É com muita satisfação que se inicia através desta estória, a postagem de narrativas populares _ contos, fábulas, lendas, mitos e causos _ que fazem parte do universo do folclore, mais especificamente da literatura popular, no caso, a oral, conservada geração após geração.
No passado, antes do advento da televisão, quando as novelas e outros programas hodiernos não tomavam das famílias todo o tempo de convívio e conversa, as mães, avós, padrinhos, amigos se socializavam muitas vezes, compartilhando narrativas, lembranças, que construíram parte do imaginário de muitas crianças, contribuindo eficazmente no seu processo educativo. Por todas as partes do mundo, a literatura oral é uma riqueza da cultura popular, eivada de regionalismos, mas também paradoxalmente universal em seus temas. Transmitem crenças, interdições, conselhos, lições de vida, entretenimento, identidade e origens.
O título escolhido evoca também a oralidade, pois é um ditado tradicional.
O conto que ora apresento para inaugurar estas novas postagens, ouvi-o algumas vezes de minha sogra, Elvira Andrade de Salles, em Santa Cruz de Minas / MG, pelo fim dos anos noventa. Narra um fato extraordinário acontecido com um rapaz bastante preguiçoso que adorava comer queijo e banana. Redigi com minhas palavras, sem contudo adulterar nada dos detalhes e desenrolar da narrativa original e o ilustrei com um esboço que ousei rabiscar, como fazia na infância.
Acompanhem, que em breve novos posts com esta temática estarão disponíveis no blog, para apreciação, estudo e registro.
João Queijo-banana
Este é um Conto de Encantamento, segundo a terminologia adotada por CASCUDO, que explanou sobre eles:
"Caracteriza-os o elemento sobrenatural, o encantamento, dons, amuletos, varinha de condão, virtudes acima da medida humana e natural. (...) Entre todos os contos, os de Encantamento são os que apresentam maior percentagem europeia. Quase todos nos vieram de Portugal, já possuindo convergências de outras estórias que ainda mais se diferenciaram no Brasil."
Ainda segundo suas palavras, muitas vezes quem vence no final é ...
"o amarelo(*), o mais triste e fisiologicamente indicado para a mais lógica de todas as derrotas. (...) os auxílios são sempre extra-terrenos. O herói não tem maiores aliados dentro da humanidade. Os objetos mágicos decidem."
Assim o nosso João Queijo-banana; assim o vencedor na estória "O Preguiçoso e o Peixinho", que o citado autor transcreveu, sendo uma versão baiana do presente conto, colorido com outra desenvoltura mas com a mesma essência: um preguiçoso salva um peixe mágico que lhe propicia favores extraordinários, que garantem seu casamento com a princesa do reino. Eis o tema, o âmago da estória, conhecida também de acordo com CASCUDO em Portugal ("João Mandrião", "O Peixinho Encantado", "O Preguiçoso da Forneira", "Pedro Preguiça"), na Rússia, Grécia, Itália, Alemanha e América Espanhola.
* * *
João era o único filho de uma senhora
que fazia de tudo para sustentar a casa. Enquanto trabalhava muito, ele, muito
preguiçoso, só queria comer muito queijo e banana, que adorava. Daí seu
apelido. Certo dia porém sua mãe adoeceu.
Acamada não podia mais trabalhar para o sustento da casa e João Queijo-banana teve
quer fazer sua parte. Resmungando foi buscar lenha para fazer o almoço.
Lá no mato decidiu cortar bastante
lenha pois assim não teria de voltar de novo para buscar mais. Fez um feixe
enorme, amarrado de cipó, mas mesmo com grande esforço não deu conta de
carregá-lo.
Cansado com o esforço, chegou ao
córrego para tomar água. Viu um peixinho se debatendo numa pequenina poça
isolada e prevendo que morreria logo pela ação do sol, resolveu pegá-lo. Soltou
o peixe no córrego e logo de uma sacudida do rabo afundou e tornou a emergir,
pondo a cabeça para fora da água, falou com João:
_ Muito, obrigado!
_ Você fala?!
_ Sim, sou um peixe encantado. E meu
agradecimento por ter me salvado é te conceder os pedidos que você quiser.
Basta pedir o que quiser e falar alto: “Valha-me, meu bom peixinho!”
_ Sendo assim, meu primeiro pedido é
carregar esse bruto feixe de lenha para casa porque eu não estou aguentando.
_ Sobe nele. Monta como se fosse num
cavalo. (João obedeceu). Agora fala a frase...
_ Valha-me, meu bom peixinho!
O feixe de lenha ganhou vida e de um
arranco danado, saiu estrada afora galopando e João Queijo-banana, montado nele
mal podia se segurar, com seus pinotes, qual um burro bravo.
No caminho a estrada passava diante
do castelo e da janela do alto da torre a tristonha princesa avistou a passagem
do estranho cavaleiro: que figura bizarra! Levantando um poeirão, lá ia o João
gritando, se esforçando pra não cair. A princesa não se conteve soltou muitas
gargalhadas.
Ocorre que ela sofria de terrível
melancolia, motivo pelo qual a muitos anos não dava um único sorriso. Seu pai
se preocupava muito com isso mas sentia-se impotente pois tudo que fora tentado
falhou. Quando o rei ouviu a filha dando risadas, correu para ver se era
verdade. Contentíssimo explicou-lhe o ocorrido e logo o rei colocou seus
soldados atrás de João, ordenando sua presença imediata no castelo.
Trouxeram-no de sua casa. O rei lhe
intimou a casar com sua filha, pois dera sua palavra que daria a mão da
princesa ao homem que a fizesse rir. Se recusasse teria de enfrentar a pena de
morte. Não tinha como escapar e João gostou
da ideia mas ficou muito preocupado porque sendo pobre teria de recepcionar a
toda a corte com um grande banquete no dia do casamento, marcado imediatamente.
Voltou para casa cabisbaixo. Contou o
ocorrido para sua mãe até que se lembrou do peixinho.
Chegou o dia do casamento. O reino
estava em festa e a hora se aproximava. A mãe de João Queijo-banana apavorada
pois já pensava na morte de seu filho, que não conseguiria fazer a festa
adequada. Mas ele a acalmou ...
_ Valha-me, meu bom peixinho!
Apareceu tudo pronto, num instante!
Roupas novas, mesa posta com fartura, tudo do bom e do melhor... O encanto
funcionou.
Houve a festa. Festança. João
casou-se com a princesa e viveu na riqueza o resto de sua vida.
Referências Bibliográficas
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil. 3.ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1984. 435p. p.256-273.
Notas e Créditos
* Amarelo: covarde, medroso, ocioso - conforme o contexto.
** Texto e desenho: Ulisses Passarelli
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