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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Ar, terçol e bonitinha... que combinação é esta?

Boas e más forças nos chegam pelo ar. É o que assegura a crença popular.“Bons ares te trazem!”, dizemos alegremente quando chega-nos uma visita desejável e/ou providencial. Por outro lado, diante de uma cisma, logo se diz: "tem uma suspeita no ar..." 

Existe “ar” de tudo: ar dos olhos, ar de gripe, ar de inveja, etc., cada um afetando o que traz na própria designação, conforme a influência do meio etéreo e das poeiras que carrega. O “ar da noite” é aquele ambiente sombrio típico do anoitecer, com a queda da temperatura, brisa fresca, diminuição da luminosidade. O povo se precavê buscando então agasalho. Os antigos evitavam sair fora da casa, pois é o ar propício para se pegar um resfriado. Traz também os espíritos noturnos, assombros. Por isto fecham-se portas e janelas a partir das 18 horas, “hora da Ave-Maria”, tempo das almas, rezando-se a Nossa Senhora para livrar a casa dos males trazidos pelo ar da noite.

A crença no ar como transmissor de malefícios e doenças é bastante antiga e arraigada. No começo do século XIX a Câmara de São João del-Rei andaram às voltas com medidas que visassem combater uma epidemia que grassava a então vila. As autoridades convocaram os "professores desta Vila de Cirurgia e Medicina que por ora há no país para assentarem no melhor meio e modo da saúde pública." Os mesmos deram as orientações e os vereadores o determinaram em edital para a população: "farão fogueiras todas as noites de espaço em espaço nas quais farão queimar hervas aromáticas como são as resinosas, rosmaninhos, manjericão do campo, pinheiros e coqueiro da serra, sassafrás, disparar tiros, queimar pólvora em casas, lançar vinagre em ferros em brasa, tomar ponxes e vinagradas quentes, e uso de vegetais adubados com bastante vinagre, o que tudo foi assentado pelos ditos professores e se continuará durante a dita epidemia em refrigério e benefício dos corpos."

Está claro pela citação acima a intensão de produzir fumaças e vapores que por seu odor forte supostamente afastariam a causa da doença. Ainda hoje sob o rito da incensação, reside outrossim o objetivo de afastar os males.

Em Santa Cruz de Minas, dona Elvira Andrade de Salles benzia os ares da seguinte forma:

"(Fulano...), criatura de Deus, Deus quem te criou, Deus quem te gerou, Deus quem te livre dos males, dos ar ruim que seu corpo entrou: ar do sol, ar da lua, ar das estrelas, ar dos males, ar do dia, ar da noite, de todas as dores, todos os males, todos os ar ruim que tiver no teu corpo, que vai tudo pelas ondas do mar, com os poderes de Deus, da Virgem Maria, das três pessoas da Santíssima Trindade, com São Clemente. Como Deus e São Clemente não mente, essas dores, esses males, esses ar ruim que tiver no teu corpo, não há de ir adiante. Nossa Senhora do Desterro, que desterre esses males, esses ares e mande pelas ondas do mar. Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo, amém!"

Um dos tipos de ar, o ar de vento, que se manifesta como uma rajada, costuma segundo a crença, causar um lesão nodular nas pálpebras, com pequena elevação da pele, devido ao vento forte batendo nos olhos. Causa então o terçol, curando-se em geral por meio de benzeção. É dolorido e causa irritação local. Na verdade o terçol é um processo infeccioso.

Há porém outras formas de se tratá-lo na cultura popular. O tratamento tradicional para o terçol, terçolho ou hordéolo é feito passando-lhe uma aliança de ouro, que deve previamente ser esfregada sobre a pele em qualquer parte do corpo, até ser aquecida pela fricção e imediatamente se põe sem atritar sobre o nódulo. Ao esfriar repete-se, e assim, indefinidamente. Acredita-se que o calor do corpo transmitido pelo ouro cure o mal. Também acreditam que na falta da aliança serve esfregar-se bastante o dedo sobre uma superfície qualquer, até a pele aquecer por atrito e imediatamente aplicar a parte digital aquecida sobre o terçol.

Outra forma é esfregar sobre o terçol um dente de alho cortado, para que seu sumo molhe o local com o cuidado de não esbarrar no interior do olho, devido a grande ardência que causa.

Existe ainda a aplicação popular de arruda, macerada num copo com água filtrada, e aplicada por meio de algodão limpo, lavando as pálpebras afetadas. O povo acredita que se esse copo com água de arruda de molho passar a noite no sereno, será mais efetivo.

Uma simpatia difundida em São João del-Rei é passar sobre o olho afetado pelo terçol o rabo de uma gata duas vezes, em forma de cruz. Na mesma cidade outras simpatias são difundidas contra este mal; pingar nos olhos algumas gotas de "leite de peito", assim chamado o leite materno humano. Outra receita é esfregar sobre o terçol três grãos de milho e a seguir jogá-los por sobre os próprios ombros para trás, sem ver onde cairá, na direção de um galinheiro. Não se deve olhar para trás. As galinhas comendo o milho, "comem" também a infecção, uma forma de magia simpática por transferência do mal.

Um tipo especial de terçol é a chamada bonitinha, bolinha ou joaninha. Manifesta-se de forma muito semelhante, pelos sinais e sintomas, mas não é gerada pelo ar de vento. A bonitinha é causada quando se está comendo algo e uma mulher grávida vê o alimento e não lhe é oferecido. Basta outrossim a grávida desejar aquela comida e não pedir por vergonha que também se pega a bonitinha nos olhos. Cura-se com uma simpatia, pedindo comida por caridade na casa de três mulheres chamadas Maria. Prende-se esta superstição ao tabu das gestantes.

Por fim é necessário ressaltar que este blog não incentiva nem recomenda a execução das técnicas e remédios da medicina popular, devido aos eventuais riscos à saúde. Um médico deve ser sempre procurado. Apenas registra-se as práticas folclóricas pelo seu valor etnográfico e como mecanismo de valorização da cultura popular, alertando para que o uso pode gerar malefícios para a saúde. 


A seta indica a presença de sinais de um terçol, 
segundo entendimento da cultura popular. 

Referências Bibliográficas

GAIO SOBRINHO, Antônio. São João del-Rei através de documentos. São João del-Rei: UFSJ, 2010. 260p. p.111 e 112.

Notas e Créditos

*Obs.: informações colhidas em São João del-Rei (1999; 2014) e Santa Cruz de Minas, (1997).
** Texto: Ulisses Passarelli
*** Fotografia: Iago C.S. Passarelli 

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