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Bem vindo!Esta página está sendo criada para retransmitir as muitas informações que ao longo de anos de pesquisas coletei nesta Mesorregião Campo da Vertentes, do centro-sul mineiro, sobretudo na Microrregião de São João del-Rei, minha terra natal, um polo cultural. A cultura popular será o guia deste blog, que não tem finalidades político-partidárias nem lucrativas. Eventualmente temas da história, ecologia e ferrovias serão abordados. Espero que seu conteúdo possa ser útil como documentário das tradições a quantos queiram beber desta fonte e sirva de homenagem e reconhecimento aos nossos mestres do saber, que com grande esforço conservam seus grupos folclóricos, parte significativa de nosso patrimônio imaterial. No rodapé da página inseri link's muito importantes cuja leitura recomendo como essencial: a SALVAGUARDA DO FOLCLORE (da Unesco) e a CARTA DO FOLCLORE BRASILEIRO (da Comissão Nacional de Folclore). Este dois documentos são relevantes orientadores da folclorística. O material de textos, fotos e áudio-visuais que compõe este blog pertencem ao meu acervo, salvo indicação contrária. Ao utilizá-lo para pesquisas, favor respeitar as fontes autorais.


ULISSES PASSARELLI




quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O problema da jogatina

A invasão dos jogos


        O jogo de azar é um velho problema nesta festa, mas ao que parece não existiu desde seu princípio. Os jornais pesquisados mais antigos não o citam. Não localizei informação precisa sobre quando foi introduzido. Os dados disponíveis confluem para a década de 1880. Esta aproximação hipotética, até prova contrária, se respalda em duas pistas:

-          trecho memorialístico da crônica “Prosas”, assinada por “Salusto” e publicada no jornal O Dia , nº 65, de 23 de maio de 1912, que escreve retrospectivamente, afirmando que antes da inauguração da ferrovia (1881) não havia nestas festas jogo algum, “não havia ainda o jaburu fora, nem o poquer dentro das casas”;
-          a primeira citação a algum jogo no evento surge em 1883, apenas de passagem. Sem dar qualquer importância ao fato, o Arauto de Minas, nº 2, de 17 de maio daquele ano diz que houve “jogos variados”, numa enumeração de fatos que ocorreram na comemoração.

Seria cabível a suspeita que a jogatina tenha se estabelecido com o advento da ferrovia? Ou se acentuado com esta? A chegada do trem representou uma forte mudança na sociedade local[1], índice de progresso, trazendo com facilidade muitos forasteiros e com eles novos hábitos e interesses exacerbados pelo intercâmbio entre regiões. No mais, o trem carreava banqueiros de jogos de lugar a lugar onde houvesse festa. Que eram forasteiros este trecho comprova: (...) e todos ganhavam. Não há banqueiro que perca, o que equivale dizer que a festa faz desviar da praça muito dinheiro, carregado pelos banqueiros de fora” [2].

Em 1898 foi noticiado “jogos variados de mil diferentes espécies”[3]e no ano seguinte aparece esta citação: “inúmeras barraquinhas, onde os jogos, os meios esquisitos são exibidos (...) e naquela promiscuidade feliz todos se divertem a vontade” [4].

Certo é que o crescimento da jogatina se deu célere e começou a causar polêmica já no ano subseqüente, combatido por uma parte da imprensa. Um jornal diz que o hábito se fixara, sugerindo que fosse combatido. Traz como título, “Roleta” [5]:“Esteve em pleno reinado a roleta durante os tres dias de festas.”

A partir de então as citações ao jogo tornam-se corriqueiras: “a roleta campeou em liberdade e mais um filho-família teve ocasião de iniciar-se no vício” [6].

Em 1896 alcançara grandes proporções: “mil e uma roletas, centenas de jaburus, rodas da fortuna, vermelhinha, cavalinhos, dados chumbados” [7]. Quase que só jogos para tomar dinheiro dos incautos como expressamente diz o semanário, taxando tudo de “razão do progresso”. Esse irônico tom exclamativo é mais uma prova de que anteriormente o jogo não existia.

Foi porém no ano de 1906 que o jogo alcançou proporções absurdas, obscurecendo até a parte litúrgica. No importante artigo “A Esmo”, Sylvio Celio retrata com clareza o que estava ocorrendo. Ele próprio dizia apreciar este gênero de divertimento mas não da maneira descabida com que tomou conta de todos, numa verdadeira onda viciosa e promíscua[8]: “sou de opinião que a festa de Matosinhos agora passe a chamar-se festa da jogatina (...)  mais nada houve ali de divertimento público do que os jogos (...) agora foi tudo avassalado pelo jaburu, empolgado pela roleta, etc. (...) e foi isto a festa de Matosinhos: jogo desde a manhã até a noite, alta hora (...) a festa desse quarto dia só consistiu de jogo, sem ao menos o disfarce das cerimônias da Igreja”, etc.

A festa assumia assim em definitivo sua nova cara. Os jogos lastraram desordenadamente, confirmam diferentes jornais locais: “as casas todas tomadas por bancas de jogos” [9]; “a parte religiosa resumiu-se por determinação do remo. Pároco” (e fala então dos jogos) [10]; “jaburus, pavunas, roletas, pinguilim”[11]; “jogos e rodas de fortuna” [12]; “diversos jogos” [13]; “ali todos são tentados pelo demônio do jogo” [14]; [a jogatina] “ocupava toda a multidão de fiéis devotos” (com severas críticas contra o vício desenfreado)[15]; “Há ali quermesses, solenidades religiosas, jogo” [16], dentre outros exemplos.

Importante referência de estudo fornece uma edição [17]do Minas-jornal de 1918, através da crônica intitulada “Festa fúnebre”. Seu signatário, Jacque Saint, critica de forma incisiva o aspecto triste da comemoração devido à total falta de atrativos e excesso de jogo. Descreve de forma clara a mudança que estava acontecendo na estrutura festiva, que já não era mais a mesma:

Sobre toda essa companhia melancolizante e macabra, espia empoeirada e cemiterial, a alta figura do Pavilhão, á maneira dum velho mal caiado de pó de arroz, a tuberculizar o scenario; bruxoleiam lamparinas de tabernas sobre mesas replectas de chicaras sujas e pasteis suspeitos; do coreto, a banda solemniza funeraes. Em vez de musicas brilhantes, de tangos desavergonhados e canções gritantes de cabaret, muitas vezes a banda se inteiriça em marchas de opera, intervalladas de silencios graves, alarmadas com toques bruscos de todos os instrumentos.

            Nesta amplitude avassaladora que o jogo assumiu, foram aos poucos sendo abandonados os antigos divertimentos mais sadios e tradicionais. A parte religiosa chegou a ser obscurecida. Lamentava-se também que a festa ganhara ar aristocrático, embora ainda com imensa participação popular.

            Os vários jornais tomavam posições diversas diante desse quadro. Uns meramente noticiavam, sem tomar partido, assegurando que era a festa preferida dos são-joanenses, inclusive da elite. Talvez por isso, com medo de alguma conseqüência opressora da parte dos poderosos da cidade, não opinavam. Outros eram visivelmente a favor do jogo...  e outros mais, contra...  Enfim a conotação da imprensa também dependia dos ideais políticos dos grupos que por detrás dominavam este ou aquele jornal.

            A força da festa era grande e em 1920 surge uma notícia de uma subvenção por meio de verba pública municipal [18].

            O reinado do jogo, de extenso domínio e de promissor crescimento, resultou na determinação proibitiva por ordem do então arcebispo de Mariana, Dom Helvécio Gomes de Oliveira, em 1924, a pedido de sacerdotes são-joanenses. Ou pelo menos esta foi a alegação[19].


Dom Helvécio Gomes de Oliveira, Arcebispo de Mariana,
que em 1924 paralisou as festas de Matosinhos.

* Texto e foto-montagem: Ulisses Passarelli
** Foto: Jornal O Correio, nº383, 10/02/1934, São João del-Rei/MG. Fonte: acervo digital da Biblioteca Municipal Baptista Caetano de Almeida


[1] - A título de exemplo basta lembrar que um século mais tarde, quando chegou a Ferrovia do Aço nesta cidade e sobremaneira no distrito de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, fortes mudanças na sociedade foram notadas, nem todas positivas. No seu rastro, digo, dos forasteiros que vieram trabalhar em sua construção, veio a esquistossomose, a intensificação da prostituição e das drogas.
[2] - A Nota, n. 22, 28/05/1917.
[3] - O Resistente, n. 144, 02/06/1898.
[4] - S. João d’El-Rey, n. 19, 27/05/1899.
[5] - Pátria Mineira,  n. 55, 29/05/1890.
[6] - Pátria Mineira, n. 203, 25/05/1893.
[7] - O Resistente, n. 55, 30/05/1896.
[8] - O Repórter, n. 18, 10/06/1906.
[9] - O Repórter, n. 18, 10/06/1906.
[10] - O Repórter, n. 16, 26/05/1907.
[11] - A Opinião, 11/06/1911.
[12] - O Repórter, n. 319, 26/05/1912.
[13] - Acção Social, 28/05/1912.
[14] - A Tribuna, n. 97, 14/05/1916.
[15] - A Nota, n. 22, 28/05/1917.
[16] - A Tribuna, 26/05/1918.
[17] - Número e data ilegíveis devido à danificação do cabeçalho. Exemplar do arquivo do IPHAN.
[18]  - O São João del-Rei, n.8, 06/05/1920.
[19] - Acerca do arcebispo, observar esta irônica notícia dada pelo Minas-jornal, n.108, 31/05/1919: “o arcebispo de Mariana candidatou-se, novamente, á Academia Brasileira de Letras, para a vaga de Alcindo Guanabara. É a nevrose de ser medalhão”. 

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