A tradição popular nos transmite a cada geração uma profunda essência religiosa que dita as regras do relacionamento entre o sagrado e o profano, o cotidiano e a festividade. Neste sentido, desde remota antiguidade, o respeito aos antepassados, aos pioneiros, aos mestres que partiram dos folguedos do povo, permanece como um laço de carinho. Nossa complexa formação étnica recebeu esse legado de muitas fontes, que se mesclaram num saber bem à brasileira.
Em especial no caso dos congados corre a crença em alguns grupos ou entre certos dirigentes por ventura mais espiritualistas, que a alma do capitão de congado que já desencarnou a algum tempo, tendo passado pelos estágios necessários de correção, arrependimento e aprendizado no plano espiritual do purgatório, tornando-se um espírito capaz de ajudar a quem lhe roga auxílios, caso invocado pelo nome que teve na Terra, na devoção ao rosário, poderá ajudar àqueles que dão seguimento à sua prática missionária. São os "capitães de areia".
Não se trata de um culto, mas antes uma lembrança; nem tão pouco se equipara a uma veneração como à dos santos, mas sim uma sintonia de continuidade. É seguramente um gesto de irmandade estendido àqueles que se esforçaram no fazer e no manter, que se espera continuem próximos na memória, através da evocação de sua sabedoria. Também não é prática mediúnica de terreiro, pois os capitães de areia não são guias nem orixás e não incorporam. Só se lida com eles com preces e no máximo uma vela branca, tal como se reza por qualquer alma de antepassado.
Neste contexto alguns ternos cantam versos a capitães que morreram. Como se fossem homenagens, gravei em São João del-Rei, em 1996, de um catupé daqui os seguintes dísticos:
“Eh, João Lopes! Êh, João Lopes!
Zé Francisco e Barnabé!” - bis;
“Êh, Zé Elias! Êh, Zé Elias!
Carioca, Capitão!” - bis.
João Lopes e José Francisco eram capitães regentes de congo no Bairro Tijuco, em São João del-Rei, até a década de 1940, o primeiro no terno da “Rua das Flores” (Rua Maestro Batista Lopes) e o segundo no da Rua São João; José Elias era capitão-meirinho da cidade de Ritápolis (do catupé, do capitão Pedro Ribeiro); Carioca foi capitão afamado de catupé em Coronel Xavier Chaves, da Vila Fátima, e Barnabé de um antigo grupo que existiu no seu distrito de Cachoeira.
A prática das manifestações folclóricas não é mera repetição de algo treinado. Demanda uma vivência, temperada pelo elemento cultural e movida pela religiosidade. Existe a crença comum de que assim como nós progredimos na vida terrena, também a alma progride na espiritual. As fases da vida trazem seu ensinamento, perpetuado na memória, cantado nos versos do povo e transmitido a quem que está em redor ouvindo ...
"Oi, Nossa Senhora me disse,
que esse mundo não é tão cruel.
Eu já fui joão-de-barro da terra,
eu já fui saracura do brejo,
hoje eu sou periquito do céu ...”
(moçambique, Passa Tempo/MG, 2000)
|
Caixas de Congado. |
Notas e Créditos
* Texto: Ulisses Passarelli
Nenhum comentário:
Postar um comentário