As duas postagens anteriores trataram daquilo que poderia se chamar de pré-história da festa. Para as Festas do Divino brasileiras mais propriamente interessa o que se passou com elas em terras portuguesas, nos séculos XIII e XIV, durante o reinado de Dom Diniz, o Lavrador, no período de 1261 a 1325. Começaria a partir de então a história propriamente dita.
Consta - ou pelo menos é o que a maioria dos autores defende - que esse evento iniciou em terras ibéricas sob os auspícios da Rainha Isabel, de Aragão (1271-1336), a Santa[1], casada com o rei supracitado. Era uma pessoa muito caridosa. Cuidava dos pobres e com frequência distribuía-lhes pães.
Contam de um milagre das rosas, que teria ocorrido quando às escondidas (pois era criticada pelos nobres em razão de seu jeito caritativo), levava pães à pobreza sob seu manto. Foi abordada pelo sovina Dom Diniz, que perguntou-lhe o que carregava. Respondeu-lhe: - rosas! E abrindo o manto, de fato caíram flores, posto que os pães milagrosamente se transmutaram. Sua imagem por isto tem trajes reais, coroa à cabeça e um buquê de rosas no regaço.
Foi num sonho que lhe foi pedida a construção de uma igreja ao Espírito Santo em Alenquer e que lhe dedicasse uma comemoração. Corria o ano de 1321. No dia seguinte à vidência, após a missa, seguiu para o local indicado para a construção do templo, acompanhada de padres e juízes e milagrosamente já aparecera pronto o alicerce naquele sítio. Teria também ali encontrado a planta riscada. Por conta desses juízes supracitados é que dizem existir na festa até hoje o cargo simbólico de juiz.
Começada a obra sobre o misterioso alicerce, em certa ocasião, os operários receberam flores da bondosa rainha e elas se tornaram dinheiro, que lhes ficou de paga.
Sobre a festa, a primeira em Alenquer (outros a dizem em Coimbra), teria a rainha pedido licença ao rei, seu esposo, para coroar o primeiro mendigo que visse na igreja, às 15 horas, quando se celebrava o Divino. O rei consentiu. O objetivo era “mover o augusto soberano esposo a tornar-se humilde, no exercício de suas altas funções”. Extraio do professor Nereu este significativo trecho:
Um pobre velho de pedir, todo andrajoso e descalço, subiu os degraus do trono real, e, por certo, tímido e confuso, nele foi tomar assento, a um gesto do “mestre-sala”. Depois, o Bispo tirou a coroa de cima da credência, a fim de pousar na cabeça do mendigo, ajoelhado sobre rica almofada de veludo carmesim, entoando-se nesse instante o “Veni Creator Spiritus”. E, no meio de rolos de incenso e de graves salmodias, rezou-se missa solene, finda a qual se organizou luzida procissão, em que o mendigo coroado era recebido em triunfo como autêntico imperador.
A rainha então cuidava de distribuir alimentos, benefícios caritativos, promover folganças.
Gravitando em torno desse núcleo central, as novidades foram aos poucos sendo acrescidas em cada região, pois assim instuiu-se a festa: logo com o grande sucesso em Alenquer, outras localidades puseram-se a imitar e assim a festividade espalhou-se. Fato é que a Festa do Divino se difundiu pelas terras portuguesas e nos arquipélagos dos Açores e Madeira. Com o correr do tempo enfraqueceu no continente e fortaleceu nas ilhas, ganhando ali algumas características especiais, que muito influenciaram as formas trazidas para o Brasil, sobretudo o meridional [2].
Antes de observar as festas brasileiras ao Paráclito, vale a pena conferir os elementos componentes e personagens mais significativos das festas portuguesas, a partir da seguinte tabela, que contém um resumo enumerativo que idealizei baseado em PEREIRA & JARDIM (1978), que fizeram bom levantamento bibliográfico sobre as festas ibéricas em honra ao Divino:
LOCAL
|
ELEMENTOS BÁSICOS
|
Guimarães (1489)
|
Instituída a procissão da candeia (luminosa) para livrar da peste. Levaram pães à dianteira para depois distribuí-los. Andor adornado de flores e frutos de cera.
|
Eiras
|
Voto de eleger imperador e dar-lhe ofertas para livrar da peste. Até 1823 cortejo com imperador, 2 pajens, 2 criados, música, foguetório, os nobres e a Câmara do Conselho da cidade. Marchavam a cavalo para o convento de Calas, guiados por uma bandeira. Bodos.
|
Trofa (Bougado, Concelho de Santo Tirso)
|
As mães dão três voltas ao redor da igreja com as crianças ao colo e depois colocam sobre suas cabeças a coroa para livrá-las da gota infantil. Alvorada cantada pelos romeiros do Espírito Santo.
|
Castelo
|
Moças solteiras abanam a imagem do Divino para casarem mais depressa. Mordomos são responsáveis pela festa. Peditório. Os mordomos tem de ser solteiros (acreditam que o casado morrerá, mas se quiser casar, deixa o cargo e dá um abanão na imagem de pedra do Divino no domingo da Santíssima Trindade. Quanto mais forte o abanão, mais rápido casará).
|
Elvas
|
Na missa do Divino, na hora da elevação da hóstia o sacristão espalhava pétalas de flores sobre os fiéis e ao término distribuía ramalhetes bentos às pessoas.
|
Sintra
|
Festa realizada na Sala dos Infantes, licenciada por D. João II em 1484 e posteriormente confirmada por D. Manuel.
|
Sarnadas
|
Ranchos cantavam alvorada.
|
Mação
|
Ranchos cantavam alvorada. Autos. Bodos. Bênção do pão.
|
Penedo (Colares)
|
Desfile do boi do Divino pelas ruas, enfeitado de fitas, acompanhado de gaiteiro, bandeiras e mordomos. Foguetório. Animal era bento. No dia seguinte matavam-no e distribuíam sua carne aos pobres. Distribuição de esmolas às recém-casadas.
|
Beira-baixa
|
Folias compostas por rei, pajem, alferes (com a bandeira), fidalgos tocando instrumentos. Alimentação coletiva durante o ciclo. A função do pajem era carregar a coroa de lata do rei. O cetro do rei era uma varinha cheia de fitas e flores.
|
Zebreira
(Idanha-a-Nova)
|
Início na Quinta-feira da Ascenção . Recepção à bandeira; alimento coletivo. Tourada. Confraria. Doze Mordomos . Rituais de alimentação. Juiz e alferes (eleitos dentre os mordomos). Peditório com opa e bandeiras. Bodo. Procissão. O juiz tem uma vara como insígnia. Cantorias.
|
Monsanto
|
A confraria distribui jantares no ciclo. Mordomos. Altares são armados e possuem a “pedra de honra” para colocação da coroa.
|
Açores
|
Iniciou após um terremoto, para sustentar hospitais e dar assistência domiciliar. Cortejo de gado adornado rumo ao abatedouro. Distribuição de leite. Tourada. Grandes jantares. Coroação, que pode ser feita pelo Mordomo. As folias foram se profanizando e receberam limitações legais, sendo proibidas em 1523 por D. Manuel “devido ao luxo e à ostentação, nos bodos, levando à ruína muitos festeiros”. Em 1774, D. Frei Valério de Sacramento proibiu folia e baile. O povo protestou através da Câmara Municipal e a festa prosseguiu crescente.
|
Feteira
(Faial)
|
Mordomo organiza cortejo oito dias antes, com banda. Levam quadros e vão buscar emblemas. Estandartes. Império com coroa, cetro e salva. Coroação. Leilão.
|
Pico
|
“Levam no cortejo bolos em forma de argolas, de massa sovada, que, à noite, são distribuídos a todos.”
|
Note-se portanto o repisamento de algumas características na festa portuguesa:
- cunho devocional de mistura ao lado supersticioso;
- desejo de combater doenças;
- fartura alimentar;
- caridade (que se aponta como um traço deixado pela célebre rainha);
- a ideia de um personagem maior, central, figurando imperador ou rei, marcado pela coroa, foco das atenções;
- presença de uma série de elementos festivos e cargos tradicionais: peditórios, leilões, procissões, estandartes, folias, bandas, confrarias, mordomos, alferes, juízes, etc.
Chama especial atenção os bodos ou vodos, que eram noitadas festivas em honra a este ou aquele santo, que atravessavam a noite dentro das igrejas, em cantorias e comezainas. Não raro extrapolaram os limites de tolerância e bom senso, chegando até orgias, sendo combatidos e proibidos por autoridades eclesiásticas e seculares. Os bodos do Espírito Santo porém foram liberados .
Nenhum comentário:
Postar um comentário