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Bem vindo!Esta página foi criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas, tampouco acadêmicas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Cruz Esquecida

Uma pequena cruz chantada no barranco da via férrea na curva "reversa" da Ferrovia Oeste de Minas, entre a estação de São João del-Rei e a de Chagas Dória, no Bairro Matosinhos, exatamente na junção das ruas Carlos Montuaneli com Bernardo Guimarães, imediações da Praça Pedro Paulo, marca o local de um acidente ferroviário acontecido há décadas.

Segundo a história oral, ali morreu uma pessoa atropelada pelo trem. Data, não se sabe; o nome perdeu-se no passado. A circunstância diluiu-se com os anos, mas a cruz ficou. Originalmente era uma cruz de madeira, mas apodrecida pela ação do tempo foi substituída por outra de ferro. Os ramos da corriola (Ipomoea), como planta trepadeira, sobem na peça religiosa e evocam a poesia de Castro Alves, "A Cruz da Estrada", que segue transcrita: 

Caminheiro que passas pela estrada,
seguindo pelo rumo do sertão,
quando vires a cruz abandonada
deixe-a dormir em paz na solidão!

Que vale o ramo do alecrim cheiroso
que lhe atiras nos braços ao passar?
Vai espantar o bando buliçoso
das borboletas que lá vão pousar. 

É de um escravo humilde sepultura.
Foi-lhe a vida o velar de insônia atroz.
Deixa-o dormir no leito de verdura, 
que o Senhor entre as selvas lhe compôs. 

Não precisa de ti. O gaturamo
geme por ele à tarde no sertão,
e a juriti, do taquaral no ramo, 
povoa, soluçando, a solidão. 

Dentre os braços da cruz, a parasita, 
num abraço de flores, se prendeu;
chora orvalhos a grama que palpita; 
acende, o vaga-lume,  o facho seu. 

Quando à noite o silêncio habita as matas, 
a sepultura fala a sós com Deus...
Prende-se a voz na boca das cascatas, 
e as asas de ouro aos astros lá do céu. 

Caminheiro! Do escravo desgraçado
o sono agora mesmo começou!
Não lhe toques o leito de noivado,
há pouco a liberdade o desposou. 

Esta, assim como outras cruzes de beira de caminho (ou cruz de estrada), marcam via de regra locais de tragédias: pessoas encontradas mortas por causas biológicas ou de assassinato, acidentes ou fatalidades impostas pela natureza. Removido o cadáver para um cemitério, o local se torna sacralizado por uma cruz ali fincada, como se fosse uma testemunha perene do fato, embora que silenciosa. Com muita frequência essas cruzes se tornam locais de culto popular, onde vão rezar, deixam imagens quebradas, lançam moedas ao passar, enfeitam de flores, acendem velas e depositam pedrinhas para marcar preces emanadas em sufrágio daquela alma. 

Passados muitos e muitos anos, por vezes a história se perde, mas a cruz continua; ou a narrativa real se mescla ao misticismo e surge a lenda. Chega um tempo que alguém relata ter alcançado uma benesse rezando ali. A notícia esparrama e mais devotos vem. A cruz ganha limpeza, pintura e às vezes até cobertura; sua popularidade aumenta e mais gente ganha graças. Surge um cercado, adro, nicho, como aconteceu com a Cruz da Cristina, no distrito são-joanense de São Gonçalo do Amarante. Não tarda transmutar-se em uma capelinha, como aconteceu com a Cruz da Moça, em Santa Rita do Ibitipoca. Mas se o milagre não vem, se a sociedade local muda, se outras religiões se expandem com suas próprias crenças, os velhos devotos falecem, os novos aos poucos vão se esquecendo daquela cruz da qual ficaram se referências identitárias. Cada dia menos gente vem ali rezar, posto que desprovida de pertencimento a ela. O mato toma conta; a corrosão chega. Um dia ela cai por terra e ninguém se habilita a erguer uma nova. Desaparece no plano físico, como aconteceu com a Cruz do Dunga, em santa Cruz de Minas. 

A cultura popular tem sua própria dinâmica transformadora, que pelas vias da aceitação coletiva e da funcionalidade, impõem o ocaso ou a sequência. 

Cruz à beira da ferrovia em Matosinhos

 Créditos

Texto e fotografia: Ulisses Passarelli, 1998. 

                                                                               Notas

Revisão e acréscimos: 16/04/2025. 

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