O homem do campo na lida com os rebanhos, geração após geração, desenvolveu uma cultura rural típica e específica sobre a atividade pastoril, que perpassa por vários vieses, como as técnicas veterinárias e zootécnicas empíricas, a mitologia em torno dos animais, os detalhes de seus comportamentos, hábitos de alimentação, crescimento, reprodução, etc. Enfim, sobre todos os elementos da sua atividade o rurícola construiu seu linguajar e modo de entendimento.
Por aí passa o saber identificar se um bezerro é de boa estirpe e dará um bom lucro no futuro; ou se o cavalo tal é bom de marcha; qual boi pode ser treinado para carrear sob o jugo ou se não será bom para a função.
O homem desenvolveu com o gado uma afetividade que lhe permite ao seu modo tratar as criações com carinho, e assim, retireiros, tropeiros, boiadeiros, muladeiros, sitiantes e fazendeiros se entendem com expressões que aos não afeitos ao seu linguajar habitual podem parecer estranhas.
Dentre os elementos mais interessantes está a terminologia das cores de pelagem de bois, cavalos, ovelhas e das penas das galináceas, bem como a designação de outras características físicas inerentes à cabeça, cauda, etc. Aquelas que porventura as combinações genéticas fixaram num fenótipo mais ou menos padronizado receberam um nome próprio.
Peculiaridades de um animal servem muitas vezes de inspiração para composições do cancioneiro popular ou de trovas folclóricas. A título de exemplo dentre uma vastidão de composições:
"Eu matei meu boi malhado,
meu boi de estimação;
eu levei p'ro matadouro
na noite de São João." (*)
"Eu sou aquele zebu,
que tem o chifre torcido;
na hora qu'eu dou meu berro,
meu berro é conhecido!" (**)
Longe de esgotar o assunto numa mera listagem, estão abaixo enumerados uma pequena coletânea de termos da pecuária popular difundidos nesta região. Esteja claro que tal lista não se faz completa e que de fato não o pretendeu ser; igualmente, que não tem limites rígidos de definição, sendo que o entendimento da nomenclatura, passa por variações subjetivas e outras mais, ditadas pelo regionalismo (***).
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Araçá - cachorro de cor geral ocre ou parda-amarelada, com estriações escuras, finas e sinuosas por todo o corpo. A saturação do colorido é variada conforme o cão.
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Araçá. |
Alazão - castanho-avermelhado, incluindo a crina, que é da mesma tonalidade do corpo.
Arrepiada - galinha que em vez de ter todas as penas rentes ao corpo, as tem eriçadas.
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Arrepiada. |
Azulega - normalmente pronunciada como "zulega". Rês de pelagem cinza-ardósia.
Baio - amarelado, bege, camurça.
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Baio. |
Barbuda - raça de galinhas com um tufo de penas na lateral da cabeça, abaixo dos olhos.
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Barbuda. |
Calçado - animal com mancha branca uniforme na parte baixa das patas, contrastando com a cor escura do corpo. Parece calçado de botas ou meias.
Capão - capado; castrado nos procedimento empíricos da veterinária popular. Habitualmente se emprega com referência aos galos. O homem rural tem por hábito reservar um galo para se tornar capão e como tal, removendo seus testículos, considera que muda sua tonalidade de canto mas principalmente que passa a se comportar com um zeloso cuidador de filhotes. Assim, o galo-capão é posto a cuidar dos pintos que nascem e dizem que o faz melhor que as galinhas, que podem então iniciar com brevidade uma nova sequência de postura e choco. Por vezes entregam ao galo-capão diversas ninhadas de diferentes galinhas e assim fica como pai adotivo.Também se diz capão aos galos desprovidos de crista.
Capoeireira - rês arisca, que ao ser tangida pelos boiadeiros foge de súbito com grande correria, ocultando-se de ordinário nas capoeiras (pequena mata isolada de outras áreas florestais, no meio do campo ou no cerrado).
Caracu - boi vermelho-tijolo. Referência a uma raça bovina.
Carijó - também chamado pedrês, ou seja, semelhante à pedra, é a mescla de preto, branco e tonalidades de cinza.
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Carijó. |
Carona - pelagem de bovinos de fundo branco e largas manchas marrons. Equivale ao pampa dos equinos.
Castanho - animal marrom-avermelhado, em diferentes tonalidades.
Catróia - 1- Animal que tem na pelagem uma mancha preta ao redor olhos. Vaca-catróia. 2 - Schistochlamys ruficapillus: ave passeriforme da família fringilidae, encontrada nos Campos das Vertentes, de plumagem aveludada nas cores cinza e canela, com uma característica cor preta em volta dos olhos, como uma máscara. O mesmo que catrol, sanhaço-catróia, gaiteiro, fura-laranja, bico-de-veludo e zorro.
Chumbada - galinha de vários tons de pardo, em padrão de salpicado miúdo, vermiculado e escamado na plumagem.
Cravo - dizem os passarinheiros das fêmeas de canário de características masculinizadas, que tem dificuldades de acasalar porque sempre brigam com diferentes machos. Por vezes cantam semelhante ao macho e, se aninham, podem abandonar ovos ou filhotes à morte. Fêmea-cravo. No caso do canário da terra, canário-chapinha ou canário cabeça-de-fogo (Sicalis flaveola), ela tem um porte mais avantajado que de outras fêmeas da espécie e a fronte esboça um tanto amenizado o laranja típico das penas do píleo do macho.
Estrela - criação com uma mancha branca na testa, disforme, contrastando com o restante da pelagem. Equino ou bovino escuro com malha clara na fronte. A terminologia ficou imortalizada na canção de "Vaca Estrela e Boi Fubá", um clássico do inesquecível Patativa do Assaré, cantado e recantado por grandes nomes de nossa música.
Fumaça - rês de cor fuliginosa; denegrido esmaecido.
Laranja (o) - pelagem parda cambiando ao alaranjado. Curiosamente para animais machos o povo adapta o adjetivo ao masculino: vaca-laranja; boi-laranjo.
Macuco - boi que apresenta pelagem cinza-pardacento, no tom semelhante ao das penas do macuco, Tinamus solitarius, ave tinamídea da Mata Atlântica. Uma antiga cantoria de congado informado como da zona rural de Bias Fortes/MG, registra a terminologia:
"Meu boi-macuco
tá no currá;
é dia, gente,
vamos'inhá!"
Malhada (o) - rês preta, com manchas brancas de tamanhos variados, sem forma definida.
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Malhada. |
Mocho - sem chifres. O mesmo que mochado.
Moira - ou moura. Pelo preto e branco, salpicado entre malhas mais largas.
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Moira. |
Nabuco - sem rabo ou de cauda curta, seja por característica genética, anomalia do espécime ou acidente. Vaca-nabuca, cachorro-nabuco, galo-nabuco.
Nanica - a palavra indica pequeno porte. Raça de galinhas de pernas excepcionalmente curtas, consideradas mansas e boas poedeiras.
Pampa - animal nas cores marrom e branca, em malhas de desenhos aleatórios.
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Pampa. |
Pedrês - pelagem branca ou clara, salpicada de escuro de forma esparsa e mais tênue que o tordilho.
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Pedrês. |
Pelo de rato - como o nome indica, pelagem de burro ou mula que se aproxima da cor de um rato. Acinzentado, em várias tonalidades.
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Pelo de rato. |
Picaço - escuro, calçado de branco.
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Picaço. |
Queimado - semelhante ao retinto, animal de pelagem castanho escuro.
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Queimado. |
Retinto - gado castanho bem escuro, tirante a vermelho.
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Retinto. |
Rosilho - semelhante ao tordilho, mas tirante ao avermelhado atenuado.
Ruão - ou ruano (a): pelagem baia aloirada, de crina ruiva. A cor também sem aplica a cães.
Sapateiro - pombo ou galo com pernas e dedos cobertos de penas. Pombo-sapateiro; galo-sapateiro.
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Sapateiro. |
Suruca (o) - por vezes encurtado para “sura” ou “sú” . O mesmo que cotó, cotôco, nabuco; isto é, sem rabo, ou de cauda ou cabelo muito curto. Diz um canto de congado:
“Galinha sem rabo é sú! - bis
Galo sem crista é capão! - bis”
(catupé, São João del-Rei, 1993, Capitão Luís Santana).
Existe uma estrofe popular bem humorada que cita a galinha-sura. A versão abaixo procede de Santa Cruz de Minas:
“Botei minha galinha chocá
numa moita de capim-gordura,
quando foi noutra semana,
tinha pinto com um metro de altura,
achei que era da minha galinha,
mas era de galinha-sura...”
(sextilha popular, Santa Cruz de Minas, 2002).
Essa sextilha (em variantes próximas) foi incorporada entre a versalhada jocosa dos palhaços de folias de Reis em São João del-Rei e seu distrito de São Gonçalo do Amarante.
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Suruco. |
Topete - raça de galinhas com um tufo de penas salientes sobre a cabeça, à guisa de um penacho.
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Topete. |
Tordilho - pelagem equina cinzenta com pequeninos salpicados difusos por todo o corpo.
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Tordilho. |
Trochada - vaca de fundo geral ocre ou amarronzado claro, estriada por linhas sinuosas escuras ao longo de todo corpo. Muito semelhante à designação araçá.
Notas e Créditos
* Informante: Aluísio dos Santos, Bairro Centro, São João del-Rei, 10/02/1999.
** Informante: Elvira Andrade de Salles, Bairro Córrego, Santa Cruz de Minas, 12/02/1999.
*** Por exemplo, dois dos mais afamados romances do ciclo do gado nordestino são as cantigas do boi-surubim e do boi-espaço (ou espácio), incorporadas ao repertório do folguedo do bumba-meu-boi no Rio Grande do Norte. Surubim vale a pelagem em padrão de cor que alude à coloração do peixe silurídeo surubim, cinza maculado de preto, em pintas ou rajas; espaço é o boi de chifres grandes e divergentes, muito abertos.
**** Texto: Ulisses Passarelli
***** Fotografias: Ulisses Passarelli (cavalos, vaca, cão); Iago C.S. Passarelli; (aves).
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