Passado em revista o panorama histórico-cultural dessa devoção e de sua expressão festiva em Portugal e no Brasil é tempo de concentrar as atenções em Matosinhos, de onde as notícias setecentistas são parcas.
Antes da construção da capela o lugar era conhecido por Vargem da Água Limpa ou Vargem do Porto Real. Os dois nomes se justificam pela geografia do lugar, num extenso platô entre o Ribeirão da Água Limpa e o Porto Real da Passagem, na margem do Rio das Mortes, que também tem contiguidade em direção ao imenso Bairro da Colônia e a atual cidade de Santa Cruz de Minas (emancipada de Tiradentes em 1995). A vargem propriamente dita está apenas no perímetro fluvial. Com a edificação da capela começa a correr o nome “Matosinhos da Água Limpa” e por fim se fixa em definitivo como Matosinhos. Eis a força da devoção, capaz de alterar um topônimo antigo e arraigado.
A primeira notícia do templo é de 06 de maio de 1769 e refere-se à doação de 1.500m de terra para a edificação que se pretendia fazer em honra ao Bom Jesus.
A seguir vem um extenso edital, de 29 de maio de 1770, que se refere à necessidade de construção da Capela do Senhor de Matosinhos e conformação do arraial, que se pretendia erguer e que corresponde à origem do atual núcleo do bairro. Ordenava que aqueles que possuíssem terras no lugar apresentassem os documento de posse à Câmara [1] :
Registro de hum Edital para quem tiver titulos de terras na vargem do Porto Real, antigos ou modernos, os ponha na mão do Escrivão do dº Senado no termo de 3 dias.
O Juíz, vereadores e procuradores do Senado da Câmara desta Vila de São João del-Rei do Rio das Mortes etc. Porquanto como o aumento desta Vila a tem destituído de logradouros comodos com que o povo possa edificar casas e pelas diminutas concessões estão precisados de comprar hortaliças para uso cotidiano daqueles poucos que mais caros cuidarem em fazer dilatadas chácaras nas quais fazem essas plantas com uctilidade propria e havendo-se tambem introduzido o abuso em algumas poucas pessoas para com o falso motivo de quererem edificar se apropriarem dos outros logradoros mais distantes que houverem por concessões deste Senado iludidos por sugestões de poderozos e também por considerarem verdadeiras as suplicas quando só eram dirigidas sem animo de edificar ou tapar e só de segurar as terras para as venderem aos verdadeiramente carecidos quando lhes assistia igual direito para entrarem na repartição destes terrenos publicos e baldios como ao presente se reconhece e finalmente querendo-se edificar na dilatada vargem do Porto Real a Capella do Senhor de Mattosinhos necessaria não só para o culto daquella devotissima Imagem, mas para que os actuaes moradores daquella paragem possam assistir ao preceito dominical sem o incommodo que padecem, e competindo ao nosso arbitrio destinar a situação, formosura do terreno e acomodação do muito povo que se vê carecido e nos tem requerido o que outros querem impedir com os seus chamados títulos de que nunca uzaram e só alcançados e reservados para este fim pelo que já no ano de mil setecentos e secenta e cinco se declararam nulos e se não tapassem em trinta dias e outros com a má posição das terras que posteriormente se lhes concederam pretendem apropriar-se de partes muito consideráveis daquele terreno a que pretendemos ir para se arbitrar a melhor formalidade da mesma Capella logradouros e arruamentos com que deve edificar-se o novo Arrayal que alli se pretende fazer, determinamos que toda a pessoa ou pessoas que delas tiverem titulos antigos ou modernos os ponham em poder do Escrivão que este subescreveu em 3 dias que corram da data deste para a vista deles se deliberar o que for justo conforme as suas qualidades e serem atendidos os que estiverem na partilha com a atenção que merecem e a todos se assinou a formalidade lugar e posição com que devem edificar sob pena de não exibindo no dito termo não se atenderem mas se repartirem as terras sem mais atenção do que aqueles podem merecer e para que chegue a notícia de todos e não possam alegar ignorância mandei passar este que se fixará no lugar costumado. Dado e passado nesta Vila de São João del-Rei em Câmara de 29 de maio de 1770. (grifei)
O trecho que diz “para o culto daquela devotíssima imagem”, deixa subentendido que a imagem do Bom Jesus já poderia existir naquela época. Mas não há clareza nesta informação e o assunto pode ser mesmo controvertido exigindo estudos técnicos específicos. Por exemplo, no livro referente às três décadas da diocese de São João del-Rei, existe informação que a imagem foi trazida de Portugal em 1778. Haveria uma imagem primitiva anterior?
A provisão eclesiástica que concedeu licença para a construção da capela é de 1771. Seu patrimônio foi doado pelo Padre Dr. Matias Antônio Salgado em 1773 . Sabe-se que em 1774 já estava concluída ou ao menos em condições de uso e sediou então a primeira festa que se tem notícia e um casamento.
Talvez a sua construção tenha motivado a especulação imobiliária local. Neste mesmo ano, esclarece CINTRA (1982) enviou requerimento à Câmara tendo em vista o aparecimento de supostos proprietários. O peticionário desejava ampliar suas terras ali, mandando fazer tapumes. Houve reação dos interessados, que apresentaram títulos de propriedade das terras pretendidas. Na alegação do peticionário consta que ...
no tempo em que os donatários requereram terras na mesma paragem já estava de posse das suas, compreendendo as mesmas todo o âmbito desde as casas que fez Luiza Tereza até o Valo do Gondim e daí para cima até umas casas que foram de Manoel Pinto em linha reta e da parte do valo até uma chácara pegada à do Guarda-mor João de Almeida Ramos, compreendido todo o vão que hoje serve de área à capela do Senhor de Matosinhos, e que no tempo de sua concessão nem havia a capela que se fez posterior, nem casas algumas.
A câmara foi inspecionar o local em demanda a 19 de maio de 1774, representada pelo juiz capitão Jerônimo de Paiva, os vereadores, tenente Francisco Ribeiro de Sousa, João da Costa Vale, o cirurgião-mor Joaquim Lopes Vale e o procurador Manoel Caetano da Silva. Decidiram que Francisco Mendes não fizesse outras tapagens, “sob pena de ser preso”. O mesmo termo de vereança diz :
E attendendo-se a esta Capella do Senhor de Mattosinhos edificada com grande tortura o que hé irremediável, deve-se formalisar já o terreno e a rua em forma que a indireitem para a maior formusura della e trajecto publico. (...) E que por se haverem feito alguns ranxos por occasião da presente festividade tambem requer que se proceda a vistoria nelles, citados os mesmos edificantes, (etc., grifei)
A “tortura” da edificação pode ser vista na famosa gravura de Rugendas que a mostra com as torres voltadas na direção da confluência do Água Limpa com o Rio das Mortes. Em função disto, as principais avenidas do bairro (Josué de Queiroz e Sete de Setembro), foram abertas fora do alinhamento paralelo, sendo divergentes a partir da igreja. Os ranchos citados foram anualmente armados por muito tempo, feitos de bambu, pita e folha de coqueiro, cobertos também de capim. Chamavam-lhe também casinholas . Alojavam romeiros e sediavam bares improvisados, botequins, bodegas, tabernas.
Em 08 de agosto de 1774, segundo Osni Paiva, no jornal Comunidade,
D. Bartolomeu Manuel Mendes Rios, Bispo de Mariana, concedeu licença para celebrar missa na igreja de Matosinhos: ‘hei por bem conceder para usar a ermida que se fez erigir para se louvar ao Senhor Bom Jesus de Matosinhos da freguesia de São João del-Rei, na qual poderá celebrar o Sacrifício da Missa’.
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