perto, revelando a aproximação. Momento importante é a travessia do Rio das Mortes Pequeno: em cima da ponte o congado canta:

Fui passá na ponte
a ponte tremeu ...
debaixo da ponte,
tamborim gemeu!

É a entrada da vila. Doravante o povo os verá. E como vê! Em vasto acompanhamento rua afora, rumam para a igreja do padroeiro, Santo Antônio, onde assistem missa, descalços, em memória dos escravos. Antes de entrar no templo, uma visita ao mastro é de praxe, bem como ao portão do cemitério.

2- Congadeiros visitam cemitério. 

Ao término da concorrida celebração, cantam algumas peças junto ao altar e depois de saída, vem à sacristia, onde põem os calçados. De partida, um foguete anuncia o canto:

Vamos passear na rua!
Vamos passear na rua!

Daqui e dali umas visitas e volteios. No caminho pela praça lotada, entre parquinhos de diversões, ambulantes e barraquinhas de comes-e-bebes, os mouros vestidos de vermelho correm atrás dos incautos e da criançada que não cessa de provocá-los. Metem a espada de madeira por baixo das pernas de suas vítimas em gesto de quem as levanta do chão, chegando em surdina por detrás ou correndo desenfreados em perseguição. Ninguém xinga, machuca ou reclama. A tradição é velha, tem raiz. Todo mundo compartilha e se envolve com alegria.

3- Diferentes gerações se irmanam no congo: esperança de futuro. 

Chegando à casa onde o Reinado está recolhido, a coisa muda de figura. O congo puxa reinado rua afora:

Marinheiro do mar,
que brinca bem,
puxa fieira,
reinado en'vém!

Os mouros agora voltam sua atenção para os reis e rainhas, que tentam descoroar com a espada, mas são impedidos pelos cercadores, munidos de paus, que com eles esgrimam numa rezinga admirável. Basta o mouro tocar a ponta da espada na coroa que já se considera vencedor. Reminiscências ...

4- Rezinga de Mouros.  

Na porta da igreja o Reinado é entregue. Em duas carreiras de bancos sentam-se para a chamada. A grande seca de 2014 judia, escalda, arde em brasa mas ninguém arreda. A longa listagem segue enunciando nomes individualmente. Citado um nome real, o coroado se ergue do banco, ajoelha diante da igreja, onde, numa mesa posta adrede, forrada de toalha branca de renda e bordado, um balde de água benta e uma cestinha estão depositados. É aspergido e na sequência descoroado, a capa retirada. Recebe um cartucho de amêndoas, doa um envelope contendo espórtula à festa. Uma ajudante conta o dinheiro na hora, deposita-o no cestinho e anuncia em alta voz, batendo uma sineta: "viva o rei (o rainha) fulano... que doou cem reais!" Imediatamente a centenária Banda de Música Lira do Oriente, sentados seus músicos em bancos ao lado, sob a sombra de uma árvore, irrompe uma pequena peça chamada "Posse de Reis". O próximo coroado é chamado e assim por diante. Enquanto a chamada se processa o congado se dissipa para breve descanso e retorna na hora da Ave Maria para a procissão.

5- Caixeiro reverencia o Reinado.
O término da festa reserva momentos emocionantes com espetáculo de fogos e apresentações de virtuose dos caixeiros do congado. Reis e Rainhas são entregues de volta. 

A festividade de Nossa Senhora do Rosário e o grupo de congo deste distrito de São João del-Rei encontram-se muito bem preservados. O devoto se sintoniza ao rosário através da percussão congadeira. O ritmo ancestral ascende como uma prece rumo ao eterno. 

Notas e Créditos

* Texto: Ulisses Passarelli
** Fotos: 1 e 3 - Iago C.S. Passarelli; 2 e 5 - Ulisses Passarelli; 4 - Cida Salles
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