Apenas com o objetivo descritivo de repassar algumas informações obtidas o presente texto olha para trás à procura dos confetes passados, das serpentinas de outros tempos.
Uma característica do carnaval antigo era o entrudo e de tão forte na folia momesca se tornou como que seu sinônimo, embora fosse apenas um de seus atrativos. Constava de um jogo alegre de água (em bacias, baldes ou bisnagas), polvilho ou farinha, perfumes, e todos terminavam lambuzados. Os perfumes eram acondicionados em vesículas de cera em forma de limão ou laranja que se rompiam ao chocarem contra o corpo de um circunstante. Mais tarde foram trocados por borrachinhas contendo a água de cheiro.
Era costume muito arraigado. O Código de Posturas são-joanense proibia o entrudo e o comércio das laranjas e limões de cheiro [1].
A imprensa também combateu este jogo [2] : “(...) reviveu até o antigo e nunca assaz condenado entrudo, com limões de cheiro, jarros e bacias d’água.”
Pode-se rastrear a tradição nos anúncios dos jornais para o carnaval [3]: “Bisnagas de todos os tamanhos, sortimento colossal na Charutaria do Commercio. – Rua Moreira Cesar, 10. (...) Borrachinhas para limão, por atacado e varejo na Charutaria do Commercio .”
Houve proibições e ação policial no sentido de coibir o arraigado costume [4]: “o doutor Alvaro Correa Bastos Junior, Delegado de Policia da Comarca de S.João d’El-Rey, Minas Gerais, etc., FAZ saber, para conhecimento dos interessados, que é prohibido o jogo de entrudo, e que serão estrictamente observadas as Posturas Municipaes”. Em 1907 uma página jornalística comemorava[5]: “Felismente foram, de todo supprimidos os limões e esguinxos d’agua que tanto prejudicavam o folguedo carnavalesco. Ainda bem.”
Mas o entrudo não se extinguiu assim tão rápido. O comércio dispunha de artigos nele usados [6]: “Carnaval. Borrachinha para limões, encontram-se á venda no Bazar Japonez. R.Moreira Cezar, n.10, S.João d’El-Rey.” Este anúncio foi repetido na edição seguinte do mesmo jornal, do dia 6, e uma nota intitulada “carnaval”, deu conta de que o “malsinado” entrudo foi vigoroso, pelas bacias d’água e célebres limões de cera e borracha, atirados a torto e a direito sobre qualquer transeunte desprevenido. Comenta ainda da música executada, “no celebre corêto da rua Moreira Cezar, com as bambinelas de baeta e arcadas de bambus para attrair o povo”, taxando-as de caiporismo. Mais uma edição adiante critica o desânimo e desorganização do carnaval daquele ano: “Nem ao menos o zabumbar de um Zé Pereira, animado tão comum em outras localidades de menos importancia, tivemos este anno. Em compensação, porém, o entrudo tocou as raias do exaggero: agua em abundancia, supplantando, quasi por completo, o jogo de confetti, sempre mais agradavel e divertido.”
Era uma fase de transição. Ainda existia o jogo de água, farinha e perfumes, mas perdia força a cada dia, sob o incentivo às batalhas de confetes e serpentinas, bem como os desfiles de clubes organizados, que viviam de forma concomitante ao entrudo. Eis algumas citações:
"Carnaval. É hoje o 1º dia do tríduo carnavalesco, tríduo do Momo, o rei da folia e da festança. Desde Domingo passado que os prestitos do immortal Zé Pereira, tem se succedido, cada qual o mais chibante e apparatoso disputando a victoria pelo chic, e numero de socios, uns ostentando asseiados carros, vistosos animaes e outros a pé, sempre em alegria cresente e animadora, fazendo crer que hoje e nos seguintes dias, proprios, mais se enthusiasmarão, honrando e homenageando o deus Momo. Os clubs até hoje organizados são 115, 109, 13 de Maio e do Calúbra. Eia, rapaziada! A alegria, a folgança!" [7]
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(...) "Á noite a concurrencia de populares se fasia notar principalmente na Rua Moreira Cesar, onde se erguia um coreto para a banda “Ribeiro Bastos” executar suas escolhidas peças. (...) As batalhas de confetti foram até certo ponto intensas e renhidas e do mesmo modo as de lança-perfumes. (...) A policia não permitiu no ultimo dia o corta-jaca e o maxixe no Municipal, evitando assim algumas dos rolos do costume". [8]
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"Batalha de Confetti. Na rua Municipal, 18-22 h, com a banda do quartel". [9]
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"Carnaval. O Bazar Japonez recebeu um grande sortimento de lança-perfume, confetti, serpentinas, mascaras e novidades proprias para esses folguedos, que está vendendo muito barato. Rua Municipal, 5". [10]
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"Na confluencia das Ruas Direita e Moreira Cezar, a municipalidade fez armar um artistico coreto onde se ouvia uma fanfarra de um dos nossos batalhões do Exercito (...) As batalhas de confetti e lança-perfumes feriram-se com galhardia e denòdo ..." [11]
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"Club X. Os valentes carnavalescos, no dia 2 deste, já deram o panno de amostras com um retumbante ZÉ PEREIRA com vários carros e puxado pela banda de musica do 11 regimento uniformizada a caracter". [12]
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"O apreciado Clube X realizou Quinta-feira um animado Zé Pereira, que percorreu as principaes ruas da cidade. Na movimentada passeata saiu acompanhado de numerosos automoveis e precedido de bandas de clarins e de musica, um dos bellos carros allegoricos do carnaval do ano passado".[13]
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"Zé Pereira. A 31 do anno passado, effectuaram os sympathicos ranchos carnavalescos desta urbe, Custa mas Vae e Zero, uma passeata pelas ruas desta cidade em saudação ao povo sanjoanense".[14]
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–“Approxima-se o carnaval. Usem o
lança-perfume Vlan, o mais perfumado e inoffensivo, prefiram as serpentinas
David, as suas cores são as mais vivas e o seu papel o mais resistente”. [15]
Enfim são muitas as provas do esplendor daqueles carnavais, explícitas em citações jornalísticas, apenas algumas das quais aqui selecionadas para exemplificar. Também são abundantes as informações orais de antigos foliões do momo.
Fala-se nos blocos de índios, ou seja, de pessoas com fantasias emplumadas, armadas com flechas e arcos, lanças e machadinhas, tomando nomes de tribos conhecidas e desfilando como se simulassem hordas, com tal realismo que metiam medo na criançada.
Os zé pereiras que sobreviveram até cerca da década de 1950 se enchiam de bonecões macrocefálicos, os populares “cabeções”, girando e balançando seus braços longos e molengas, no gingado característico, revividos a partir do ano 2000 pelo afamado “Mestre Quati” (Benedito Reis de Almeida).
Pequenos grupos se divertiam pelas periferias fazendo desfilar o boi, tal como o do falado “seu Inácio”, dos lados do Betume (imediações da Igreja de São José Operário, Bairro Tijuco), além de outros. Sim, aquele mesmo do bumba-meu-boi, desgarrado entre batuqueiros dando arrancos e chifradas rua afora, sempre atiçado e pondo moleques a correr.
Ali pelas Águas Férreas surgia o urso, ou melhor, um folião de mais ânimo metido sobre um quente traje felpudo, de encardida estopa, imitando a figura de um urso, fazendo-se adestrado por um homem que o fazia dançar, preso numa corda, tangido a chicote. Figura tradicionalíssima, conhecida no carnaval de outras partes do Brasil, mormente no Nordeste, onde ainda vive. Evoca os velhos espetáculos de rua da Europa quando artistas de rua exibiam esses animais nas praças e feiras, depois de os amansar sob terríveis torturas, como a televisão já mostrou.
A nêga maluca era um homem com peruca desarranjada, pele tisnada de carvão, boca bem borrada de baton, seios postiços exagerados, ancas recheadas de travesseiro, para amparar as eventuais quedas e fazê-la uma figura ainda mais desajeitada. De andar trôpego, acorria a entregar um boneco nos braços de seu pretenso cônjuge, alegando sua paternidade na clássica frase: “toma, que o filho é seu”. Sempre refugada, depois de muita pilhéria e afetamento, saía a curiosa personagem com sua charanga acompanhante a caçar outro pai para seu filhinho, depois de arrecadar uma oferta daquele, qual pensão alimentícia, revertida à beberagem do grupo. A fantasia permanece mas sem o enredo do passado.
Os animadíssimos blocos de sujos, com mascarados de toda estirpe, brincavam por aí livremente. Não canso de dizer que são filhos do zé pereira, seus legítimos herdeiros, como o querido e atual Bloco do Lesma Lerda é o seu neto.
O fim dessa era vem nos meados do século XX, quando toda a atenção se converge para os bailes carnavalescos de clubes e suas matinês, além do aparato das grandes agremiações - escolas de samba, ranchos e cordões, que inauguram um novo tempo no carnaval da cidade. Mas isto é assunto para outro texto...
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Boi de carnaval, Águas Férreas, Bairro Tijuco, São João del-Rei/MG, 05/03/2000. |
Notas e Créditos
* Texto: Ulisses Passarelli, 17/07/2007
** Obs.: os jornais citados nesta postagem foram todos publicados em São João del-Rei e fazem parte do acervo da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida.
*** Revisão e acréscimos em 22/03/2017
[1] - CÓDIGO DE POSTURAS DE SÃO JOÃO DEL-REI, 1887, art.153.
Referências Hemerográficas
[2] - O Resistente, n.374, 21-23/02/1901.
[3] - O Repórter, n.6, 26/02/1905.
[4] - A Opinião, n.129, 15/02/1912.
[5] - O Repórter, n.2, 11/02/1907.
[6] - O Repórter, n.94, 03/02/1910.
[7] - O Repórter, n.4, 25/02/1906.
[8] - A Tribuna, 21/02/1915.
[9] - O S.João d’El-Rey, n.101, 19/02/1922.
[10] - O S.João d’El-Rey, n.101, 19/02/1922.
[11] - A Bigorna, n.1, 08/03/1923.
[12] - O S.João d’El-Rey, n.43, 06/01/1921.
[13] - A Tribuna, n.507, 06/01/1924.
[14] - A Tribuna, n.1.006, 05/01/1930.
[15] -
A Tribuna, n.455, 14/01/1923.
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