Muitas festas populares e religiosas encerram suas atividades devido à decadência, enfraquecimento gradativo dos componentes festivos, alterações sociais, dissoluções comunitárias. Definitivamente não foi o que aconteceu com a de Matosinhos .
No tempo em que foi proibida era gigantesca, capaz de esvaziar a cidade e lotar o arraial. Milhares e milhares de pessoas vinham de toda a redondeza participar. Não havia decadência mas sim um aspecto diferente daquele dos tempos mais antigos. O lado profano, reduzido ao jogo, sobrepunha-se desconcertante ao lado religioso, tão subtraído que fora, que já não passava de pretexto oficial à realização da festa. Disfarce, como disse um jornal.
Mas aconteceu em abril de 1923, na cidade de Juiz de Fora / MG, a Conferência Episcopal da Província de Mariana. Das resoluções tomadas, as de nº 15 e 16 diziam respeito exatamente aos jogos em festas de igreja e serviram de justificativa para a paralisação dos festejos no ano seguinte. Senão, vejamos um texto a propósito, intitulado “Festa de Mattosinhos” :
Não poucos commentarios tem merecido o facto de não se realizarem este anno, os idolatrados festejos de Mattosinhos. Não só em palestras: tambem alguns jornaes já se hão occupado do momentoso assumpto, uns com applausos com censuras e cerimonias outros... Poderiamos, sem esforço e com segurança, mostrar a sem razão dos que, não sabendo ou não querendo pesar os motivos da privação, chegam ao excesso, que lastimamos, de se referir com pouca reverencia ás auctoridades responsaveis no caso em apreço. Abstemo-nos entretanto, de qualquer argumentação. Melhor: resumimo-la na citação que vamos fazer de dois artigos (15 e 16) das “Resoluções”, approvadas nas conferencias episcopaes da Provincia de Marianna, realizadas em Juiz de Fora, em abril de 1923:
“Prohibimos em absoluto (o grypho é nosso) os bailes em beneficio de instituições catholicas, bem como outras festas de beneficio com jogos de azar ou divertimentos de moralidade duvidosa.
Prohibimos igualmente as festas religiosas, com jogos a dinheiro, nas praças ou em quaesquer lugares franqueados ao povo (é ainda nosso o grypho), determinando aos Rev. Vigários que recorram ás auctoridades, e, no caso de nada conseguirem, suspendam immediatamente os actos do culto, seja na sede da parochia, seja em capellas.” São claros... Quereriam os amigos da festa de Mattosinhos que o sr. D. Helvécio revogasse (e por amor de quê?!) o que ficou taxativamente resolvido?
Realmente o caso deu margem e extensas brigas, encabeçadas de um lado pelo Monsenhor Gustavo Ernesto Coelho (pároco e vigário forâneo) e Frei Cândido Wroomans, OFM, pelo jornal Acção Social (digamos, contrário à festa), e de outro, pelo Professor Bento Ernesto Júnior , pelo jornal A Tribuna (por assim dizer, favorável à festa), com adeptos de parte a parte.
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Monsenhor Gustavo Ernesto Coelho, em foto de data e autor não identificados, publicada no jornal Acção Social, n.483, 22/08/1924, quando anunciou seu falecimento. Acervo da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida. |
Acentuaram-se as porfias no
Acção Social de 1924:
- 12/06, n. 473 (Festa de Mattozinhos, a redação); - 18/06, n. 474 (Festa de Mattosinhos, “Mário”);
- 26/06, n. 475 (Festa de Mattozinhos, “Sertório”);
- 26/06, n. 475 (Festa de Mattozinhos, A. de Lara Resende);
- 08/07, n. 476 (Ainda a Festa de Mattosinhos, Monsenhor Gustavo Ernesto Coelho);
- 08/07, n. 476 (Festa de Mattozinhos, Frei Cândido Wroomans- carta aberta respondendo acusações) ; - 08/07, n. 476 (Festa de Mattozinhos: aquella que o snr. Bento patrocina... , A. de Lara Resende);
- 10/07, n. 477 (Festa em Mattozinhos, Monsenhor João Pio);
- 24/07, n. 479 (Festa de Mattozinhos, A. de Lara Resende - carta aberta ao arcebispo);
- 24/07, n. 479 (A Festa de Mattozinhos, João L.da C. - carta enviada de Belo Horizonte);
- 24/07, n. 479 (Ainda a Festa de Mattozinhos, “Saulo”).
Com outro tanto de respostas em A Tribuna, também em 1924:
- 22/05, n. 545 (Chronica, Bento Ernesto Júnior);
- 01/06, n. 548 (Palmo e meio, “T.B.”);
- 05/06, n. 549 (Respondendo a uma torpeza, Hildebrando de Magalhães);
- 05/06, n. 549 (Chronica, Bento Ernesto Júnior);
- 08/06, n. 550 (Festa de Mattosinhos, anônimo);
- 12/06, n. 551 (Palmo e meio, “T.B.”);
- 15/06, n. 552 (Festa de Mattosinhos, Bento Ernesto Júnior - carta aberta a frei Cândido);
- 15/06, n. 552 (s/título, D. Helvécio Gomes Oliveira a Basílio de Magalhães - comentários de Bento Ernesto Júnior);
- 19/06, n. 553 (Festa de Mattosinhos, João Thomé);
- 29/06, n. 556 (Pá de cal... , Hildebrando de Magalhães);
- 29/06, n. 556 (Festa de Mattosinhos, Bento Ernesto Júnior);
- 17/07, n. 561 (Festa de Mattosinhos, Bento Ernesto Júnior - resposta ao Mons.João Pio).
Num palavreado infindável, os longos textos descrevem o descontentamento de ambos os lados. De sua leitura se depreende que a briga tomara a horas tantas, um caráter pessoal, quiçá político. Artigos inteiros nem sequer comentam a festa, mas apenas que fulano ou beltrano não tem bom senso, moral, caráter, piedade, educação, cultura, catolicismo, civismo e outras coisas mais. Alguns usaram de pseudônimos para asssiná-los. Surgiram artigos de matéria paga. Revidava-se. Escreviam-se tréplicas. Um deles, contra-festa, encerrou-se dizendo: “A esses amigos da Festa - católicos ou não - pedimos pouco, muitíssimo pouco: é que sejam razoáveis!...” (Acção Social, n. 473). Bento Ernesto Júnior na edição 522 d’A Tribuna escreveu com veemência contra Frei Cândido, culpando-o pela paralisação, o que causou fortes protestos no Acção Social, n. 474 e 475. Bento Ernesto Júnior, de outro lado, em extensas argumentações, condenava a brusca paralisação, pois não considerava os jogos justificáveis para tanto e ainda criticou o uso de alcunhas pelos signatários das matérias. Daí por diante cada acusação induzia a uma resposta. Enfim, a polêmica foi escandalosa.
Vale destacar que o assunto tomou proporções acentuadas: uma carta vinda da capital do estado foi publicada pelo Acção Social. Outra matéria contrária à festa, foi publicada no jornal O Municipio, de Lavras, assinada por um “sr. X”, que mereceu dura resposta de Hildebrando de Magalhães, porque o tal acusara a festa de ter tamanha desordem que redundou no assassinato de um homem a punhaladas na porta da Igreja de Matosinhos, poucos anos antes. O defensor argumentou que o fato ocorreu mas que não fora motivado por desordens da jogatina, mas por uma questão pessoal entre os contendores. Lá de Lavras o sr. X lançou de novo n’O Municipio, toda sorte de impropérios contra Hildebrando, que ainda uma vez o retruca a 29 de junho. Até o deputado federal Basílio de Magalhães, escreveu um telegrama ao arcebispo pedindo reconsiderar a decisão. Este lhe respondeu por carta, que a decisão podia ser temporária, até se resolverem os problemas que acometiam os jubileus, como o de Piracicaba, Bacalhau, Congonhas, etc., e que não guardasse rancor. Não é de admirar esta resposta. Bento Ernesto Júnior já escrevera ao vigário uma carta aberta, na qual indagava acerca da proibição, do por quê ... “não a estendeu até a festa da Trindade, em Tiradentes, que é a mesmissima festa de Mattosinhos, com algumas aggravantes a mais? Porque não foi prohibida a festa de Congonhas-do-Campo, que é a mais desbragada feira de libertinagens, latrocinios e desordens?”
Acusa então a justiça empregada de ser semelhante a de Pilatos. Já dissera antes, a 22 de maio, sobre a acusação de imoralidade deste evento que se a festa era imoral então... “immoral é toda a família sanjoannense, que, ha seculos, a vem assistindo e nella toma parte.”Realçando a atitude hipócrita do clero, lembrou das coletas em prol da Igreja que fazia Frei Cândido, que, nos seus dizeres, “há vinte anos explora o povo em Mattosinhos com rifas e cumbucas” (A Tribuna, 17 de julho).
“T. B.” já dissera com lamúria a 01 de junho que o mesmo arcebispo, que quando de sua estada em São João elogiara as crianças, agora suprimia seus divertimentos com o fim da festa:
creancinhas que gostam tanto da festa e do Senhor Bom Jesus de Mattosinhos, do cavallinho de pau, do busca-pé, do pau de sebo com a nota de cinco mil réis ventilando lá em cima, do trem, do innocente jaburú, do foguete de lagrimas. (...) impossível. Não creio. S.revm. gosta muito de pilheriar. E, muito respeitosamente, peço venia a s.revma para dizer-lhe que, desta vez, a graça está meio dura de se roer...
A reação contra a atitude eclesiástica foi tão intensa que se articulou fazer uma festa sem atos religiosos, só com parte profana, obtendo esta idéia tal apoio, que A Tribuna de 08 de junho diz :
Está plenamente assentada a realização da tradicional festa de Mattosinhos, que terá logar em tres dos ultimos dias do corrente mez. Com o objectivo de promovel-a, está sendo constituida uma importante commissão, que terá o patrocinio da nossa Camara Municipal. (sic)
A doze daquele junho remoto reafirma expressamente: “serão feitas, ainda este mez, as festas de Mattosinhos, sem as solennidades religiosas”.
Na citada carta (fechada) de Dom Helvécio Gomes de Oliveira a Basílio de Magalhães, havia esta famosa promessa, para amenizar o descontentamento dos são-joanenses e a justificativa de que a festa só estaria paralisada até o seu cumprimento: “mandei dar os passos precisos para a creação da parochia de Mattosinhos, talvez ainda neste anno a inaugurar-se”.
A paróquia contudo somente foi inaugurada 36 anos depois da promessa.
Esta carta gerou novas polêmicas, pois os que apoiavam a Igreja diziam que Bento Ernesto Júnior que a publicara, não tivera autorização para tal. Vale ressaltar que o diretor de A Tribuna era o Sr. Basílio de Magalhães.
É fato que os meandros desta polêmica merecem um estudo à parte, à luz dos interesses políticos e religiosos da época.
Um ato público com banda de música e discursos foi feito em frente a Matriz do Pilar em apoio a Frei Cândido, noticia o Acção Social a 06 de agosto (n. 480), sob o título “Manifestação de Apreço”, discursando o Dr. Augusto Viegas (pelos católicos da cidade), Dr. Pinto Coelho (pela União Popular e Irmandades religiosas), Prof. Lara Resende, Sr. Alberto Magalhães Filho (em nome da mocidade católica) e Sr. Guilherme Barcelos (pelos operários).
Monsenhor Gustavo já sofria há tempos de severa enfermidade e faleceu pouco depois, a 20/08/24. O Acção Social do dia 22 daquele mês (n. 483) traz estampada a foto do sacerdote em meio a uma longa matéria a seu respeito, emoldurada por uma larga tarja preta em sinal de luto. Com sua morte a briga esfriou. Frei Cândidoassumiu interinamente o seu cargo até que se nomeou para tal o jovem Padre José Maria Fernandez, de respeitadíssima memória nesta cidade. Foi o fim da polêmica e o retorno da festividade, ainda que simplificada, naquele ano excepcionalmente em setembro e a seguir na data convencional ou a 3 de maio, dia da Invenção da Santa Cruz.
A briga terminou inglória, sem vencidos, sem vencedores, causando desgastes em cada parte.
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O professor e poeta Bento Ernesto Júnior, numa fotografia de autor e data não identificados, publicada pelo jornal O Repórter, nº32, 25/08/1907, São João del-Rei/MG, acervo da Biblioteca Municipal Baptista Caetano d'Almeida. |
Notas e Créditos
*Texto: Ulisses Passarelli
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