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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Tradições acerca dos ciganos

Não obstante a característica vida em condição de semi-nomadismo e da vivência um tanto fechada ao grupo, ficaram algumas heranças culturais dos ciganos em nosso meio popular. Habitualmente não se usa apontar esta ou aquela herança cultural com sendo de influência cigana, como acontece com outras etnias. Suas características identitárias é que marcaram as impressões sociais a seu respeito.

Quando um acampamento cigano se estabelecia nas imediações de uma cidade, logo se via as mulheres com seus vestidos coloridos, longos e rodados com profusão de babados e rendas, a pele de bela cor morena, andarem em grupos pelas ruas convidando os transeuntes à leitura da mão; os homens pelas portas ofertando cordões dourados e tachos reluzentes.

Os tachos de cobre dos ciganos gozam da reputação de serem os melhores, sendo por isto valorizados. Por esta qualidade são ambicionados para a produção caseira de doces. 

Outra vertente relevante é a ourivesaria. Faz parte da tradição cigana o habilidoso trabalho com correntes e pingentes, e ainda, o uso dos "dentes de ouro". É grande a procura por serviços de profissionais para aplicações de trabalhos protéticos em liga à base de ouro, sob a forma de coroas totais ou parciais, incrustações (inlay e onlay) e facetas, caracterizando no largo sorriso a ostentação de seu brilhante gosto pelo fulvo metal. 

Negócios de barganha e mesmo compra e venda de animais, cavalos sobretudo, é uma das peculiaridades que mais impregnaram a alma popular na caracterização do povo cigano. Criou-se então a imagem do negociante arguto, ativo, cuja esperteza sempre conflui para o lucro do cigano, embora na aparência a outra parte imagine ter lucrado. Esse dom do negócio, da lábia de convencer sobre qualidades de uma montaria que não chega a tanto, fixou-se na mentalidade popular. O povo então diz que "cigano dá manta", expressão que indica que dá prejuízo a quem negocia com ele, mas o sujeito sai pensando que foi bom negócio. Ninguém trapaceia cigano, diz o povo. Essa sagacidade e não propriamente desonestidade fixou-se noutra expressão popular de uso comum: para indicar que uma pessoa é muito esperta diz-se "fulano é um cigano...", mesmo não o sendo. Com igual sentido é a palavra "ciganagem" para indicar negócios confusos, múltiplos, com volta de uma compensação.

A padroeira do povo cigano é Santa Sara Kali.

Sua vida é cercada de fatos lendários que a ligam de forma muito próxima ao círculo de parentes de Jesus ou a seus amigos próximos. Elementos espiritualistas intervieram em sua veneração, que assim passou a muitos devotos sem nenhuma ligação direta com os ciganos. Nesse processo de absorção desta devoção, a imagem da santa ganhou nos altares domésticos ou nos terreiros, oferendas tais como flores, frutas, taças de vinho branco, lenços coloridos e velas azuis que a ligam de imediato à imagem da água, com a qual teria grande força. Seus devotos a invocam sobretudo no auxílio em questões amorosas e para fortalecer e trazer à tona a clarividência. 

Em algumas correntes doutrinárias de umbanda, uma das sete linhas é a Linha do Oriente. Os guias ciganos teriam um certo vínculo com esta linha por afinidade, sem serem a rigor membros dela. Fato é que constituem uma linha própria de trabalho que reúne os guias ciganos, espíritos de luz que trabalham na direita, com velas amarelas, ou na esquerda, com velas vermelhas. É um padrão genérico observado em São João del-Rei, mas sujeito a peculiaridades e variações doutrinárias conforme o terreiro ou corrente umbandista. Exemplos de alguns pontos difundidos, coligidos nesta cidade: 

"Ôh, Ciganinha,  ôh, Ciganinha
da sandália de pau;
quando ela chega no reino,
faz o bem, desmancha o mal..."

Os pontos narram o poder dos ciganos: 

"Peguei meu facão dourado,
com o cigano eu fui brigar,
quando foi na sexta-feira
na calunga eu fui morar..." (*)

Os ciganos trabalham firme nos descarrego dos males: 

"Cigano dá, cigano tira, 
cigano leva, pras ondas do mar..."

A esperteza dos ciganos ficou consignada nestes versos de terreiro:

"Ganhei uma barraca velha
foi o cigano que me deu;
o que é meu, é do cigano, 
o que é do cigano, não é meu..."

Ficou evidente na tradição sobre os ciganos a grande habilidade em "ler a sorte", ou seja, prever o futuro, sobretudo pela quiromancia e pela cartomancia, o que também passou ao universo do folclore.

Nos cantares do povo, uma quadrinha chorosa de congado, do notável Capitão José Camilo da Silva, no Bairro São Dimas, em São João del-Rei (**), marcou a habilidade de ler o futuro:

"A cigana leu minha sorte,
tô com sina de morrê...
coração dos outros bate,
só o meu não quer bater, ai, ai!"

O sofrimento desse povo, a poesia popular registrou assim, numa jomba moçambiqueira (***): 

"A cigana chorou, 
chorou, chorou, chorou!
Sentada na beira do mar, 
chorou, chorou, chorou..."

Sobre suas andanças sem paradeiro fixo, uma narrativa popular busca explicação: Jesus andando no mundo, deparou certa vez com um cigano e pediu pouso. O cigano negou e disse-lhe:" _ Vá andando!" E Cristo exclamou: " _ Pois andando há de viver tu e toda a tua geração..." Por isso os ciganos são um povo nômade (****)

Por fim é mister recordar das ciganas como personagens humanas femininas do folguedo natalino das pastorinhas, elementos típicos do catolicismo popular, interpretadas por meninas que em verdade não pertencem à etnia cigana. Trajam-se de vestido longo, estampado, de cores vivas, lenço à cabeça, no geral adornado por cordões dourados, batendo pandeiros pequenos e enfeitados de fitas coloridas. Usam sandálias ou tamancos. Os adereços incluem correntões, grandes brincos de argola e medalinhas pendentes no lenço sobre a testa. Cantam anunciando que vão à Belém louvar o Menino Deus, mas sem ter o que comer, pedem esmolas para o pão, estendendo pandeiro de bojo para cima, para ali depositar-se o óbolo. Ocorrência em São João del-Rei (Conjunto IAPI, Bairro das Fábricas, 1992) e Tiradentes (Bairro Vargem de Baixo, 1995; 1996; 1999). Em São João eram duas: uma representando a adulta e outra a Ciganinha; em Tiradentes, quatro.

Ciganas, personagens das Pastorinhas da Vargem de Baixo, Tiradentes.
Mestra: Ana de Meneses. Captura de imagem de vídeo de Ulisses Passarelli, 25/12/1995.

O canto das ciganas em São João del-Rei era: 

Refrão: (bisado)
"Ai, ai, ai, amor!
É dia, meu Senhor!
Está chegando a hora
do Divino Redentor!"

Estrofes: 
"Eu sou a cigana,
que vivo a esmolar,
peço uma caridade
pra meus filhos sustentar. 

Tomara que chova,
na cidade de Belém,
para plantar o trigo
e colhê-lo também.

Dai uma esmola
pelo amor de Deus,
que a pobre da cigana
ainda hoje não comeu...

Canta a Ciganinha:

"Seja ouro ou prata, 
seja prata ou cobre,
nós aceitamos tudo,
porque somos muito pobres..."


Em Tiradentes, no grupo da Vargem de Baixo:

Refrão: (bisado)
"Nos causa gosto, 
nos causa alegria, 
ver que é nascido 
Filho de Maria!"
Estrofes: (bisadas)
"Dai uma esmola
à pobre cigana, 
pois vós bem sabes
que ela não engana.

Eu peço uma esmola, 
pelo amor de Deus,
que a pobre cigana
hoje não comeu!

Eu peço ao senhor,
que dê-me um vintém,
que a pobre cigana
chegou de Belém!

Eu peço ao senhor,
que dê-me um tostão,
que a pobre cigana
hoje não tem pão!"

Personagem comum noutras versões do Brasil. Ocorrem em reisados congêneres, nos quais as ciganas folclóricas são as personagens centrais, como por exemplo, no Terno das Ciganas (Januária / MG) e no Reis da Ciganinha (Macaúbas / BA). Essa presença reiseira representa um eco do passado, um esforço catequético simbolizado em personagens figurados. 

Fica assim marcado neste post as tradições que se construíram sobre os ciganos, impressões sentidas pela população que não é cigana, mas que no processo reinterpretação folclórica, criou uma série de tradições que aludem e rememoram os ciganos, senão mesmo e de alguma forma os homenageia, talvez por reconhecer o heroísmo de sua saga, a dor das perseguições e discriminações que já sofreram. 

Referências na Web

Santa Sara Kali. In: Wikipédia, http://pt.wikipedia.org/wiki/Santa_Sara_Kali (acesso em 25/02/2015, 07h 55min)

Notas e Créditos

* No linguajar específico existe a "calunga-pequena" (campo santo) e a "calunga-grande" (mar). Calunga é pois o cemitério. O Capitão de Congado Luís Santana, de São João del-Rei, certa feita por mim interpelado porque o mar também era chamado de calunga, respondeu-me tristonho: "meu filho, quer cemitério maior que o mar?! Olha quanta gente afundou nos barcos e as caveiras estão lá no fundo... quanto escravo morreu sobre o mar nos navios negreiros... o mar é um cemitério, é calunga sim!"
** Coletado em 1994. Outros grupos da região também cantam esta quadra.
*** Moçambiques de Perdões, Santo Antônio do Amparo, São João del-Rei, Ibituruna/MG. 
**** Informante: Aluísio dos Santos, São João del-Rei, 1996.
*****Sobre os ciganos ver como leitura indispensável:
DORNAS FILHO, João. Ciganos em Minas Gerais. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, Belo Horizonte, v.3, 1948.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.]. 930p. Verbete: Ciganos.
****** Texto e foto: Ulisses Passarelli

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