O Deuteronômio, no vigésimo primeiro capítulo prescrevia aos hebreus raspar a cabeça e cortar as unhas das prisioneiras de guerra que acaso quisessem tomar por esposas. Era também uma prática de luto. Já o Livro dos Números, no capítulo 6, tratando da lei sobre os nazarenos, determinava aos fiéis que quisessem declarar voto de nazarenato a interdição do corte dos cabelos até o dia da consagração: "a navalha não passará pela sua cabeça" ... "será santo, deixando crescer livremente os cabelos de sua cabeça." (versículo 5). Na Bahia, o período da quaresma trazia interdição ao trato com o cabelo: "Moça não deve aparar cabelo que é para não atrasar o crescimento da cabeleira. nem deve oferecer a cabeleira a santo que tenha sido martirizado. Dizem que fica sujeita a iguais martírios." (VIANA, 1960, p.24). A base portuguesa de alguns costumes ligados ao cabelo foi destacada por Luís da Câmara Cascudo: "pela primeira vez só podia ser cortado por mão de homem. Os cachinhos eram distribuídos às pessoas amigas da família. Os pais usavam como berloques, os cachinhos encastoados em ouro." (...) "ter cabelos no peito é sinônimo de valentia" (p.206). O autor menciona exemplos nas mitologias egípcia e grega. "Foi usadíssima a pena, tida como infamante, de cortar o cabelo às 'mulheres de má vida', expulsando-as da cidade. Essa pena de cortar, aparar, rapar os cabelos constituiu uso legalíssimo e os portugueses o tiveram por intermédio do Código Visigótico." (p.207) (CASCUDO, s/d).
É muito vasto o folclore do cabelo. Nos folguedos populares é costume alguns personagens usarem tranças postiças, conforme registros dos folcloristas no Nordeste brasileiro e como mostra as fotos abaixo, de folias do Campo das Vertentes, feitas com pelos de cauda de cavalo.
É costume antiquíssimo consagrar o cabelo: deixá-lo crescer e depois cortá-lo como oferenda. Certas tonsuras são específicas de algumas concepções religiosas e etnias. Entre os ex-votos encontram-se mechas entregues nas salas de milagres. Outro exemplo é do cabelo humano especialmente reservado por longo tempo pelo fiel, para ser cortado e ajustado à cabeça dos santos barrocos, fazendo as vezes de cabelo da imagem.
O cabelo povoa o imaginário popular servindo de inspiração para composições poéticas de nosso refraneiro e cancioneiro. O saudoso capitão de congado José Camilo da Silva, por volta de 1994 cantava a seguinte sextilha de moçambique, dizendo-a muito antiga, cantada pelo Capitão "Barão", de um grupo de Ritápolis, extinto há décadas:
O tratamento dos cabelos se faz na medicina popular com ervas específicas. Para cabelos ressecados, quebradiços, usam esfregar um unguento à base de mel, com babosa ou polpa de abacate; para fraqueza das raízes, com queda, o banho da infusão das folhas do jaborandi [1] (tem o falso e o verdadeiro, este mais eficaz), vegetal que medra nas matas de galeria e capoeiras, e do murici-branco, dos cerrados. O tratamento de piolhos procede-se com um banho de vinagre e aplicação de macerado de erva de Santa Maria (mastruz). Se a infestação é muito forte e não melhora, procede-se à simpatia de pegar três piolhos e colocar dentro de uma caixinha de fósforos e despachar numa encruzilhada, pedindo para levar embora esses parasitas. Em pouco tempo a pessoa se vê livre deles. O tratamento de caspas faz-se com sumo de limão aplicado nos cabelos. Este blog apenas registra o costume popular, mas não aconselha tais práticas, que podem eventualmente prejudicar a saúde.
Na crendice popular o cabelo guarda a essência carnal da pessoa. Por isto, em concepção anímica, feitiços feitos em seus fios atingem por conseguinte a própria pessoa a quem o cabelo pertencia. A partir deste princípio, por temor, muitos não cortam o cabelo em qualquer barbearia ou então, pedem ao profissional o favor de recolher as aparas e embrulhar. A pessoa então leva consigo para dispensar onde melhor convier. Sobre a antiguidade de tal crença, vale de exemplo a citação de um caso de devassa religiosa do século XVIII, que consta em processo no Arquivo da Cúria de Mariana: em 1765 "Paula Almeida, bastarda, e Antônio Martins Pereira" foram presos e condenados à excomunhão maior por "'incesto, por cognação espiritual', já que estavam ligados pelo compadrio, mas, sobretudo, por causa das práticas de 'feitiçaria ou embustices' quando 'cortaram o cabelo de uma negra benguela e jogaram no córrego onde se fez um redemoinho'" (RESENDE, 2005, p.21).
Há quem queime os cabelos cortados, por praticidade, mas os crédulos invalidam esta ação dizendo-a geradora de “cabeça quente”. A pessoa fica nervosa, agitada, com cefaleia, sem motivo aparente. Recomenda-se assim jogar todo resíduo do corte numa moita de bananeira, para ficar com a “cabeça fresca”.
Alguns homens não gostam de cortar o cabelo com mulheres, supondo que a mão feminina sobre a cabeça masculina representa dali por diante um domínio, ou seja, o homem enfraquecido passará a ser subjugado pelas mulheres, decerto uma sobrevivência hodierna do mito de Sansão.
![]() |
Trança em palhaço de folias de Reis: São Sebastião da Vitória (São João del-Rei), 27/01/2014.
|
| Trança em caboclo da Guarda Divino Espírito Santo, Bairro Nova Cintra, Belo Horizonte/MG. 27/04/2014. |
| Senhor dos Passos, com belos cabelos cacheados. Passinho da Rua Padre José Maria Xavier, São João del-Rei/MG, 17/04/2014. |
![]() |
| Murici-branco. Chapadão, Serra de São José. Tiradentes/MG, 31/05/2014. |
| Jaborandi-verdadeiro. Brumado de Cima (São João del-Rei/MG). Mata ciliar de um córrego local,11/07/2015. |
![]() |
| Jaborandi-falso. Pombal (São João del-Rei/MG). Mata ciliar do Rio das Mortes, 12/04/2014. |
![]() |
| Mecha de cabelo ofertada na 'Sala dos Milagres', como ex-voto. Santuário da Santíssima Trindade, Tiradentes/MG. 14/06/2014. |
- Fotografias: Iago Christino Salles Passarelli (palhaços; jaborandi-verdadeiro); Ulisses Passarelli (Sr. dos Passos, jaborandi-falso, murici, ex-voto)
[1] Um anúncio do antigo jornal O Repórter, n.23, de 27/06/1907, publicado em São João del-Rei, dizia expressamente: "A JABORANDINA é a locção mais preferida pelos freguezes do Salão Santos; extingue por completo a caspa; á venda neste salão." Acervo da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida.
- Revisão e acréscimos: 25/12/2025.





São detalhes importantíssimos para o nosso conhecimento!
ResponderExcluirParabéns, Ulisses!
Parabéns por esta iniciativa que desvenda e mostra o quanto é importante o nosso folclore!
ResponderExcluirA essência escondida nos detalhes.
Valeu amigo!
Miranda.
O cabelo é um vasto tema folclórico: poder-se-ia falar dos tipos de corte e penteado (cóqui, trança, rabo de cavalo, maria-chiquinha, trepa-moleque), as cores, o anedotário sobre o careca, etc. O folclore é uma surpresa em cada tema, uma viagem em cada pesquisa. Grato pelas visitas e comentários. Grande abraço, Miranda! Dia que formos na serra de volta em passeio te mostro o murici-branco citado no texto.
Excluir