“Que é
folclore? É a reunião residual de todas as culturas, desde o paleolítico ao
avião a jato.” (...) “No folclore nascemos, vivemos e morremos. É
o clima natural, orgânico, diário, familiar. É a ciência do povo. Saber mais do
que o povo é privilégio do Espírito Santo.”
(Luís da Câmara Cascudo, 1981)
Antes de qualquer coisa lembro de uma frase do
educador e folclorista Tião Rocha, ouvida no seminário Folclore e Parafolclore,
promovido em Belo Horizonte pela Comissão Mineira de Folclore, a 16 de março de
2000: “folclore não se ensina, mas se
aprende.”
A palavra FOLCLORE surgiu do anglo-saxônico “FOLK” +
“LORE”, o saber popular (tradicional), o conhecimento (não institucionalizado)
do povo. Esta palavra foi criada pelo inglês Willian John Thoms, que a fez
publicar num artigo, usando o pseudônimo de Ambrose Merton, no jornal londrino The Athenaeum, edição nº 982, de 22 de
agosto de 1846.
Thoms era preocupado com o conhecimento e preservação
das tradições, até então chamadas indistintamente de “antigüidades populares” e
“literatura popular”. Ao seu tempo, tais manifestações eram consideradas como
fatos muito velhos, exóticos, curiosos, que se devia buscar conhecer logo antes
que sumisse de vez. O neologismo visava unificar sob um só termo o conceito já
razoavelmente conhecido, mas que só a partir de então ganhava valor, ainda que
lentamente. Por ser o primeiro que chamou a atenção sobre o assunto e como
criador da palavra mais aceita (não a única), é considerado o “Pai da
Folclorística” . A data 22 de agosto é considerada o “Dia do Folclore” e agosto
o “Mês do Folclore”.
Por Folclorística, Folclorologia, Ciência do Folclore
ou Folclore (com maiúscula) se
entende o ramo da ciência humana dedicado ao estudo do folclore (que com minúscula se entende a matéria estudada, o
conteúdo disciplinar). Por anos a fio correu a inútil discussão acerca do
Folclore ser um ramo independente ou uma disciplina, nesse caso, segundo uns,
filiado à antropologia, segundo outros, à sociologia. Cada qual, “puxando a
sardinha para a sua lata”, criticava a metodologia de pesquisa de outro e
tentava impor um “modelo ideal”. No contexto dessa demanda teórica os estudos
folclóricos ficaram de fora das salas de aula em geral, sobretudo das
universitárias, o que representou numa última análise, em prejuízo para todos.
A princípio o conceito de folclore se restringia
apenas às manifestações de ordem espiritual (intangíveis) e as narrativas
populares. Com o passar dos anos contudo passou a abarcar também as físicas, ou
seja materiais. Hoje é aceito também as manifestações por assim dizer de
surgimento mais recente na sociedade e não apenas as antigas. Com isto o campo
para estudos se ampliou e os conceitos progrediram e tem sido constantemente atualizados
pelos teóricos da Folclorística em seus textos e discussões.
Hoje se entende por folclore o seguinte:
Conjunto
das criações culturais de uma comunidade, baseado nas suas tradições expressas
individual ou coletivamente, representativo de sua identidade social.
Constituem-se fatores de identificação da manifestação folclórica: aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade, funcionalidade.
(Carta do Folclore)
Estes fatores supracitados são os primários
(essenciais). Roberto Benjamim soma a eles, em caráter secundário
(complementar) a espontaneidade e a regionalidade. Outros mais, outrora
tidos como principais, hoje foram relativizados pela renovação de conceitos e
no máximo podem ser considerados terciários (suplementares), posto que podem ou
não surgir: transmissão oral, antiguidade e anonimato.
Considera-se como campo para pesquisas folclóricas:
- Crendices e
superstições (concepções de mundo e vida; cultos e devoções populares;
cerimônias e rituais; tabus; profecias e previsões; mundo sobrenatural; ...)
- Usos e costumes
(trajes e adornos; costumes relativos à vida privada e à pública; costumes
fúnebres; medicina popular; costumes relativos à vida funcional, ao comércio,
ao transporte, à história, ao direito; ...)
- Linguagem popular
(dialetos; metáforas; frases-feitas; formas de tratamento; linguagens
especiais; métrica e versificação; ...)
- Lúdica (jogos em
geral; danças e bailes; cortejos; autos; festas tradicionais; títeres;
pantominas; cavalhadas dramáticas; coreografia; ...)
- Artes e técnicas
(rudimentos de arquitetura; escultura; ex-votos; cerâmica; desenho, pintura,
decoração e xilogravura; manufaturas; instrumentos musicais de uso nos
folguedos; engenhocas e instrumentos de trabalho; ...)
- Música (de
representações populares; de atividades profissionais; infantis; religiosas;
conjuntos instrumentais; gêneros de música folclórica; ...)
- Literatura oral
(poesia popular; autos e peças populares; novelística; cancioneiro; romanceiro;
enigmas populares; literatura de cordel; pasquins; ...)
- Folclore infantil
(brinquedos em geral; crendices e superstições infantis; usos e costumes
infantis; linguagem infantil; lúdica e teatro infantis; parlendas; ...)
Na amplitude enumerada, somos todos portadores de
folclore e não há vergonha alguma nisso. Pelo contrário, encontrar a tradição
em nós mesmos é honroso. O mal entendimento sobre o conteúdo folclórico de
nossa vida, seja pela falta de um sistema educacional que o projete na escola,
seja por equívocos de parte da mídia ao divulgá-lo, fizeram com que, ao passar
dos anos, a palavra “folclore” se desgastasse com o mal emprego, ganhando um
cunho pejorativo de algo de pouco valor cultural, da ralé, desqualificado de
seu saber e sinonimizado com a mentira. Isto é uma lástima posto que noutros
tempos o folclore já foi um bom instrumento para ajudar a desenvolver o
nacionalismo e a aprimorar sentimentos cívicos, o que também já foi motivo de
controvérsias igualmente inúteis.
Em razão dessas distorções e incongruências, muitos
estudiosos atualmente evitam usar a palavra folclore, considerada desgastada,
substituindo-a por “cultura popular”, que tem prevalecido. Sem adentrar nas
discussões teóricas a respeito, friso esta citação da Carta do Folclore:
“Ressaltamos que
entendemos folclore e cultura popular como equivalentes, em sintonia com o que
preconiza a UNESCO. A expressão cultura popular manter-se-á no singular, embora
entendendo-se que existem tantas culturas quantos sejam os grupos que as
produzem em contextos naturais e econômicos específicos”.
Este
sinônimo é muito útil por equilibrar o folclore num vértice do triângulo
cultural, composto pela cultura popular, pela cultura de massa e pela cultura erudita.
Entende-se agora que não é possível,
nem sequer sadio, isolar o folclore da influência de outras vertentes
culturais, como se pudesse ser embalsamado, engessado, posto sob uma redoma. Há
um permanente intercâmbio entre ele, como uma “cultura do popular” (Luís da
Câmara Cascudo) e as culturas massiva e erudita. Esta inter-relação de
elementos tem sido continuamente estudada e há correntes de pesquisadores que
defendem a adoção de medidas protecionistas ao folclore frente aos processos de
globalização. Porém, a visão apocalíptica do folclore, como em vias de total
extinção é superada pois o mesmo já deu muitas provas do seu caráter de
resistência cultural além da forte capacidade adaptativa.
Bibliografia básica:
- Salvaguarda do
Folclore, UNESCO, 16/11/1989. In:
Boletim nº 13 da Comissão Nacional de Folclore, Rio de Janeiro, abr./jun.1993.
- Inteligência do
Folclore, Renato Almeida, 1957.
- Carta do Folclore
Brasileiro, Comissão Nacional do Folclore, revisão de 2004;
- Folk-lore.
(Transcrição do texto de Willian J. Thoms). Edição comemorativa do
sesquicentenário de criação da palavra folclore. Comissão Nacional de Folclore,
1996.
- Novas
perspectivas para o trabalho com o folclore, Roberto Benjamim, Anais do XI
Congresso Brasileiro de Folclore, 19-22/10/2004, Goiânia / GO.
|
Boneca de palha de milho, São João del-Rei / MG. |
* Texto: Ulisses Passarelli, ag.2007.
** Foto: Iago C.S.Passarelli, 2012.
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