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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




terça-feira, 1 de outubro de 2013

Mês do Rosário - parte 1

O tempo das festas das crianças continua... mas outubro é mesmo conhecido na tradição católica como o período dedicado ao santo rosário. Por toda parte nas comunidades religiosas as festas marianas sob esta invocação acontecem fervorosamente nesta época, muitas vezes enriquecidas pelos congados.

Nossa Senhora do Rosário, São João del-Rei/MG. 2011. 

A origem desta devoção remonta aos monastérios medievais da Europa, quando havia o costume de marcar o número de orações por pedrinhas e depois flores, depositadas na imagem de Maria, em especial rosas, com estas encordoadas para compor uma guirlanda, daí o termo rosário, com sentido plural, coletivo: conjunto, coleção de rosas.

Está claro que a dificuldade de semelhante composição impôs logo mudanças mas o nome ficou. Foram substituídas as rosas por sementes duradouras e contas, encadeadas em sequências padronizadas, arrematadas pela cruz do Senhor. O rosário era então o objeto e também o tipo de oração nele executado, além do nome de uma invocação da Virgem.

O rosário consiste num conjunto de 150 contas encadeadas e equidistantes, correspondentes a igual número de ave-marias que se deve rezar. A cada 10 unidades o espaçamento aumenta para acondicionar uma conta extra, do mesmo tamanho ou maior, mas sempre mais afastada, correspondente ao pai-nosso, totalizando 15. Cada conjunto de 1 pai-nosso e 10 ave-marias é chamado de mistério. Portanto o rosário tem 15 mistérios. Fechada a sequência, impõe-se uma medalha ou elo de ligação correspondente a uma salve-rainha. Daí pende uma pequena parte de extremidade livre, terminada em cruz, contendo 1 conta isolada, valendo o credo e mais 3 próximas, correspondendo a mais três ave-marias extras, geralmente em louvor à Santíssima Trindade. A reza deve incluir reflexões bíblicas dos mistérios do nascimento, vida e paixão de Cristo, contemplando seus frutos. Os mistérios são classificados em gozosos, gloriosos, dolorosos e luminosos, estes, recentemente incluídos pelo Papa João Paulo II.

Assim nos chegou o rosário, após muitas gerações, pelo trabalho missionário das irmandades religiosas, sobretudo os dominicanos que mais se distinguiram na difusão dos valores do rosário, tendo como figuras emblemáticas São Domingos de Gusmão e Santa Catarina de Siena (ou Sena).  Ele, pregador do Senhor contra heresias, tendo como símbolo um cão mordendo uma tocha acesa; ela, tendo recebido um novo coração, ardente de amor por Jesus. 


Santa Catarina de Siena e São Domingos de Gusmão, 
na Procissão do Rosário de São João del-Rei, 1999. 

Uma das iconografias mais conhecidas desta invocação mostra a Virgem Maria com o Menino Jesus ao colo, ambos entregando o rosário (objeto de oração), a São Domingos e a Santa Catarina. Esta representação ficou conhecida como “Nossa Senhora do Rosário de Pompéia” e ainda é muito difundida sob a forma de quadros nas casas de devotos, emoldurada nos mastros festivos, esvoaçante nas bandeiras dos congados.Seria originária de uma aparição de Nossa Senhora ao pecador Bártolo Longo, nas ruínas da cidade de Pompéia, destruída pelo Vulcão Vesúvio na Itália. 

Nossa Senhora do Rosário (de Pompéia) numa bandeira de congado de São João del-Rei. 
Catupé do capitão Raimundo Camilo, 1999. Bairro São Dimas.

Em São João del-Rei/MG ainda hoje a procissão de Nossa Senhora do Rosário quando vem às ruas do Centro Histórico traz os andores da Virgem, de São Domingos e de Santa Catarina. Na antiga Igreja do Rosário desta cidade houve desde a primeira metade do século XX um desligamento das tradições congadeiras, que sobreviveram porém nos bairros periféricos e distritos. Mas as atividades religiosas no grande templo continuam com vigor e o mês de outubro realmente se processa como Mês do Rosário, com missas diárias e rezas do terço (terça parte do rosário), diante de Jesus Sacramentado, seguido de bênção do Santíssimo Sacramento. É mister ressaltar que a igreja em questão foi edificada em 1719, sendo a mais antiga das ainda existentes em São João del-Rei e a sua confraria remonta a 1708, ainda ativa, sendo possivelmente a mais antiga de Minas Gerais. Dentro das festividades de outubro também se dedica um dia para Nossa Senhora dos Remédios, que possui uma antiga imagem naquela igreja. Para este ano o dia maior do rosário está programado para 27 de outubro, com missa solene às 8 horas e 30 minutos, seguida de terço; 18 horas, missa na intenção dos mesários, ex-mesários e benfeitores da Venerável Confraria e profissão de novos irmãos. Segue-se a procissão e à sua chegada o Te-Deum Laudamus e Bênção do Santíssimo Sacramento. 

Quanto à questão da data de outubro, prende-se a um fato histórico. No auge das guerras entre católicos e turcos aconteceu a batalha naval de Lepanto, em 1571, momento decisivo para o destino da contenda. Os cristãos estavam em desvantagem numérica e a derrota se desenhava clara. Puseram-se a rezar insistentemente o rosário e alcançaram inesperadamente a vitória. O Papa Pio V estabeleceu a memória festiva daquela luta como consagração a Nossa Senhora das Vitórias, mas pouco tempo depois, já o Papa Gregório XIII reconheceu que esta vitória foi devida ao rosário e declarou o dia da Batalha de Lepanto, 07 de outubro, como o dia de Nossa Senhora do Rosário. Posteriormente, no século XIX, a extensão dos festejos abraçou o mês todo que ficou conhecido como Mês do Rosário, por instituição do Papa Leão XIII, em 1883.

Iniciados os trabalhos missionários de religiosos católicos ainda na África, nos primórdios da escravidão negra, já a devoção ao rosário foi plantada pelos cristãos. Na ânsia aculturativa sob o pretexto da catequese, buscava-se similitudes que pudessem aproximar ou justificar uma nova expressão religiosa. O costume africano do uso de colares sagrados foi certamente um forte elo de ligação à devoção ao rosário em detrimento de outras invocações marianas.

No imenso setentrião arenoso, sob influência muçulmana, estavam os aguerridos “malês”, designação genérica dada nos tempos do tráfico negreiro aos africanos islamizados do norte africano, de diversas etnias. Os malês usavam o tecebá, muito parecido ao rosário cristão, composto por noventa e nove contas terminadas por uma esfera grande. No centro do continente pátrio da espécie humana, estavam os chamados “sudaneses” ou “iorubas”, detentores de fortíssimas expressões religiosas e ao sul os “bantos”, uns e outros com suas guias, colares de sementes, invocativos de suas entidades. A conversão pretendida usou como ponte o paralelismo entre os colares sagrados dos cristãos e os nativos da África, digamos assim, querendo absorver as guias e tecebás em detrimento do rosário.

Algumas controvérsias não plenamente esclarecidas apontam para a devoção ao rosário plantada apenas entre os bantos. É fato que devemos a eles as tradições dos congados em toda sua pujança. 

Embora isto tenha começado no próprio seio africano e se intensificado no Novo Mundo, as coisas não saíram bem como planejadas. A força opressiva impôs novas expressões religiosas ao escravo mas este embora as tenha absorvido e praticado não abandonou sua raiz e manteve velado sob o sincretismo muitas de suas devoções pátrias.

Constituindo um complexo cultural notável, a devoção ao rosário se aliou e estendeu a outros santos que nos tempos do cativeiro figuraram como protetores dos escravos: Santa Efigênia, São Benedito, Santo Elesbão e outras invocações de Maria correlatas – Nossa Senhora do Amparo, Nossa Senhora das Mercês, Nossa Senhora Aparecida.

Os elementos litúrgicos envolvidos fogem ao interesse primário das diretrizes deste blog, não obstante sua importância fundamental. Os aspectos culturais e da religiosidade popular em torno do rosário são do maior interesse para os estudos antropológicos, sociológicos e folclorísticos, passando necessariamente pela tradição dos congados e de seus reinados com reis, rainhas e sua corte; dos festejos animados ao largo, congregando a comunidade junto aos mastros, nas naves dos templos, em procissão pelas ruas do interior ou em plena capital. Dotados de uma riqueza visual, musical, social, religiosa e mitológica imensuráveis, por muitas regiões, brasileiros de diversas procedências étnicas e mesclas culturais se irmanam em torno do santo rosário como elemento de união, simbólico da fé cristã, imbuídos do mesmo objetivo missionário de valorizar a negritude e a luta pela igualdade.

O rosário é neste aspecto bem mais que um objeto sagrado de preces ou um venerando título de Nossa Senhora: sem deixar de sê-lo, transcende as definições típicas para se tornar uma bandeira de lutas, um caminho evangelizador e um elemento identitário no qual, muitos se encontram desde a mais tenra infância e nele seguem fielmente até o fim da vida. Muitas comunidades congadeiras edificam suas famílias sob a égide do rosário e neste sentido os versos abaixo, entoados pelo notável capitão de moçambique Luís Maurício, da cidade Passa Tempo/MG (ano 2000), são bem ilustrativos, irradiando poesia e saber:

Sinhô rei, eu vim trazer,
Sá Rainha eu vim trazê,
Um recado que Angola mandô,
Um recado lá de Angola,
Eu não sei se vou resistir
Eu não sei se vou resistir,
Dar esse recado ao sinhô...
Dar esse recado à senhora...


Na Angola, tá minha raiz,
Eu era pequenininho
Foi d’Angola que veio o meu povo,
Ai, o rosário me chamou,   
Somos filhos de um só passarinho
Não sabia onde era a Igreja
Somos gema do mesmo ovo...
Foi Mamãe, foi que me levou!


No rosário, ai, eu nasci,
No rosário, eu vou morrer,
No rosário, eu plantei,
No rosário, eu vou colher...


Referências Bibliográficas

GAIO SOBRINHO, Antônio. Santos negros estrangeiros. São João del-Rei: [s.n.], 1997. 153p.
MEGALE, Nilza Botelho. 112 Invocações da Virgem Maria no Brasil: história, folclore e iconografia.  2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1986. 376p. 
POEL, Francisco van der, Frei. Cronologia da Devoção de N.Sra. do Rosário entre os bantos na África, em Portugal e no Brasil, nos séculos XV-XVII. Revista da Comissão Mineira de Folclore, Belo Horizonte, n.20, ag.1999. p.60-75.
Piedosas e Solenes Tradições de Nossa Terra. v.2. São João del-Rei: [s.n. ; s.d.].

Notas e Créditos

* Texto e fotografias: Ulisses Passarelli

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