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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




domingo, 29 de setembro de 2013

Palhaços de Folias de Reis: ambiguidade e enigma - parte 2

As folias de Reis e similares obedecem a uma série de rituais protocolares na chegada a uma casa. A grosso modo e independente do santo estampado na bandeira, no geral, chegam em silêncio junto à porta da casa visitada. A um sinal do mestre, por vezes de seu apito, irrompem os instrumentos e logo entra a cantoria que se chama tradicionalmente de “abrição de porta”, um pedido em versos no qual é solicitada a abertura da casa ao proprietário, pois um santo veio visitar.

O passo seguinte caso o pedido seja atendido é  o de recebimento da bandeira e elogio aos donos da casa. Narra-se então algo sobre o santo festejado e em seu nome se pede uma oferta. A seguir o óbolo é motivo de agradecimento cantado. A bandeira é solicitada também por via cantada, sequenciada por pedidos de proteção ao lar e despedidas.

É isto, em suma. Mas, eventualmente, o ritual ou a sequência de passos, se incrementa ou abrevia, consoante a receptividade. Se a folia tiver um palhaço os procedimentos se complexam.

Isto ocorre porque o palhaço se posta em vanguarda e como intermediário irreverente entre visitados e visitantes, fazendo uma interlocução livre, em verso ou prosa. Se for numa fazenda compete-lhe adiantar-se até a sede enquanto a folia aguarda a resposta de fora. Vai então cuidando de espantar cachorro bravo, levantar vaca deitada no caminho, tirar um galho caído. Deixa o caminho desimpedido à folia.

Folia de Reis de Ibertioga/MG, durante a Festa do Divino em São João del-Rei (Bairro Matosinhos). 
Foto: José Cláudio Henriques, 2002, gentilmente cedida para esta postagem. 

Se for numa casa, logo corre a gritar aos moradores[1]:

“Venha abrir a sua porta
E acender a sua luz,
Quem veio lhe visitar
Os mensageiros de Jesus!” 

A posição do palhaço é de muita liberdade e as concepções sobre seu papel ou a forma de se comportar variam de um grupo para outro. Em certas folias o palhaço fica de fora até o mestre terminar toda a cantoria e só então este pergunta ao dono da casa se deseja ver alguma brincadeira do palhaço e se consente sua presença dentro da casa. Caso afirmativo é que o chama para dentro. Algumas áreas rurais das Vertentes usavam desse sistema. Enquanto esperava não era raro o palhaço correr pela porta dos fundos, entrar na cozinha e roubar coisas de pouco valor, como uma réstia de cebola ou alho, algumas bananas, abóbora ou ovo. Quando chegava sua hora de entrar em cena, mostrava o produto do roubo e com gaiatices ia pedindo ao dono da casa: que seus filhos estão com fome; que tem trinta e sete crianças só com a Catirina [2]; que ela é uma patroa brava, etc. O palhaço é um grande pedinchão.

Numa dessas estripulias, narrou-me um saudoso folião do Elvas[3], que as folias daquela área pararam de empregar o palhaço a muitos anos, porque aconteceu um fato lamentável certa vez. Uma folia visitando uma casa daquelas comunidades em derredor, trouxe consigo um palhaço meio abusado nas brincadeiras. O grupo chegou num sítio no escuro da noite. O dono da casa veio com lamparina à mão abrir a porta enquanto a esposa, com gravidez avançada correu à cozinha para adiantar um cafezinho aos nobres visitantes. O palhaço deu volta pelos fundos e entrou sorrateiro pela porta de trás. A mulher que não o tinha visto ouviu o barulho de seus passos e se virou de repente. Ele deu um grito e pulou na frente dela: “ô... patroooa!!!”. Ela deu um grito de pavor e com a crise de susto entrou em trabalho de parto. Desnecessário descrever a complicação de semelhante circunstância.

Noutros lugares, porém, mormente na cidade, o palhaço é o primeiro a entrar na casa e em alta voz chega pedindo licença e avisando ao mestre: “olha só o que eu encontrei!”, apontando para um quadro de santo na parede e então o mestre é obrigado a cantar um louvor. Se ver um presépio armado tem por obrigação absoluta e inquestionável se ajoelhar perante o mesmo e assim retira respeitosamente a máscara. Se souber versificar, declama a sua loa, que pode ser simples ou longa, mas via de regra deve conter a base da profecia messiânica até a natividade e visita dos magos e pastores. Após isto pode se levantar e vestir a máscara. Então o mestre canta sua embaixada laudatória e durante esta o palhaço não pode fazer interrupções ou gracejos, só dançar de forma comedida e emitir expressões que reforçam o sentido da cantoria, como: “olha que beleza!” ou “que mistério tão profundo!”.

Mas se não sabe este esquema então é obrigado a uma penitência de permanecer de joelho enquanto durar a cantoria para o presépio.

Uma brincadeira de praxe efetivada entre palhaço e anfitrião é o da oferta inusitada e provocativa. O dono da casa presenteia o palhaço com algo inesperado, de pouco valor, como um prego, um biscoito, uma banana, uma xícara... e pede ao palhaço que faça um verso para agradecer, no qual deve conter uma referência explícita àquela oferta.

Compete ao palhaço observar detalhes que poderiam passar despercebidos ao bandeireiro no trato dispensado à bandeira pelo anfitrião. É de costume o homem receber a bandeira com um beijo e passá-la ao ósculo dos filhos e depois a entrega à esposa, que a leva para o quarto do casal. Quando há visibilidade do cômodo o palhaço observa discretamente se vai amarrar algo na bandeira, tal como dinheiro, uma nova flor (natural ou artificial), uma fita de cetim, jogar perfume ou por um ramo de erva aromática (alecrim, manjericão, patchouli, etc.). Então deve ter em mente o aspecto da bandeira, cada flor que já existe para anunciar ao mestre durante o interlúdio que... [4]

“Enfeitou nossa bandeira,
Com uma rosa do jardim,
Santos Reis que abençoe
para sempre, amém sem fim...”

Então o mestre cantará seu agradecimento. Se é um pouco de perfume derramado sobre o pano da bandeira então corre ao mestre dizendo que do céu caiu água de cheiro, e o mestre saberá manifestar seu agradecimento em versos.


Um palhaço com gesto airoso apresenta a bandeira de uma folia de São Sebastião, no distrito de São Sebastião da Vitória, São João del-Rei/MG. Autor da foto e data não identificados. Gentilmente cedida por Roberto Batista Reis. 

Para o folião é vergonhoso sair da casa sem perceber que algo diferente foi posto na bandeira. Indica despreparo e falta de zelo com a guia sagrada.

Sabendo desta tradição tem morador que gosta de testar a esperteza do folião e faz provas silenciosas. Se o folião não passar por elas dá o direito ao dono da casa reter a bandeira por tempo indeterminado, que se diz “prender” a bandeira, e, até o folião responder a contento, não pode ir embora.

Uma das formas mais típicas é por dinheiro na bandeira, prendendo-o por um alfinete. Sobre este ato em especial divergem os foliões sobre o procedimento. Há quem o faça por promessa tendo então o caráter de ex-voto e não deve ser retirado passando a incorporar a bandeira. Neste caso o mestre deve ser avisado[5]. Isto acontece em várias regiões. 


Cédula de R$1,00 afixada permanentemente numa bandeira de folia de Reis, junto com flores, fitas e fotografias 3 x 4 (ex-votos). Ituverava / SP, durante Encontro de Folias em Ribeirão Preto. Foto: Ulisses Passarelli, 2011. 

Alguns mestres consideram que o dinheiro posto na bandeira vira enfeite da mesma e não deve ser retirado, independente de promessa[6]. Já outros consideram uma profunda falta de respeito e que desencadeia um ritual [7]. Neste caso o palhaço observador avisa ao mestre no ato da entrega:

“A bandeira veio de dentro ( ou do quarto)[8]
Com um enfeite diferente;
O dinheiro que está nela
Não pode seguir em frente...”

Ou:

“Santos Reis é milagroso,[9]
Ele anda o mundo inteiro,
Onde é que já se viu
Misturar santo com dinheiro?”

O mestre entra então com uma cantoria vigorosa, quase ofensiva, onde fala sobre o desrespeito com o santo e pede ao dono da casa que se arrependa de seu pecado, se ajoelhe diante da bandeira, desamarre o dinheiro, ponha no embornal (que é o lugar certo). Isto retarda um pouco o ritual e em verdade por vezes o mestre propositalmente alonga a versalhada para aumentar o tempo que o dono da casa deverá permanecer ajoelhado, visando um castigo penitencial ao anfitrião, como vi diversas vezes em São João del-Rei. 

Resta dizer que nos casos de teste ao folião é comum o dinheiro ser posto bem escondido, dobrado por trás de uma fita, por exemplo, ou sob as flores, o que obriga o palhaço ou na sua falta ao bandeireiro, ter um jogo sagaz de visão. Se a bandeira acaso não for presa e o dono liberar sem que os foliões percebam, acreditam que dali para frente a folia desanda: perde afinação, acontecem discussões entre os participantes, folião adoece, palhaço passa mal, arrebenta couro da caixa ou corda do violão. Em suma: acontece um desequilíbrio místico.

Está claro, que no ato de uma visita folieira, quanto mais o dono da casa conhece os rituais de folia, mais complexos eles serão pois as exigências e testes do “patrão” (dono da casa) não ficam sem resposta. Em verdade existem vários outros rituais de folia que oportunamente este blog estará abordando em outras postagens.

* Texto: Ulisses Passarelli



[1] - Folia “Embaixada Santa”, São João del-Rei, Bairro Araçá, 2011.
[2] - Tradicionalmente considerada a “mulher do palhaço”. Na verdade a catirina era um homem travestido de mulher e mascarado como o palhaço, fazendo com ele uma série de brincadeiras a dois, peripécias cômicas e tradicionais nas roças.
[3] - Sr. Aquino Orff, por volta de 2002. Residia no povoado do Elvas, do lado tiradentino.
[4] - Folia do Mestre Luís Santana, São João del-Rei, segundo o mesmo, em 1993.
[5] - Mestre Luís Cândido Gonçalves, povoado do Fé, São João del-Rei, 1993.
[6] - Mestre Luís Santana, São João del-Rei, 1996.
[7] - Mestre Luís Carlos Rosa, folia Embaixada Santa, São João del-Rei, 2010.
[8] - Informado pelo saudoso folieiro “Chico Gago”, morador das Águas Gerais, São João del-Rei, 1998.
[9] - Informado pelo Mestre Jorge Cassiano Borges, de São João del-Rei, morador do Tijuco, em 2009.

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