A exploração aurífera no Bairro Matosinhos, em São
João del-Rei/MG, é conhecida, sobretudo, pelos relatos de três viajantes
europeus: o comerciante inglês John Luccock, em 1818, o reverendo irlandês
Robert Walsh, em 1828 e o diplomata britânico Richard Burton, em 1867. Eis, a
seguir, os seus registros, que demonstram o abandono daquela atividade durante
o século XIX:
(...) Havia também nessa
propriedade, ruínas de uma grande lavra de ouro, que constava de uma parede
construída em través de um boqueirão, a título de dique para segurar as águas e
coar qualquer sedimento que essas trouxessem. Havia uma comporta para o esvaziamento
do dique sempre que fosse necessário, para que assim se pudesse retirar o
sedimento e extrair dele o ouro que acaso contivesse. A porção maior do paredão
era sustida por sólido aterro que lhe havia encostado, mas o trecho que
atravessava o leito ficara sem proteção, a fim de que servisse de escoadouro
para as águas, quando o dique estivesse repleto. Conquanto fosse o que gozava
de maior reputação naquelas paragens, o engenheiro que construíra nada entendia
de pressão de fluido. Construíra sua barragem com perto de trinta pés de
altura, doze de espessura na base e seis no topo; mas as fundações haviam sido
lançadas com insuficiente solidez e como que a fim de amarrar toda a obra, a
fiada superior compunha-se de pedras muito grandes, pesando de duas a três
toneladas cada qual e ali colocadas com enorme despesa. Um mecânico habilidoso
e prático perceberá facilmente que uma estrutura dessa espécie tinha que
rebentar na base logo que fosse aberta a água para dentro do dique; e o seu
custo total que perfazia, ao que me disseram, dezesseis mil libras, perdeu-se
num instante. (LUCCOCK, 1975)
Passamos pelo arraial de
Matosinhos (...) o lugar tinha tido outrora uma mina de ouro bastante
extensa. Para interceptar as partículas de ouro trazidas por um riacho da montanha,
havia sido construído um dique através de uma ravina; o seu construtor, porém,
não calculara a pressão da água e, após um prolongado período de chuvas, o
dispendioso dique se rompeu, fazendo desaparecer com ele, numa única noite,
todas as riquezas acumuladas à sua margem. (WALSH, 1985)
Mais acima está uma ponte
quebrada, que data do tempo em que Matozinhos tinha uma mina de ouro
florescente. A explosão de um poço (...) acabou com a mineração. (BURTON,
1942)
Não se sabe a localização exata desse dique (ou
ponte, como o chama Burton). O relato de Luccock, mais antigo e completo, diz
ainda, que a fazenda onde se situava a obra da mina, ficava em
um “profundo valado à beira de um regato diminuto mas límpido”, o que faz
supor antes no Córrego do Cala-boca, que propriamente no Ribeirão da Água
Limpa, bem mais caudaloso. Isto condiz com sua afirmação de que ficaria tal
construção do lado oposto da vila. Sobre a fazenda relata ainda que era grande,
ótima, desabitada por aquela época, que estava disponível para aluguel ou
venda, tinha excelente terra, açude, tanque para criar peixes, dispositivos
para aguadas e alimento de animais. Tinha um quarto de légua de testada e
indefinido comprimento, por continuar-se com terras devolutas. Seu valor de
venda era muito alto: um conto e duzentos mil réis, equivalente a trezentas
libras esterlinas.
Em 27 de junho de 1789 houve a concessão de seis ou oito braças de terra ao sargento-mor Luis Antônio da Silva, que pretendia edificar “na paragem do Ribeirão do Callaboca, por cima do rego da Sociedade do Barro Vermelho” [1]. Sobre o nome supra, em uma lista de sesmarias aparece uma concessão de terras a Luís Antônio da Silva, em outubro de 1771, então referido como alferes. Contudo ficava em “Alagoas do Piuhy” (oeste do estado), termo da vila de São José del-Rei (Tiradentes)[2].
Outras notícias sobre essa atividade no bairro
surgiram bem mais tarde, quando se idealizou construir a capital mineira em São
João del-Rei. Pelo final dos oitocentos, os estudos do engenheiro relator do
projeto, apontaram um vestígio da mineração nas margens do Ribeirão Água
Limpa:
Na sua margem direita existe
ainda, perfeitamente vizivel, o rêgo aberto pelos antigos mineiros para
conducção de suas aguas ás varzeas de Mattosinhos e do Porto para a lavagem do
ouro; os actuaes moradores do logar ainda viram, sobre o rio das Mortes, o
aqueducto de madeira que dava passagem ás aguas (ALMEIDA, 1893, p.13).
Este relato tem especial importância por mostrar que
daquele ribeirão, um rego trazia água para a vargem de Matosinhos e mais ainda,
por uma calha a água atravessava suspensa por sobre o leito fluvial para
lavagens auríferas na vargem do Porto. Uma empreitada desta estirpe, só se
justificaria graças a uma fartura intensa do nobre metal, senão bastariam
faisqueiras pouco dispendiosas. Supostamente esse rego é o mesmo citado linhas
atrás, que pertenceu à Sociedade do Barro Vermelho.
Ora, ainda hoje, nos fundos do conjunto habitacional
INOCOP, entre a via férrea e o rio, notam-se muitos monturos de cascalho remexidos,
escavações, vestígios claros da atividade extrativa, comuns a outras áreas de
mineração. Estes sinais se estendiam outrora mais acima, na área do próprio
conjunto de prédios, beira da Rua Amaral Gurgel e Avenida Sete de Setembro.
Esta área era brejosa e dizem moradores antigos que aí houve lagoinhas ou
grandes poças, outros sinais da mesma atividade, acumulando águas pluviais nas
depressões escavadas ou fazendo-a brotar dos lençóis freáticos.
A tradição oral de antigos ferroviários, diz que um
dos fatores que contaram para a retirada dos trilhos da Rua Amaral Gurgel para
o itinerário atual, não foi apenas o crescimento do bairro em redor da igreja,
mas também o fato de que a via férrea, ao atravessar aquela área embrejada
supracitada, tinha constante risco de acidentes, porque os dormentes afundavam
na terra barrenta e apodreciam com rapidez.
Considerando a retirada de água por rego é bom
lembrar que era prática muito comum, como se pode ver pelos vestígios na Serra
de São José, por exemplo, e ainda, o célebre Canal dos Ingleses, na Serra do
Lenheiro. No mais o desnível era o necessário para aproveitar a força da
gravidade, em uma época que não havia máquinas de bombeamento.
Um importante informe pessoal obtido em 30/11/2007 do Sr. José do Carmo Silva, o “Zé Pequeno”, que viveu sua infância no bairro, nas décadas de 1940-50, dá conta que havia um extenso rego que vinha de uma represa abandonada nas imediações da Árvore de Óleo / Ouro Preto, passava aproximadamente no traçado atual da Avenida Santos Dumont, por baixo do pontilhão do trem e depois pela Rua João Hallack. Corria água nele e o pessoal do matadouro jogava ali o sangue das reses, causando muito mal cheiro nas vizinhanças. Com o passar dos anos, diante da crescente ocupação urbana esse rego foi em parte manilhado e outro tanto entupido. O resto dos abates passou então a cair direto para o Ribeirão da Água Limpa, logo acima do pontilhão onde ficava o sangradouro. Quero crer que esse rego citado por Zé Pequeno seja verdadeiramente aquela primitiva benfeitoria mineradora mencionada nos parágrafos anteriores. Em fevereiro de 2009 uma parte de seu manilhamento estourou junto ao pontilhão da via férrea e velho o rego ficou evidente, mas logo foi reparado e de novo desapareceu sob o asfalto.
Garimpeiros que teimam em encontrar a sorte, aqui e
acolá, sempre existiram, mas o tempo das lavras em Matosinhos foi de fato o
século XVIII. Os viajantes da centúria seguinte garantiram que a atividade se
extinguira. Por esta razão não deixa de ser interessante o tardio requerimento
de José Teixeira Marques à Câmara, em 1901, buscando o privilégio de explorar
ouro, por cinco anos, no Córrego do Lenheiro, Ribeirão da Água Limpa e sua foz
no Rio das Mortes[3], portanto e inclusive em território
de Matosinhos.
A exploração aurífera no Bairro Matosinhos, em São João del-Rei/MG, é conhecida, sobretudo, pelos relatos de três viajantes europeus: o comerciante inglês John Luccock, em 1818, o reverendo irlandês Robert Walsh, em 1828 e o diplomata britânico Richard Burton, em 1867. Eis, a seguir, os seus registros, que demonstram o abandono daquela atividade durante o século XIX:
(...) Havia também nessa propriedade, ruínas de uma grande lavra de ouro, que constava de uma parede construída em través de um boqueirão, a título de dique para segurar as águas e coar qualquer sedimento que essas trouxessem. Havia uma comporta para o esvaziamento do dique sempre que fosse necessário, para que assim se pudesse retirar o sedimento e extrair dele o ouro que acaso contivesse. A porção maior do paredão era sustida por sólido aterro que lhe havia encostado, mas o trecho que atravessava o leito ficara sem proteção, a fim de que servisse de escoadouro para as águas, quando o dique estivesse repleto. Conquanto fosse o que gozava de maior reputação naquelas paragens, o engenheiro que construíra nada entendia de pressão de fluido. Construíra sua barragem com perto de trinta pés de altura, doze de espessura na base e seis no topo; mas as fundações haviam sido lançadas com insuficiente solidez e como que a fim de amarrar toda a obra, a fiada superior compunha-se de pedras muito grandes, pesando de duas a três toneladas cada qual e ali colocadas com enorme despesa. Um mecânico habilidoso e prático perceberá facilmente que uma estrutura dessa espécie tinha que rebentar na base logo que fosse aberta a água para dentro do dique; e o seu custo total que perfazia, ao que me disseram, dezesseis mil libras, perdeu-se num instante. (LUCCOCK, 1975)
Passamos pelo arraial de Matosinhos (...) o lugar tinha tido outrora uma mina de ouro bastante extensa. Para interceptar as partículas de ouro trazidas por um riacho da montanha, havia sido construído um dique através de uma ravina; o seu construtor, porém, não calculara a pressão da água e, após um prolongado período de chuvas, o dispendioso dique se rompeu, fazendo desaparecer com ele, numa única noite, todas as riquezas acumuladas à sua margem. (WALSH, 1985)
Mais acima está uma ponte quebrada, que data do tempo em que Matozinhos tinha uma mina de ouro florescente. A explosão de um poço (...) acabou com a mineração. (BURTON, 1942)
Não se sabe a localização exata desse dique (ou ponte, como o chama Burton). O relato de Luccock, mais antigo e completo, diz ainda, que a fazenda onde se situava a obra da mina, ficava em um “profundo valado à beira de um regato diminuto mas límpido”, o que faz supor antes no Córrego do Cala-boca, que propriamente no Ribeirão da Água Limpa, bem mais caudaloso. Isto condiz com sua afirmação de que ficaria tal construção do lado oposto da vila. Sobre a fazenda relata ainda que era grande, ótima, desabitada por aquela época, que estava disponível para aluguel ou venda, tinha excelente terra, açude, tanque para criar peixes, dispositivos para aguadas e alimento de animais. Tinha um quarto de légua de testada e indefinido comprimento, por continuar-se com terras devolutas. Seu valor de venda era muito alto: um conto e duzentos mil réis, equivalente a trezentas libras esterlinas.
Em 27 de junho de 1789 houve a concessão de seis ou oito braças de terra ao sargento-mor Luis Antônio da Silva, que pretendia edificar “na paragem do Ribeirão do Callaboca, por cima do rego da Sociedade do Barro Vermelho” [1]. Sobre o nome supra, em uma lista de sesmarias aparece uma concessão de terras a Luís Antônio da Silva, em outubro de 1771, então referido como alferes. Contudo ficava em “Alagoas do Piuhy” (oeste do estado), termo da vila de São José del-Rei (Tiradentes)[2].
Outras notícias sobre essa atividade no bairro surgiram bem mais tarde, quando se idealizou construir a capital mineira em São João del-Rei. Pelo final dos oitocentos, os estudos do engenheiro relator do projeto, apontaram um vestígio da mineração nas margens do Ribeirão Água Limpa:
Na sua margem direita existe ainda, perfeitamente vizivel, o rêgo aberto pelos antigos mineiros para conducção de suas aguas ás varzeas de Mattosinhos e do Porto para a lavagem do ouro; os actuaes moradores do logar ainda viram, sobre o rio das Mortes, o aqueducto de madeira que dava passagem ás aguas (ALMEIDA, 1893, p.13).
Este relato tem especial importância por mostrar que daquele ribeirão, um rego trazia água para a vargem de Matosinhos e mais ainda, por uma calha a água atravessava suspensa por sobre o leito fluvial para lavagens auríferas na vargem do Porto. Uma empreitada desta estirpe, só se justificaria graças a uma fartura intensa do nobre metal, senão bastariam faisqueiras pouco dispendiosas. Supostamente esse rego é o mesmo citado linhas atrás, que pertenceu à Sociedade do Barro Vermelho.
Ora, ainda hoje, nos fundos do conjunto habitacional INOCOP, entre a via férrea e o rio, notam-se muitos monturos de cascalho remexidos, escavações, vestígios claros da atividade extrativa, comuns a outras áreas de mineração. Estes sinais se estendiam outrora mais acima, na área do próprio conjunto de prédios, beira da Rua Amaral Gurgel e Avenida Sete de Setembro. Esta área era brejosa e dizem moradores antigos que aí houve lagoinhas ou grandes poças, outros sinais da mesma atividade, acumulando águas pluviais nas depressões escavadas ou fazendo-a brotar dos lençóis freáticos.
A tradição oral de antigos ferroviários, diz que um dos fatores que contaram para a retirada dos trilhos da Rua Amaral Gurgel para o itinerário atual, não foi apenas o crescimento do bairro em redor da igreja, mas também o fato de que a via férrea, ao atravessar aquela área embrejada supracitada, tinha constante risco de acidentes, porque os dormentes afundavam na terra barrenta e apodreciam com rapidez.
Considerando a retirada de água por rego é bom lembrar que era prática muito comum, como se pode ver pelos vestígios na Serra de São José, por exemplo, e ainda, o célebre Canal dos Ingleses, na Serra do Lenheiro. No mais o desnível era o necessário para aproveitar a força da gravidade, em uma época que não havia máquinas de bombeamento.
Um importante informe pessoal obtido em 30/11/2007 do Sr. José do Carmo Silva, o “Zé Pequeno”, que viveu sua infância no bairro, nas décadas de 1940-50, dá conta que havia um extenso rego que vinha de uma represa abandonada nas imediações da Árvore de Óleo / Ouro Preto, passava aproximadamente no traçado atual da Avenida Santos Dumont, por baixo do pontilhão do trem e depois pela Rua João Hallack. Corria água nele e o pessoal do matadouro jogava ali o sangue das reses, causando muito mal cheiro nas vizinhanças. Com o passar dos anos, diante da crescente ocupação urbana esse rego foi em parte manilhado e outro tanto entupido. O resto dos abates passou então a cair direto para o Ribeirão da Água Limpa, logo acima do pontilhão onde ficava o sangradouro. Quero crer que esse rego citado por Zé Pequeno seja verdadeiramente aquela primitiva benfeitoria mineradora mencionada nos parágrafos anteriores. Em fevereiro de 2009 uma parte de seu manilhamento estourou junto ao pontilhão da via férrea e velho o rego ficou evidente, mas logo foi reparado e de novo desapareceu sob o asfalto.
Garimpeiros que teimam em encontrar a sorte, aqui e acolá, sempre existiram, mas o tempo das lavras em Matosinhos foi de fato o século XVIII. Os viajantes da centúria seguinte garantiram que a atividade se extinguira. Por esta razão não deixa de ser interessante o tardio requerimento de José Teixeira Marques à Câmara, em 1901, buscando o privilégio de explorar ouro, por cinco anos, no Córrego do Lenheiro, Ribeirão da Água Limpa e sua foz no Rio das Mortes[3], portanto e inclusive em território de Matosinhos.
Além da mineração de ouro foi parcamente ativa a de calcário. Álvaro Silveira (1895, p.90) chamava a atenção sobre a possibilidade de se explorar uma pedreira desse material, um pouco adiante das edificações, junto à comunidade do Sutil, à margem esquerda do Rio das Mortes e à beira da via férrea (em frente ao quilômetro 93,7 da EFOM – Estrada de Ferro Oeste de Minas).
Notas e Créditos
* Texto e fotografia: Ulisses Passarelli
** Revisado em 09/03/2025
Referências
ALMEIDA, José de Carvalho. Relatório dos estudos feitos na Várzea do Marçal. 1893.
BURTON, Richard Francis. Viagens aos Planaltos do Brasil (1868) . 1º Tomo: do Rio de Janeiro a Morro Velho. Rio de Janeiro: Nacional, 1942. Coleção Brasiliana, série 5a, v. 197, p. 188.
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975.
SILVEIRA, Álvaro Astolpho da. Notas sobre calcareos da Bacia do Rio das Mortes. Boletim. Commissão Geographica e Geologica de Minas Geraes, n. 3. 1895. Rio de Janeiro: Imprensa de H.Lombaerts & Comp., Disponível em: https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=hvd.32044106363997&seq=91 Acessado em 09 mar. 2025.
WALSH, Robert. Notícias do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1985.
[1] Informação gentilmente prestada do Luiz Antônio Sacramento Miranda. Fonte não informada.
[2] Arquivo do IPHAN, São João del-Rei, caixa 26.
[3] Fonte: jornal O Combate, n. 83, 27/07/1901, São João del-Rei.
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