Muitas são as estórias que lhes rodeiam e tematizam. Algumas singelas revelam o sofrimento dos escravizados; outras, pendem a revelar a perspicácia em vencer obstáculos. Neste contexto folclórico que ora se aborda, as questões racistas e discriminadoras felizmente passam longe. O conteúdo valoriza a sua contribuição étnica, cultural, humana, religiosa, social e moral.
Não é raro que estes personagens venham com o epíteto de "pai", que tal como o de avô, já citado, denota carinho, proximidade, confiança, parentesco, proteção, filiação, ligação e sintonia.
Dentre tantos nomes um dos mais populares dentre os chamados pretos velhos é o de Pai João, tema desta postagem. Há pelo menos quatro sentidos para a denominação em foco. Passemos em rápida revista cada um deles.
01- Guia de umbanda, entidade espiritual de terreiro de matriz africana:
02- Personagem de algumas Queimas de Judas:
![]() |
Pai João tomando conta da Chácara do Judas. São João del-Rei, Centro. Foto: Maria Aparecida de Salles, 1999. |
![]() |
Pai João na Folia de Reis de Cunha/SP, déc.1940. Fonte: ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore Nacional. São Paulo: Melhoramentos, 1964. |
Canto de congado na chegada ao local onde se serve o desjejum.)
Um exemplar de Pai João tematizando um conto popular colhido em 1997 do saudoso José Cândido de Salles ("Zé Cristino Boiadeiro"), morador de Santa Cruz de Minas, mas natural de uma fazenda na Serra Velha, zona rural de Antônio Carlos. Nesta estória de delicioso sabor popular, Pai João se posta como adivinho e por pouco se livra de uma terrível encrenca. Ei-lo:
Com aquelas curiosas expressões Mãe Maria sabiamente alertava que adivinhar ele não tinha capacidade e poderia colocá-lo em encrencas. Não ia dar certo. Acabaria mal.
Mas não lhe deu ouvidos. Perto dali era um pouso movimentado de tropas que levavam a produção dos campos para a corte. Pai João começou a agir. Ficou o dia todo vendo a movimentação e se achegou aos tropeiros, ganhou confiança. De ouvidos atentos ouviu eles conversarem que tinham de entregar aquele grande carregamento urgente no dia seguinte, sob pena de severo castigo e prejuízo, fizesse chuva ou sol. Esperou eles dormirem e pôs seu plano em ação.
Correu em casa buscou um cincerro[3] e tirando no mato um pedaço de cipó, com ele amarrou-o ao pescoço da madrinha[4] e saiu juntando os animais cargueiros do pasto vizinho ao pouso para bem longe. Depois se recolheu. Com a barra do dia apontando, logo um tropeiro deu o alerta que os animais tinham sumido. A agitação foi grande e não faltaram comentários sobre os castigos que o rei lhes daria pelo atraso da entrega.
Pai João já estava por ali. Ficou esperando a hora certa até que soltou a sugestão, que era capaz de adivinhar onde a tropa estava. Os tropeiros se assanharam. Mas ele se fez de difícil e os homens lhe ofereceram recompensas: uma boa porção de cada gênero que eles iam carregando.
Pai João falou assim:
Ele baixou a cabeça, entristeceu o semblante, se viu em apuros. Como não tinha saída, lembrou de sua esposa:
E assim, aclamado, aplaudido, respeitado, Pai João voltou cheio de muita riqueza e quando Mãe Maria perguntou o que ia fazer com tanto dinheiro, respondeu:
![]() |
Cachimbo de escravo. Caquende (São João del-Rei/MG). |
![]() |
Cachimbos de escravo. Três Praias - Serra do Lenheiro (São João del-Rei/MG). [2] |
Créditos - Texto e desenhos de cachimbos: Ulisses Passarelli. - Fotografias: conforme consta nas respectivas legendas. Notas - Revisão: 01/08/2025. [1] Um fato digno de nota observamos no distrito de São Gonçalo do Amarante (São João del-Rei) onde algumas pessoas, a rigor católicas, conservam em suas casas, em geral na estante da sala entre objetos comuns, uma imagem artesanal de um preto velho típico da cultura popular, a que chamam indistintamente de "Pai João". Não é um gongá. A aparência é de um simples bibelô de prateleira, mas contém em verdade e para além superficialidade um sentido simbólico profundo. Dizem: "é bom ter um Pai João em casa. Espanta os males..." [2] Obs.: os cachimbos desses desenhos foram encontrados ao acaso, como achado de superfície, em antigas áreas de mineração aurífera por Luiz Antônio Sacramento Miranda, em cascalheiras (Três Praias) e grupiara (Caquende). São peças artesanais em barro, preservando apenas o fornilho (falta o pito). Mesmo que não se possa historicamente provar que pertenceram a pessoas escravizadas, na cultura popular, cachimbos deste tipo quando porventura são vistos são imediatamente rotulados de "cachimbo de escravo". Atualmente estes cachimbos encontram-se sob a guarda do Museu Municipal Tomé Portes del-Rei, já com o devido reconhecimento oficial por meio de Inventário de Patrimônio Cultural (Acervo Arqueológico e Paleontológico
do Museu Municipal - IPAC/2024; Decreto Municipal nº11.558, 16/12/2024). |
Nenhum comentário:
Postar um comentário