A invasão dos jogos
O jogo de azar é um velho problema nesta festa, mas ao que parece não existiu desde seu princípio. Os jornais pesquisados mais antigos não o citam. Não localizei informação precisa sobre quando foi introduzido. Os dados disponíveis confluem para a década de 1880. Esta aproximação hipotética, até prova contrária, se respalda em duas pistas:
- trecho memorialístico da crônica “Prosas”, assinada por “Salusto” e publicada no jornal O Dia , nº 65, de 23 de maio de 1912, que escreve retrospectivamente, afirmando que antes da inauguração da ferrovia (1881) não havia nestas festas jogo algum, “não havia ainda o jaburu fora, nem o poquer dentro das casas”;
- a primeira citação a algum jogo no evento surge em 1883, apenas de passagem. Sem dar qualquer importância ao fato, o Arauto de Minas, nº 2, de 17 de maio daquele ano diz que houve “jogos variados”, numa enumeração de fatos que ocorreram na comemoração.
Seria cabível a suspeita que a jogatina tenha se estabelecido com o advento da ferrovia? Ou se acentuado com esta? A chegada do trem representou uma forte mudança na sociedade local, índice de progresso, trazendo com facilidade muitos forasteiros e com eles novos hábitos e interesses exacerbados pelo intercâmbio entre regiões. No mais, o trem carreava banqueiros de jogos de lugar a lugar onde houvesse festa. Que eram forasteiros este trecho comprova: “(...) e todos ganhavam. Não há banqueiro que perca, o que equivale dizer que a festa faz desviar da praça muito dinheiro, carregado pelos banqueiros de fora” .
Em 1898 foi noticiado “jogos variados de mil diferentes espécies”e no ano seguinte aparece esta citação: “inúmeras barraquinhas, onde os jogos, os meios esquisitos são exibidos (...) e naquela promiscuidade feliz todos se divertem a vontade” .
Certo é que o crescimento da jogatina se deu célere e começou a causar polêmica já no ano subseqüente, combatido por uma parte da imprensa. Um jornal diz que o hábito se fixara, sugerindo que fosse combatido. Traz como título, “Roleta” :“Esteve em pleno reinado a roleta durante os tres dias de festas.”
A partir de então as citações ao jogo tornam-se corriqueiras: “a roleta campeou em liberdade e mais um filho-família teve ocasião de iniciar-se no vício” .
Em 1896 alcançara grandes proporções: “mil e uma roletas, centenas de jaburus, rodas da fortuna, vermelhinha, cavalinhos, dados chumbados” . Quase que só jogos para tomar dinheiro dos incautos como expressamente diz o semanário, taxando tudo de “razão do progresso”. Esse irônico tom exclamativo é mais uma prova de que anteriormente o jogo não existia.
Foi porém no ano de 1906 que o jogo alcançou proporções absurdas, obscurecendo até a parte litúrgica. No importante artigo “A Esmo”, Sylvio Celio retrata com clareza o que estava ocorrendo. Ele próprio dizia apreciar este gênero de divertimento mas não da maneira descabida com que tomou conta de todos, numa verdadeira onda viciosa e promíscua: “sou de opinião que a festa de Matosinhos agora passe a chamar-se festa da jogatina (...) mais nada houve ali de divertimento público do que os jogos (...) agora foi tudo avassalado pelo jaburu, empolgado pela roleta, etc. (...) e foi isto a festa de Matosinhos: jogo desde a manhã até a noite, alta hora (...) a festa desse quarto dia só consistiu de jogo, sem ao menos o disfarce das cerimônias da Igreja”, etc.
A festa assumia assim em definitivo sua nova cara. Os jogos lastraram desordenadamente, confirmam diferentes jornais locais: “as casas todas tomadas por bancas de jogos” ; “a parte religiosa resumiu-se por determinação do remo. Pároco” (e fala então dos jogos) ; “jaburus, pavunas, roletas, pinguilim”; “jogos e rodas de fortuna” ; “diversos jogos” ; “ali todos são tentados pelo demônio do jogo” ; [a jogatina] “ocupava toda a multidão de fiéis devotos” (com severas críticas contra o vício desenfreado); “Há ali quermesses, solenidades religiosas, jogo” , dentre outros exemplos.
Importante referência de estudo fornece uma edição do Minas-jornal de 1918, através da crônica intitulada “Festa fúnebre”. Seu signatário, Jacque Saint, critica de forma incisiva o aspecto triste da comemoração devido à total falta de atrativos e excesso de jogo. Descreve de forma clara a mudança que estava acontecendo na estrutura festiva, que já não era mais a mesma:
Sobre toda essa companhia melancolizante e macabra, espia empoeirada e cemiterial, a alta figura do Pavilhão, á maneira dum velho mal caiado de pó de arroz, a tuberculizar o scenario; bruxoleiam lamparinas de tabernas sobre mesas replectas de chicaras sujas e pasteis suspeitos; do coreto, a banda solemniza funeraes. Em vez de musicas brilhantes, de tangos desavergonhados e canções gritantes de cabaret, muitas vezes a banda se inteiriça em marchas de opera, intervalladas de silencios graves, alarmadas com toques bruscos de todos os instrumentos.
Nesta amplitude avassaladora que o jogo assumiu, foram aos poucos sendo abandonados os antigos divertimentos mais sadios e tradicionais. A parte religiosa chegou a ser obscurecida. Lamentava-se também que a festa ganhara ar aristocrático, embora ainda com imensa participação popular.
Os vários jornais tomavam posições diversas diante desse quadro. Uns meramente noticiavam, sem tomar partido, assegurando que era a festa preferida dos são-joanenses, inclusive da elite. Talvez por isso, com medo de alguma conseqüência opressora da parte dos poderosos da cidade, não opinavam. Outros eram visivelmente a favor do jogo... e outros mais, contra... Enfim a conotação da imprensa também dependia dos ideais políticos dos grupos que por detrás dominavam este ou aquele jornal.
A força da festa era grande e em 1920 surge uma notícia de uma subvenção por meio de verba pública municipal .
O reinado do jogo, de extenso domínio e de promissor crescimento, resultou na determinação proibitiva por ordem do então arcebispo de Mariana, Dom Helvécio Gomes de Oliveira, em 1924, a pedido de sacerdotes são-joanenses. Ou pelo menos esta foi a alegação.
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Dom Helvécio Gomes de Oliveira, Arcebispo de Mariana, que em 1924 paralisou as festas de Matosinhos. |
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