São João del-Rei, antiga cidade colonial, filha do ciclo do ouro, conserva muitas crenças no seu rico folclore. Nesse período de quaresma no qual se prega o recolhimento, os rumores de assombros tomam conta do imaginário popular. Não é raro ouvirmos falar de mitos luminosos, relampejantes, irradiando temerosa luz no céu, emissores de maus augúrios ou indicando riquezas escondidas.
É sobretudo nas áreas que beiram as serras onde foi farto o trabalho mineral que prosperam estas narrativas, desde São João até Prados, pela espinha dorsal pétrea da Serra de São José, ladeando Santa Cruz de Minas, Águas Santas,Tiradentes e Vitoriano Veloso ("Bichinho"), além de parte do município de Coronel Xavier Chaves. Muito frequentes são estes relatos ao longo da Serra do Lenheiro, 100% são-joanense. Mesmo no seu entorno, como no pedregoso povoado do Fé, beirando a Serra do Julião, registrei-as a anos, da boca do saudoso folião "Luis Candinho": luz misteriosa, boitatá, mãe do ouro.
Os mitos ígneos,
como o nome indica são os do fogo, cujo clarão amarelo-laranja-vermelho evoca o
tom dourado, luzidio, do ouro. Cascudo em seu dicionário cita um antigo ditado
popular que afirma: “onde está o fogo está o ouro.”
Eis o princípio folclórico da mãe do ouro. Descrevem-na como uma bola ou aro de fogo, que se desloca pelo ar próximo à serra, ora célere, ora vagarosa, nítida, brilhante, áurea, afogueada. Pode
parar no ar ou de súbito mudar de rumo. Na sua passagem vai largando fagulhas,
que dizem ser fios de ouro. Quem procurar o rastro de sua passagem os
encontrará. Por isso, quando a avistam, costumam dizer: “me dá um cabelo, mãe do ouro!” ou “me dá um fiapo do seu cabelo, madrinha!”, esperando pela queda das
ditas fagulhas. Assim ensinou-me no Córrego, dona Elvira Andrade de Salles, nos idos dos anos 90 em Santa Cruz de Minas, local de muitas aparições.
É assombrada. Se adentrar numa casa, só sai às custas de reza
forte. Se tocar em alguém a morte será fulminante. Se perseguir, escapa-se
riscando no chão o signo de Salomão (estrela de cinco pontas), rodeado por um
círculo e dentro se deve postar. Ela respeita, desvia-se e vai embora. Na passagem
sobre as pedras serranas, choca-se contra elas, causando grande estrondo. É ali que está o ouro farto.
Sobre esse mito tão falado Brasil afora, escreveu
Richard Burton, quando de sua visita a São João del-Rei, em 1868:
"Um raio em forma
de bola, como que penetrou na Igreja de Stralaund derrubou uma das abas do
telhado (...) Estas bolas de fogo são uma forma freqüente que o raio toma no
Brasil como na África Oriental e merece cuidadosa atenção. Vi muitas vezes em
São Paulo o fluido elétrico subindo a sudeste do céu e, na altura de 60º
projetar uma quantidade de globos, como um monstruoso candelabro romano. Muitas
vezes caem sobre as casas (etc., p.203).
(...) Mãe do Ouro é um gênio encantado
que protege os tesouros virgens. É antes extravagante que maldosa, mas às vezes
faz um assassíniozinho" (p.224).
É um mito muito tradicional. Num
velho jornal de São João del-Rei apareceu este escrito sobre ela:
"_ Já vi a Mãe do
Ouro, olhe, o sr. está vendo alli aquele alto onde teve uma bandeira da
companhia geographica? (Referia-se a um signal geodessico da commissão
geographica). Pois alli, muitas vezes, de noite, quando eu ia da cidade para
São Gonçalo (do Amarante) eu vi a Mãe do Ouro.
_ Viste talvez
alguma alma do outro mundo.
_ Não senhor. A
luz da alma do outro mundo apparece como uma espécie de vela accesa, isso eu já
tenho visto também; mas o que vi alli era uma especie de labareda grande,
furta-côr, movendo-se como se estivesse dansando."
Ouvi falar, por informação do sr. Luís Santana (fevereiro/1993), que na Colônia do Recondengo, em São João del-Rei, durante um baile, quando a festa lá ia animada, uns rapazes zombaram ao ver a mãe do ouro passar radiante no alto de um morro: "_ nós aqui na luz de lampião, porque que ela não vem aqui clarear em vez de iluminar o mato?" De repente ela mudou de rumo e entrou pelo salão de baile. A mãe do ouro deu giros rasantes sobre a cabeça do povo incauto, que fugiu espavorido por portas e janelas. Era o aviso sobrenatural daquele abuso. Ficou então parada lá dentro, flutuando no centro. Só saiu do salão depois que umas senhoras rezaram um terço.
Meu saudoso tio em 1º grau pelo lado paterno, Sérgio Passarelli, contou-me, ainda nos anos 80, que, muitos anos antes, deparou-se com uma mãe do ouro, cara a cara, noite-tarde, na esquina da Avenida Leite de Castro com a Rua Engenheiro Paes Leme, que ladeia a Escola Estadual Aureliano Pimentel. Disse-me que ela pairava lindamente pouco acima do calçamento de pedras, desfilando lenta com seu brilho encantador mas tétrico. Fugiu espavorido, de bicicleta.
Um dos informantes, Sérgio Passarelli, na bicicleta pasteleira, em antiga foto de data e autor não identificados, na Avenida Leite de Castro, em São João del-Rei, quando ainda se viam os trilhos da EFOM.
Foto de álbum familiar, cortesia de Maria do Carmo Passarelli.
Tanta gente idônea, inimiga da
mentira, fala da mãe do ouro, em narrativas e com testemunhos tão verossímeis,
que agente titubeia em não crer nesse espectro. Foi refletindo nisto e vendo a anos um
documentário televisivo sobre o assunto, gravado no interior de São Paulo (não recordo a cidade), onde
a chamam “mãe do diabo”, que tomei conhecimento sobre a realidade do assunto:
ela existe de fato, mas não é sobrenatural. É um fenômeno físico-metereológico
raríssimo, que só ocorre em situações atmosféricas muito especiais, favorecidas
pelas condições magnéticas e iônicas encontráveis próximo às pedreiras. É
eletricamente carregada, como um relâmpago, só que em forma esferoidal (em vez
de ter forma de faísca, corisco). Por isto lhe chamam os estudiosos raio-bola
ou raio-globular.
Eis que os populares não passaram de
fato por mentirosos, como dizem os céticos e aqueles outros que desprezam a
cultura do povo. Folclórico no caso é a interpretação que lhe dão.
Na área serrana do distrito são-joanense de Santo Antônio do Rio
das Mortes Pequeno, Terra de Nhá Chica, é referida com maior frequência.
Esta ideia de dar às coisas uma mãe espiritual ("ci") é de influência indígena. Ficou em nossa cultura popular. Fala-se assim, aqui mesmo em São João del-Rei de seres tais como mãe da cachoeira, mãe da mata, mãe da pedreira, mãe da chuva, mãe da lua
(personificada num pássaro, o urutau – Nyctibius
griseus), mãe do corpo (endométrio, camada interna do útero), etc. Na sua Geografia dos Mitos, Cascudo ensinou:
(...) "É um ser feminino, a Mãe, Ci. Acreditavam os índios que tudo no mundo, vegetal, animal, mineral, possui sua criadora, protetora e guiadora eterna. Tem a Mãe do vento, das pedras, dos frutos, de cada tipo de peixe, de insetos, de aves, árvores, estrelas, vermes, cobras, fantasmas. Há a mãe da mandioca como há a mãe da coceira. Tudo tem Mãe e esta gerou seus filhos sem a necessidade do elemento viril. Todos os indígenas sabem de cor a Mãe disto e daquilo mas ninguém sabe o nome do Pai." (etc.)
Outras luzes explicáveis pela
ciência aparecem nas serras sob o manto dos temores: o fogo-de-santelmo e o
fogo-fátuo.
O primeiro (= fogo-de-Elias,
fogo-de-Hermes, fogo-de-Santa Helena, fogo-de-São Nicolau, fogo-de-São Pedro) é
um fenômeno físico-elétrico, devido ao poder das pontas, capacidade de escoar
cargas nas extremidades, até ao extremo de, em condições específicas, com
descargas lentas, aparecer como um eflúvio luminoso. Pode surgir nas torres de
igrejas. Nas pontas dos mastros dos navios, por ocasião dos ares das tormentas,
costuma aparecer o clarão e por vezes, sobre a superfície das ondas. Os
navegantes portugueses atribuíam o fenômeno a um sinal positivo de seu
protetor, São Pedro Elmo ou Telmo, cujo nome simplificavam para Santo Elmo, ou,
adequando à sua pronúncia, Sant’Elmo. Era dominicano, espanhol, do séc. XIII,
festejado a 15 de abril. Pela crendice o clarão indicava nos navios a sua
visita livrando os marujos do naufrágio. Por isto era recebido com alegria.
Para os italianos contudo era Santo Erasmo ou Frei Pedro Gonçalvez.
No nordeste do país estes clarões inspiraram mitos como o joão galafuz (Pernambuco, Sergipe) e a alamoa (Fernando de Noronha). No interior, como aqui por exemplo, aparece como um clarão
nas pontas dos galhos e às vezes clareia uma árvore inteira, fazendo nítido o
seu contorno; animais, pessoas, tendas, podem se tornar com debrum azulado,
silhueta luminosa e emitir estalidos de descarga. Está claro que tudo isto é inevitavelmente taxado de assombração.
Meu pai, David Passarelli, testemunhou-me um fenômeno deste. Foi numa noite tempestuosa na década de 1960. Voltando de jipe da Mina do Germinal, para os lados de Nazareno, junto com um amigo, avistaram um clarão numa árvore de topo de morro, na beira da estrada de terra. A mescla de medo e curiosidade, ofuscando a cautela, fê-los parar o veículo. O estranho clarão irradiava da árvore, como se dela emanasse, permitindo ver até as pontas mais fininhas dos galhos. Logo fugiram aturdidos daquela árvore fantasmagórica. Era na verdade um fogo de santelmo.
O bem mais conhecido fogo-fátuo, é
um fenômeno físico-químico, no qual a matéria orgânica em decomposição (paus
podres, cadáveres), exala gazes de fosforeto de hidrogênio, que em contato com
o oxigênio da atmosfera, em condições tais, entra em combustão espontânea. O
fogo azulado que emite ganha o nome de luzinha em nossa Serra do Lenheiro, comentado na
Bocaina, Arambinga e outras áreas, por trás do Bairro Senhor dos Montes: Cunha, Porteira Pesada, Buião, Pasto dos Carrapatos, Córrego Seco, Cruz do Zé Poeta, Ribeirão, Olho d’Água, Três Praias e Garganta do Diabo.
As chamas inconstantes, bruxuleando em
movimentos serpentiformes, deram ainda motivo a outro mito nesta mesma região,
o boitatá, de origem indígena: “mboi” = cobra + “tata” = fogo. A “cobra de
fogo” ou “que expele fogo” é um ser fantástico, protetor dos campos, que
persegue os incendiários. O povo pronuncia corriqueiramente sob a corruptela batatá, batatal ou batatão.
A mitologia brasileira é um universo cultural extraordinário de riqueza e encantamento que bem está a merecer um olhar mais acurado por parte dos estudiosos de nossa cultura popular.
Referências Bibliográficas
BURTON, Richard Francis. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho (1867). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1976.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d]. 930pil.
CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos Mitos Brasileiros. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1983. 345p.
NOSSAS RIQUEZAS: a Serra do Lenheiro. O Resistente, n.421, 19-21/09/1901, São João del-Rei.
PASSARELLI, Ulisses. Notas sobre o distrito de São Gonçalo do Amarante. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, n.10, 2002. p.87-125.
Notas e Créditos
* Texto: Ulisses Passarelli
Muito bom este texto!
ResponderExcluirTive a oportunidade de ver o boitatá na serra do Lenheiro e próximo ao Olhos D'agua.
Miranda.
Camarada Miranda, grande parceiro de caminhadas e estudos serranos: grato pela visita, que sempre me alegra. Essas luzes maravilhosas encantam o homem desde sempre! Um grande abraço!
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