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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Assombrações e Penitência

A quaresma começou ...


Vencida a Terça-feira Gorda, concluiu-se mais um ciclo festivo anual. O primeiro é o natalino, que nas tradições populares começa no dia de Nossa Senhora da Conceição (8 de dezembro) e vai até o de Nossa Senhora das Candeias (2 de fevereiro), data limite, já cruzando com as batucadas carnavalescas.

Se o primeiro é o tempo da esperança, o segundo da alegria extravasadora, o terceiro, o quaresmal, iniciado na Quarta-feira de Cinzas, é o período da penitência, do recolhimento. A admoestação voeja em redor dos pecadores, pesando-lhes os abusos cometidos no carnaval, e convida-os sob a imposição da cinza na testa, diante dos altares, a voltar-se ao Criador. 

São dias de penitência todas as sextas-feiras, e ainda e em especial, a Quarta-feira de Cinzas e a Sexta-feira da Paixão.

Na penitência o cristão evita a carne vermelha. Deve substituí-la pelo ovo ou pelo peixe. É tradição muito antiga, inalienável ao fiel tradicionalista. Obviamente a penitência não se resume apenas a esse gesto alimentar.

O povo acredita que não fazendo penitência na quaresma ou cometendo abusos em horas impróprias na rua, entregando-se à jogatina ou à bebedeira, aos bailes e cantorias, se tornará alvo fácil dos espíritos do mal, que surgem sob os mais diferentes aspectos. Alguns, por sinal, bastante curiosos. 

Assim, na região, ouvimos falar da pinto pelado, uma aparição demoníaca de um pintinho misterioso, desacompanhado de sua mãe, piando sem parar, implume, imortal, arrepiante... (*)

Tanto mais aparecerá ao incauto a porca com os pintinhos, uma assombração que surge na quaresma, sobretudo a horas mortas, pelos caminhos e encruzilhadas. A disparidade se evidencia no nome do espectro, com mães trocadas. Assim pode surgir também como a galinha com os leitões. Um canto de calango alude a este assombro (**): 

“Calango tango, 
no calango dessidão, 
nunca vi cantá calango 
Sexta-feira da Paixão... 
vem a Porca co’os Pintinho 
e a Galinha co’os leitão!” 

São bichos fantasmagóricos, d'outro mundo. Em São Paulo corre um mito equivalente, a “porca dos sete leitões”. E assim a velha quaresma era povoada dos mais estranhos seres sobrenaturais, tais como o saci-pererê com suas traquinagens, a mula-sem-cabeça chispando fogo, o lobisomem ameaçador com sua dentaria aguçada. A modernidade baniu o sobrenatural. A incredulidade é o assombro hodierno. 

De volta à penitência é de se lembrar nesse tempo de pouca chuva, que outrora era usual a Procissão da Penitência, destinada a redimir as faltas da comunidade, para que Deus, num ato de perdão, cesse um determinado flagelo - seca, enchente, peste, fome, etc. Procede-se de ordinário em horários de calor, por longas extensões, estradas ruins, justamente para aumentar o grau de sacrifício penitencial.

Uma dessas procissões de antanho, partiu da primitiva Capela de Nossa Senhora do Bom Despacho, na Serra de São José, desde longa data demolida. Num tempo de seca a procissão seguiu para Tiradentes, levando a imagem do Senhor dos Passos até a Matriz de Santo Antônio. Ocorre que naquele caso específico a irmandade também se transladou e nunca mais voltou à pequena capela em questão, que terminou em ruínas (***). 

Bem menos dramático e contudo mais caricato é o causo de uma procissão da penitência, também para atrair chuva. Contava-me meu avô (****), que num tempo de calor implacável o padre dissera em sermão do púlpito aos fiéis, que a culpa da seca era deles, por causa do acúmulo de pecados. Deus estava bravo. Daí, só tinha um jeito: penitência. Marcou a data e a hora, 15 horas _ 3 da tarde _ sol no máximo. O sacerdote foi na sombra durante toda a procissão, protegido pelo pálio. Todos os demais torrando no calor. No momento de um canto religioso, após o refrão, o padre entrou em voz solista, no ritmo da música, dando ordem para soltar os fogos de artifício, mas mudando os versos para provocar o sacristão, com quem andava meio enraivecido pelo roubo do vinho eclesiástico: 

"Seu sacristão, 

solte essas bomba, 
vocês vai no sol,
eu vou na sombra..."

Na virada da estrofe o sacristão não deixou por menos e no mesmo tom retrucou em reclamação aos abusos do padre: 

"É isso mesmo 

que vancê tá dizêno,
nóis que trabáia,
você vai comendo..."

Lanterna de procissão. São João del-Rei/MG. 

Notas e Créditos

* Informante: Elvira Andrade de Salles, Santa Cruz de Minas, 1996.
** Informante: idem, referindo-se a uma cantoria da zona rural de Bias Fortes, informada em 1997. 
*** SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues dos. A Capela do Bom Despacho do Córrego - memória histórica. In: Inconfidências. Tiradentes: Sociedade Amigos de Tiradentes, ano1, n.6, jul./1996. p.3. 
**** Informante: Aluísio dos Santos, São João del-Rei, 1994.
***** Texto: Ulisses Passarelli
****** Foto: Iago C.S. Passarelli 

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