A caveira é o símbolo mais contundente da morte (*). De tão universal, qualquer um entende que uma vez riscada num frasco indica que o conteúdo é venenoso e põe a vida em risco. Pois bem. Nem sempre, apesar disso, o assunto "caveira" é necessariamente tão sério. Muitas vezes o povo brinca com a morte (**).
Talvez brinque com a morte porque dela não tem como escapar. Dá asas ao seu medo sob o viés da irreverência. E por aí extravasa...
Em São João del-Rei o que há de mais notório nessa inter-relação de elementos é sem dúvidas o bloco típico Os Caveiras, uma agremiação carnavalesca muito tradicional, primando pelo humor através do horror, tematizado nos fatos sobrenaturais, além-túmulo, satirizando a morte com um desfile de foliões metidos em cáfitas pretas, brancas ou roxas, portando máscaras de caveiras, ao som de marchas fúnebres. Arrastando correntes, ossos bovinos, caixões com eventuais críticas ao político sujo do momento (nunca faltam) é um dos mais queridos blocos da cidade. Os participantes, com foices de papelão, fazem a voz cavernosa, fingem-se de coxos, fazem que vão atacar a platéia. Múmias, monstros e seres sobrenaturais advindos do imaginário local ou sob a influência dos filmes de terror, também fazem parte do bloco. Destaque pelo valor folclórico para as máscaras de papel-machê, pintadas de branco, com detalhes de contorno em preto e em cor vermelha uma imitação de sangue escorrido. De dentes arreganhados, olhos esbugalhados e tudo o mais que imprime má impressão. O desfile d'Os Caveiras é sempre um dos momentos mais aguardados do carnaval, desde os anos sessenta, segundo se diz, 1961, embora o registro cartorial tenha vindo mais tarde.
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Alegoria do bloco Os Caveiras.
São João del-Rei, 03/03/2014.
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Além do bloco, esse contexto da morte ironizada pode ser visto noutra manifestação, totalmente desvinculada do carnaval: é o costume de se fazer as caveiras-de-fingimento. Brincadeira que as crianças faziam até a década de 1970, com abóboras e sobretudo mamões verdes, escavando-os até ocarem, abrindo-lhes os olhos, nariz e boca de aspecto medonho e para mais atemorizar, a faziam iluminar por meio de uma vela acesa no interior. Assim preparada era posta em locais ermos, notadamente na quaresma, para, vista à distância, simular uma assombração, ou sobre muros e mourões à beira dos caminhos, beirando porteiras mal afamadas, para assuntar os transeuntes. De praxe ficavam por perto fazendo barulhos supostamente misteriosos e jogando pedrinhas sem se revelar, rindo daqueles que acreditavam no seu jogo inocente.
Muitos se indagarão porque marquei uma data limite aproximada se até hoje se faz isto por aí. É porque somente até essa década pode-se afirmar com segurança que eram feitas essas cabeças de frutos normalmente como qualquer outro brinquedo nacional, mas daí por diante, sobretudo nos anos noventa, de forma avassaladora, sofreu influência dos chamados haloween’s e já não se faz da forma como o conheci em minha infância, exceção feita a algum lugar recôndito.
Para concluir a questão dos brinquedos com a morte arremato com uma anedota que mais uma vez a memória prodigiosa de meu saudoso avô materno me comunicou (***): certa feita, um padre tinha que fazer um sermão mas estava muito sem inspiração. Desanimado, não sabia o que falar aos fiéis. Pensou, pensou... resolveu passar pelo cemitério nos fundos da igreja e no ossuário pegou uma caveira. Saiu com o crânio debaixo do braço e o escondeu no púlpito da igreja. Na hora do sermão subiu, olhou para o povo lá em baixo, raspou a garganta, gaguejou e foi falando espaçado:
_ é meus caros fiéis... esse mundo é enganador! A vida é incerta. Hoje agente está vivo, amanhã está igual essa caveira aqui. Tem que respeitar muito os mortos. Porque essa caveira aqui, oh, ninguém sabe de quem foi... pode ter sido de teu pai, d'um tio, irmão, ...
Enquanto enumerava possíveis parentes deixou a caveira cair do púlpito e ela bateu lá em baixo bem no alto da cabeça de um careca, e os dentes do maxilar ossudo rasgaram sua pele, que imediatamente sangrou. No mesmo tom que o padre vinha falando, o malfadado devoto, cheio de raiva, falou com voz alta e irritada, e foi-se embora:
_ é... pode ter sido da puta que te pariu também!
* Uma das sete linhas da quimbanda é a "Linha das Caveiras", chefiada pelo respeitadíssimo exu "seu" João Caveira, fiel ordenança do orixá sr. Omulu. Muito ligada à Linha das Almas. As entidades dessa linha se apresentam nas vidências dos médiuns como esqueletos: Manuel Caveira, Tata Caveira, Chico Caveira, Exu Caveira, etc.
** Na região estudada é atitude comum quando uma pessoa sofre um repentino calafrio, inesperado arrepio, se persignar e dizer em tom descontraído mas no fundo exorcisório: "passa morte, que eu tô forte!"
*** Aluísio dos Santos, Centro, São João del-Rei, 1993.
**** Texto: Ulisses Passarelli
Gostei do texto. A grande sorte que São João del-Rei tem é de manter viva suas tradições.
ResponderExcluirGrato pela visita. Volte sempre a visitar o blog, continuamente renovado.
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